domingo, 28 de dezembro de 2008

Sobre o chão descalço, construo mundos que destruo na minha cabeça.


Foto:Introit

domingo, 14 de dezembro de 2008

Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
.
Autor:Ruy Belo
Foto:derianek

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

De mãos a arder. risco uma cruz

De mãos a arder, risco uma cruz
na lisura da areia, para confessar
o remoto exercício da tristeza.
Já não sei, se são de asas ou de velas,
os sons que aportam meus ouvidos
.
.
Autor:Graça Pires
Foto:wostass

sábado, 29 de novembro de 2008

Neste outono

Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de ch
egar.
.
Autor :Maria do Rosário Pedreira
Foto:Introit

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sensação musical para embalo de almas


Onde a vida foi, fugitiva,
a forma inatingível,
a pura música cativa
e livre, como um sensível
alheio a nós, e sendo-nos,
há só o puro longe, o pólen
em suspensão e estige
de ausência - pétalas cismantes
recortando a sua origem
não em nós, na morte de instantes.

Autor:António de Navarro
Foto:miszkaa

domingo, 16 de novembro de 2008

....

Agarro em pincel e deslizo-o, a ouvi-lo segredar, murmúrios de cores que riem sozinhas.Traço risco leve, não leve o vento o vento, o segredo do rabisco…É saltimbanco, o risco colorido , palhaço-saltitante, vagabundo, navegante…Procura ilha perdida, de menina que sonha versos de fantasia.Rabisco tonto!Desvalido de sorte!Anda perdido sem norte, que a menina sonha coisas outras, de fadas e rainhas, não coisas tolas, coloridas por rabisco de Quixote…
.
@ almaro — July 13, 2005

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Lãmina, o Punhal

Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
.
Autor:Albano Martins
Foto:Ricardo

sábado, 8 de novembro de 2008

As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa.
.
Autor:José Tolentino Mendonça
foto:Yust

sábado, 1 de novembro de 2008

30

Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.


Autor:António Franco Alexandre
In:Duende
Foto:jimij

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quero-te



Quero-te
no secreto segredo de dizer-te
na asa da brisa repousada
no fulgor deste sol
no arrepio da água na levada
no sobressalto da pedra na falésia
no silêncio dos cumes
na claridade das madrugadas brancas
no respirar nocturno das ruelas
no calor do vinho a perfumar a boca
na solidão das mãos
na fímbria do desejo
(quero-te assim
longínquo e doce
terno e ausente)
só posso desejar-te nas palavras.
.
Autor:Maria Aurora Carvalho Homem
Foto:Antropina

domingo, 26 de outubro de 2008

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Autor:Mia Couto

Foto:KxxG


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Para ti...


"Tu e não eu, se encarregará da tarefa de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio.
Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém.
Assim vou vivedo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer."
.
Autor :Miguel Sousa Tavares, Não te deixarei morrer David Crockett
Foto:_-_Eau_-_

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Cedo ou tarde

Cedo ou tarde
Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.
.
Autor:Albano Martins
Escrito a vermelho


segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Meus pensamentos são nómadas

Meus pensamentos são nómadas
se vagarosos
como a água que vem da montanha
e não sabe nada
do coração dos homens.
O meu, por exemplo,tem a leveza do vento
e corre para casa como se fosse
um cão que precede
os passos do dono.

.
Autor:Casimiro de Brito
Foto:Natália Stag

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Se eu nao te amar mais

Se eu não te amar mais me
Caia o mar nos ombros
Me caia
Este silêncio pelos ossos dentro
Me cegue os olhos esta sombra
Me cerre
Esta noite num escuro mais profundo
Do que a chuva de ti de mãos tão leves
A figueira do meu sangue se emudeça
De pássaros à espera dos teus passos
De outra voz por sobre a minha
Morta
E as ruas do teu corpo eu desaprenda
Como desaprendi os dedos que em tocam
E se eu não te amar mais me caia a casa
De costa no teu peito como o vento
.
Autor:António Lobo Antunes
Foto:Artur77

terça-feira, 14 de outubro de 2008

"

"E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram.Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.
.
autor:Miguel Sousa Tavares

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

As palavras em trânsito


Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes, havia um mar crispado
na fissura dos lábios.
Hoje, apenas
algumas gotas de sal.
.
Autor:Albano Martins
in:O Mesmo Nome(1996)
Foto:Natália Strag

domingo, 12 de outubro de 2008

Poema da despedida

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo
.

Autor:Mia Couto

Foto: BoroG

sábado, 11 de outubro de 2008

A Casa Quieta



"Quero acreditar que já não estarias em casa por alturas em que cheguei mas não sei dizer. A verdade é que não te procurei. Mais uma vez. Penso que fiz as coisas do costume, penso hoje quando penso nisso que fiz as coisas do costume, terei deixado o sobretudo ao acaso, abri o frigorífico fechei abri uma outra vez, sem saber bem o que procuro, acontece-me quase sempre. As coisas do costume. Vagueei sem saber bem, o sobretudo caído alguém há-de arrumar, tu tratas disso. Do frigorífico abro fecho abro outra vez, quero pouco, não sei que quero, deixei de beber prometi-te acho que te prometi, não sei que beba."


Autor:-Rodrigo Guedes de Carvalho
Excerto :A Casa Quieta
Foto:Mabar

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

sentei-me


sentei-me sem a presença do destino,um quase nada…pousado na bruma, deixei que tudo me invadisse,foi então que voei…
.
Autor:Almaro
Foto:Laluna Bel

terça-feira, 7 de outubro de 2008

são

São duas e tal da madrugada e tenho medo
Tu já não estás comigo.
Hoje deito-me só.
Levanto-me só
Quero dormir não consigo, sinto a falta de ti na distância do meu abraço.
Tu sabes que gosto de te sentir.
Descansar a minha mão em ti
Beijar-te pela madrugada enquanto dormes sorrindo.
Olhar-te
Tu sabes e já não estás.
E sinto frio o teu lado da cama
E sinto esta cama tão grande sem ti.
E tu não estás!
E eu amo-te.
É mais forte que eu.
Este sentir amordaçado…
.
Autor: joão marinheiro

Foto:Paulo César http://www.paulocesar.eu/ - paulo cesar

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

...

a bruma da minha cidade é um retalho de dor, cada pedaço é uma cor, cada tom uma vida. passeio-me só, sem lua nem lobo, entre a luz e a sombra de cada uma. vagabundo navegante sem cidade nenhuma…
.
Autor:Almaro
Foto:Beatrice

domingo, 5 de outubro de 2008

Nas minhas mãos...

Nas minhas mãos
Deslizo no teu corpo...
As minhas mãos trémulas.
Percorro as linhas
De uma escultura perfeita,
E no suor da tua pele
Perco o medo de sentir.
Um momento único
De cada segundo que passa!
Nos meus dedos
Levo a inocência,
De um amor banido
Que se oculta,
Na textura do prazer
O estado natural do inconsciente.
Deslizo no teu corpo...
As minhas mãos pertencentes
Das sensações deslumbrantes,
Que a minha boca cala
Num beijo único.
Dois corpos despidos
Que se enaltecem de formosura
Nas minhas mãos...
.
Autor: Conceição Bernardino
Em "Alma Poética"
Página 19
Foto:Konradluczenczyk
.

um selo

um prémio atribuido a este blogue por
http://atilasiqueira.blogspot.com/
obrigada.

sábado, 4 de outubro de 2008

Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.
Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.
São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.
Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.
Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.
Também a noite é escura.

Autor:Agostinho Neto
Foto: bornslippy

domingo, 28 de setembro de 2008

Perdão

Peço perdão às letras,
Por pouco saber escrever.
Peço perdão à vida,
Por não saber viver.
Peço perdão ao amor,
Por amar sem querer.
Peço perdão ao mundo,
Por não saber nele viver.
Peço perdão aos Deuses,
Por não saber lhes compreender.
Peço perdão à vida,
Por ter vontade de morrer.
Peço perdão a tudo,
Por nada ser.
Peço perdão,
E só perdão,
Por ser um tolo,
E nada na vida entender.

Autor:Átila Siqueira.
http://atilasiqueira.blogspot.com/
Foto:Paulo Madeira
Paulo Madeira - www.paulomadeira.net

sábado, 27 de setembro de 2008

Lençois de Algas

Sonho-te em lençóis de algas
Na água que acaricia
Teu corpo
Que te inunda e permanece
Por breves instantes
Em ritmos cadenciados
Sonho-te
Nas areias derramadas
Cálidas como
Este amor pagão
Cheio de sal e mar
Sonho-te
Neste golpear de horizontes
Em que me arrebato
Em barcos de papel
Onde navego nos ósculos
Carregados de doçura
Sonho-te
Meu segredo
Camuflado numa melodia
Tão intangível
Tão perfeita e completa
Que ninguém a conseguirá tocar
Sonho-te
Entorpeço
Tombo
Soergo-me
E adormeço
Para voltar a sonhar-te....
.
Autor:© Piedade Araújo Sol
Poiesis
Volume XV-Editora Minerva
Pág.195
Foto:amku


sexta-feira, 26 de setembro de 2008



(quero-te assim

longínquo e doce

terno e ausente)

só posso desejar-te nas palavras
.

Autor:Maria Aurora Carvalho Homem

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Memória



é de ti que eu falo
hoje
quando todos os pássaros emigram do Outono
para as cidades destruídas
quando os olhos marítimos de conhecerem as margens
do sul se fecham devagar
é de ti que eu falo.

Lembras-te?

era Janeiro e eu vinha do norte.
a casa vermelha tinha janelas azuis e à volta
um tempo de vinhas e canções longínquas.

estávamos sós.

Lembras-te?

então o pai atravessava o cais
a paravam os estios da ilha
o ventos do atlântico queimavam os lábios
e le dizia:

cesce filho corre filho
pra onde irei para onde?

e ele dizia:
aí há barcos barcos
ehavia barcos barcos.

Lembras-te?

Autor :José Agostinho Baptista
Desde lado onde - 1976
Foto:Miara Jakub

domingo, 7 de setembro de 2008

a casa onde às vezes regresso

a casa onde ás vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos

.
durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
.
tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
.
Autor:José Tolentino Mendonça
Foto:Stefers

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

sem nome

Eu a esperar-te. O tempo a passar lento. Demoramos. As mesas vazias. O café vazio. Eu a esperar-te. Eu a imaginar-te. Tu a chegares. Tu a chegares. Tu a caminhares. Tu a sorrires. Tu a murmurares. Desculpa – estou atrasada! O tempo a começar a andar. Tu a ficares próxima. Eu a admirar-te. Tu a sorrires. Espécie de sol na minha vida. Eu a olhar-te. O tempo a andar mais depressa. Eu a querer-te. Tu nem por isso. O sol nos teus olhos. Eu a querer apanhar o sol. Tu quase a partires. O tempo a correr. Tu a saíres pela porta. Eu parado. O tempo que voa agora. Foste embora de novo. Eu a tropeçar na saudade. O sol a esconder-se. Eu a descer a rua ao contrário. Tu para norte. Eu para sul. Eu a querer-te. Tu nem por isso. Eu num café numa cidade qualquer. Uma mesa qualquer. Uma chávena vazia. A mesa vazia. Eu vazio. Um vazio imenso. Um silêncio imenso. Eu vazio de ti. Eu a esperar-te de novo. O tempo a passar lento outra vez. Eu a perder a vez. O sol a ir também. A noite em mim. O silêncio que chega. Eu a esperar-te ainda. A não dizer que te amo. O amor adiado. Eu a querer-te. Tu nem por isso.
.
Autor:João marinheiro 02/08/08


Foto:Wilktors

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

ah, sobre ausência escrevi isso:

a distância não te separa
nem a ausência
nem o silêncio
porque me mandas estrelas
sóis de outros sistemas
e beijos azuis molhados
porque sinto tuas gotas de orvalho
como se de repente
me transformasse
sem amarílis, orquídea, miosótis
ou em qualquer flor
que exale aroma
também azul(não sei nome de flor azul)porque me recrias dos cincos elementos
presentes em tuas palavra
se carregando um sexto sentido
já te pressinto em mim
homem azul.

(foi escrito para um poeta)


Autor:Pavitra
http://metamorfraseando.blogspot.com/
Foto:J.P.Sousa

domingo, 31 de agosto de 2008

tomou-me conta

poeta não sou eu, é o outro
que vive alojado em mim
durante tanto tempo o reprimi
agora revoltou-se libertou-se
sai quando quer e por onde lhe apetece
tomou-me conta
perdi-lhe a mão.

Já não lhe sou dono

Autor:antónio paiva
juntando as letras
Página 53
Edições Ecopy
Foto:KhAaMmlilia

sábado, 30 de agosto de 2008

Urgência


Levanta-te e deixa-me entrar,
diria se pudesse,
junto a esta cama onde a dor te contempla,
sob este tecto frio que não inventa qualquer paisagem,
qualquer lembrança de barcos ancorados no vazio da nossa alma, diria que lá fora escuto a sirene que se aproxima e a chuva que bate com as suas gotas de angústia na pedras da estrada,
diria que essas quatro rodas vão levar-te,
ao longo do pánico e da noite,
para outras paredes onde nenhum crucifixo redime a desolação das casas,
diria que se afastaram para sempre os dias antigos,
as suas laranjas,
a sua água,
uma cerejeira breve onde os melros cantavam.

Autor:José Agostinho Baptista
Foto:Kocham Krówki

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

a tua ausência é, cada momento, a tua ausência.


a tua ausência é, em cada momento, a tua ausência.não esqueço que os teus lábios existem longe de mim.aqui há casas vazias. há cidades desertas. há lugares.mas eu lembro que o tempo é outra coisa, e tenho tanta pena de perder um instante dos teus cabelos.aqui não há palavras. há a tua ausência. há o medo sem os teus lábios, sem os teus cabelos. fecho os olhos para te ver e para não chorar.
.
Autor José Luis Peixoto
In : A casa, A Escuridão
Foto:Szara Reneta

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Cais


Nunca parti deste cais e tenho o mundo na mão!
Para mim nunca é demais responder sim cinquenta vezes a cada não.
Por cada barco que me negou cinquenta partem por mim e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!
.
Autor:Manuel Lopes
Foto:Paulo César

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

e um dia ele pegou num lápis

e um dia ele pegou num lápis,
e desenhou.
.
quando olhou o desenho nao sabia que o tinha desenhado.
assim a modos de riscos e rabiscos.
.
ela olhou o desenho e disse:
.
-Esta, sou eu!
.
ele disse:
.
-Quem és?
.
ela nao respondeu.....
.
Foto:Paulo Rebelo Lorient

terça-feira, 26 de agosto de 2008


Encontrei uma lágrima,
sozinha,
perdida.
Colhi-a e sorriu-me com todas as cores de um reflexo.
Agarrei em tintas e misturei-a em forma de flor.
Não lhe dei nome,
só lhe sinto a cor que me cobriu a dor…
.
Autor : @ almaro — August 29, 2005
Foto:Kátia Chausheva

domingo, 24 de agosto de 2008

Tal como antigamente


Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair
.
Autor:Antonio Ramos Rosa
Foto:JP.Sousa

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

mergulho

na hora esquiva
das águas apurando
dias em ilhas alheias
ao sal me conservo
dentro dos ossos
experimentando
o nascimento de asas
translúcidas
e vôo
pássaro
o bico aponta
meu peito
e ronda meu corpo
mergulhado
em acasos
de sargaços e peixes
diáfanos
e eu
raramente em mim
concha adversa
me fecho
nessa mudez que pesca o verso
.
Autor: Pavitra
Foto:Agnieska Motyka

terça-feira, 19 de agosto de 2008

mareantes na tua face de eremita


Sabemos que não há esquecimento que afogue o nosso beijo, tão distante e ansiado, que ainda não foi dado. Sabemos do livre e fácil emergir no mar dos nossos gestos, a remar até à praia do nosso contentamento. E também sabemos, que em ti, na luz do teu rosto, eu saberia ocultar-me de mim mesmo, estilhaçar grilhetas solitárias e sermos num abraço, suave como penas, dois corpos num só corpo no tempo quedo apenas. Mas espanta comigo o desalento, porque ambos sabemos que há mais ensejos que marés ou mareantes na tua face de eremita.

.
Autor:NilsonBarcelli
30/agosto/2005
Foto:GaudimM

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

dos loucos



Sei dos dementes,
sei da rouquidão dos gritos,
sei do aflito rasgar-se
dos gemidos.
Amo.
É isso.
.
Autor:Saramar

domingo, 17 de agosto de 2008

Elegia por antecipaçao à minha morte tranquila



Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte, quando quiseres.
.

Autor :Armindo Rodrigues
Foto:_-_Eau_-_

sábado, 16 de agosto de 2008

mocho cego


as palavras não me dizem. nada. já não! desfazem-se no(s) silêncio(s). caídas. sozinhas. no vazio das letras sem sentido(s). delas. os meus, já não se desenham. nelas. desenformam-se deformadas em nuvens-de-pó, de giz colorido nas-chuvas-de-estio, em vapores-de-solidão-desabraçada, nas noites de mocho-cego. macho. enfeitiçado. as palavras não me dizem. correm sem mim, no poema que não fiz. é dia de poetas. estou surdo. invento vazios.
cinzentos.
e
as palavras. aqui.
e
eu sem mim.

.
Autor: almaro @
Foto:KuSiu

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

depois do



Depois
do cheiro doce dos cavalos
e depois
do sol beijar a sombra
das nogueiras
e depois
dos corpos se encontrarem
junto ao verão
depois disso não faz falta
mais nenhum lugar na mesa
nem nos olhos
dos pardais.
.
Autor: Vasco Pontes
Foto:Kwandrans

quarta-feira, 13 de agosto de 2008



....Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:...

.

Autor :António Lobo Antunes
Foto:KarooI

terça-feira, 12 de agosto de 2008


um dia desenhei uma lágrima…

tinha as cores todas de uma semente…

.

Autor: Almaro
Foto:Yousey

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Do Poema




O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Autor :Casimiro de Brito
Canto Adolescente, 1961
Foto:Paulo Rebelo Lorient


...Quarta-feira foi ontem e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele e nem sequer me viu. Ter-me-á visto alguma vez? Em todos os canais de televisão só passam novelas brasileiras....



Autor : António Lobo Antunes

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Soliloquio

Minhas mãos esfaceladas

pelas águas revoltas

libertam as impurezas

que num gesto infrutífero

tento desprender

para um esconderijo

distraído dessas marés

que chegam e abalam

que lambem a areia

como um réprobo

reza a sua última prece
.

Autor:© Piedade Araújo Sol

17/08/2005

Foto:Paulo César

Modelo:Paulo Madeira