domingo, 30 de agosto de 2015

Há dias em que em ti talvez não pense

Steve Walker

Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio

Autor : Gastão Cruz
in Fogo (Assírio & Alvim, 2013)

sábado, 29 de agosto de 2015

Sempre

Mathieu Chatrain
sempre que uma praia se levanta
és sempre tu que me tocas
e sempre tu quem aceita o sorriso
é sempre o sol embrulhado em terra pura
e sempre pura a voz que a terra canta
porque se ouvires a água na pedra
a água que sempre nos meus lábios sabe a ti
se ouvires a água na pedra tens a lua
a manhã o cereal de espuma que não pára de crescer
nos lábios teus que a água dos meus conhece
como o sol procura o dia e sempre acha a noite
e é na noite que sempre te digo
que sempre te juro as mãos enormes
e levanto a praia que tu levantas
quando sempre acordamos
e na nossa nudez se esconde a noite
em que lábios nos lábios criámos o mar
.

Autor : © Vasco Gato

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Sabíamos

Nishe
Sabíamos ambos,
que no peso de uma folha
e em cada palma da mão suada
estava o mosto da vida, as flores e as borboletas.
Sabíamos ambos,
que no sabor a sal da pele
e em cada perder dos nossos medos
havia um travo salgado que nos enchia a alma de sentires.
Sabíamos ambos,
que no calor ventos
e em cada assomo das ondas do mar
naufragavam e escorriam-nos os sentimentos.
Não sabíamos porém…
que na luz dos nossos sonhos
nascia um sopro inquieto
que nos fazia perdidos no meio dos caminhos.
E não sabíamos que os desejos
desaguavam num mar de esquecimentos.

Autor © António Carlos Santos )
In: Livro de poesia: "Da Geometria Do Amor"

terça-feira, 25 de agosto de 2015

não me deixes morrer longe do mar

Elizabet Gadd

não me deixes morrer longe do mar
das vagas de palavras que me sussurras
quando fechas os olhos espraiando os lábios
e as tuas mãos são algas apetecidas

não me deixes morrer longe do mar
das asas aladas de pássaros vivos
que ecoam as noites em amor escritas
salgadas por temperos escondidos

não me deixes morrer longe do mar
das marés tão certas de incerteza
como a vida preceder o tempo
ou o horizonte ser infinito com rosto

não me deixes morrer longe... de ti

Autor : Margarida Vieira
in Segredos Tecidos à mão


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

mãe,

Duy Huynh

mãe, eu sei que ainda guardas mil estrelas no colo.
eu, tantas vezes, ainda acredito que mil estrelas são
todas as estrelas que existem.
.
Autor : José Luís Peixoto
in a Casa A Escuridão

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Fica

Marta Orlowska

Fica…
Não me abandones os teus silêncios de vidro
onde se exila a tua verdade clara,
não abandones em mim
esses teus lugares suspensos, adormecidos,
onde a madrugada pura se expande em cânticos
de aves azuis.

Aguardo-te amanhã,
naquele beiral perto do céu
onde se avista o campo de lilases
semeado com todas as tuas palavras súbitas
para mim.
Fica...

Autor : MARIA JOÃO SARAIVA
in RIO DE DOZE ÁGUAS, 12 POETAS (Coisas de Ler, Ed., 2012)

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CHAMAR-TE MEU AMOR


Dizer que tudo em ti é movimento
e que há corças nas selvas em redor
do amor que às vezes faço em pensamento
... ou do que eu penso quando faço amor.

Dizer que em tudo escuto a tua voz
... no mar no vento na boca das searas
o maior amor do mundo somos nós
cobrindo a solidão de pedras raras.

Dizer tudo o que eu digo nunca basta
pois para ti não chegam as palavras
"meu amor" é uma expressão que já está gasta
mas tem sempre um aroma de ervas bravas.

É por ti tudo o que faço e digo e chamo
por ti eu tudo invento e tudo esqueço
dou tudo o que há em mim quando te amo
mas nem sei meu amor se te conheço.

Autor : Joaquim Pessoa

domingo, 16 de agosto de 2015

A viagem ainda não começou



Diante de nós havia, o tempo. Apenas o tempo
A tarde era de bonança mas as gaivotas insistiam em voar
E o tempo passava. Acendes-te um cigarro. E em leves baforadas de fumo,
disseste que não gostavas de conversas sérias, nem de rotinas.
Nem de coisas sérias.  E as gaivotas continuavam a cirandar,  alheadas de tudo .
A tua voz tornou-se um sussurro. No tempo.E nesse dia.

Hoje quando a noite desponta.
Eu sei que o dia retornará e a minha viagem ainda não começou.

BeatriceMar
2014-10-19
Reeditado

sábado, 15 de agosto de 2015

Saudade



Segue-me noite e dia o teu desejo!...
Oiço a tua voz rúbida e cantante
Suplicar-me a carícia do meu beijo,
numa teima exigente e perturbante!

E o meu corpo vencido, dominado,
vai tombar doloroso, inconsciente,
sobre a lembrança morna do passado
- e fica-se a sonhar... perdidamente!

Autor : Judith Teixeira
in 'Antologia Poética'

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

É


É tão fácil amar lugares
que não existem

recordar praças e pontes e travessas
onde nunca morremos por ninguém

quartos na penumbra de estores corridos
sobre a sonolência dos gatos em agosto
onde nunca chegámos atrasados

o tampo de mármore de mesas de café
onde as nossas mãos não se esconderam
por alguém ter entrado antes de nós

é tão fácil lembrar nomes e rostos e destinos
e colocá-los em nossos ombros e festejar com eles
as luminosas horas em que a vida
nos rodeava a cintura como um amante possessivo
e nós repetíamos o nome das cidades
onde nada disso tinha acontecido

é tão fácil assim
dizer adeus
sabendo que deus nem sequer assiste
à despedida

Autor : Alice Vieira
DEVAGAR NO CENTRO DO FOGO
Pág 59

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

podes levar os dias que trouxeste

Artem Yankovsky

podes levar os dias que trouxeste
os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue

podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois

daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido

não é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites

as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca

podes levar os dias que trouxeste

Autor : Pedro Sena-Lino

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Chovo



Chovo sentada dentro de mim.
Foste e contigo a tua pele
que me secava as lágrimas de silêncio.
Contigo foram as mãos, o abraço,
o beijo lavado e inteiro.
Da minha gruta já é doloroso sair.
Os meus olhos, outrora largos,
apertam-se para fugir à chama agressiva.
Estou fria e desabitada.
Vem.
Aqui o tempo partiu do tempo.
Só tu podes consertar os ponteiros despedaçados da
memória.
Contigo os ventos virão
e as aves que tinham desistido,
vão nidificar de novo no meu colo.


Autor : Lília Tavares
in Parto com os Ventos (Kreamus, 2013)

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

E nisso haver. E nisso persistir.

Frederico Erra

E nisso haver. E nisso persistir.
Pensar perder-me em nada diluído
pela bola de neve que me desses
instantânea mas branca. Conseguir
amores de bruma e de estampido
num espaço que não sei e onde teces
a tua tempestade.

Correr a mão
pelo corpo que tens em tempos quedos,
deixá-la ir pelos agostos fartos
pelas horas de ceifas e de verão.
Deixar que a tua pele me guie os dedos
para chegar aos olhos e fechar-tos.

Autor : Pedro Tamen

domingo, 9 de agosto de 2015

devaneios

 Haleigh Walsworth

o teu corpo lembra-me 
 os pássaros,
é leve e doce.

por vezes, eu ainda,
voo nele.

BeatriceMar 2014-05-20
Reeditado

sábado, 8 de agosto de 2015

"Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora"

Bogna Altman

Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora,
a primavera agitar-se-á num desespero verde,
calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs.
,
Eu poderia dizer que sem os teus cabelos a chuva não cairá durante séculos,
o inverno recolherá as suas crinas de água
e semeará punhais por toda a terra.
,
Eu poderia dizer que sem os teus olhos nenhuma madrugada rodará o seu vestido de estrelas,
nenhum barco achará o porto,
nenhuma ave encontrará o ninho.
,
Eu poderia dizer que sem os teus seios a loucura apagará fogueiras,
a noite enforcará todas as rosas,
as abelhas terão a morte mais amarga,
as dunas recusarão as mãos do vento.
,
Eu poderia dizer que sem o teu corpo nenhum rio chegará ao mar,
os afogados cantarão o silêncio em todas as praias
e uma dor violenta impedirá o sexo dos amantes.
,
Eu poderia dizer que sem as tuas mãos não haverá uvas nem águias nem corolas,
nenhuma porta se abrirá de novo,
nenhum gesto será mais possível.
,
Oh, meu amor!,
eu poderia dizer tudo,
poderia inventar tudo. Mas não. De ti
direi apenas que não voltas. Ficarei
ainda e sempre e sempre e sempre
à tua espera.
.
Poema XX
.
Autor : Joaquim Pessoa
in " Os Olhos de Isa" (1979)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

6


esperei por ti em todos os lugares errados
- a quem pedir agora explicações?

viver diziam-me era assim e não havia
mistério nenhum nisso apenas
um roteiro obscuro estabelecido
entre o que tem de acontecer e aquilo
que não acontece nunca

e diziam-me ainda ninguém pode
com justiça reclamar
o que há tantos anos abandonou
num sombrio patamar de prédio suburbano

perdemo-nos então
por pensamentos palavras actos e omissões
e todas as palavras recuaram por infinitos precipícios
sem reconhecerem o som da nossa voz
nem o eco das noites em que todas
nos tinham pertencido

num sombrio patamar de prédio suburbano

Autor : Alice Vieira
Dois Corpos Tombando na Água
Pág 26

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

A pele ia imitando o céu como podia

cristophe gilbert

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.

Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.

Autor : Luís Miguel Nava

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Esta Noite Morrerás


Ana Hatherly 
Porto  08 de Maio de 1929
Lisboa  05 de Agosto de 2015



Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus
passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito
é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos,
a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço
um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca
dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de
noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe
o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão
mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos
teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.

Ana Hatherly
in “Poesia 1958-1978”

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Mesmo que o rosto



Mesmo que o rosto
seja outro encanto no teu canto

Mesmo que os pássaros
sejam só aves
cautelosas nesta mão

Mesmo sendo já folha
ou ninho de verão

serei continuamente tua
como tão nenhuma
há-de ser para Ti!…

Ana Maria Domingues
in Cartas a Romeu (Ed. de Autor, 2013)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Como podemos esperar

Kyio Murakami
Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.

Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».

Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aqui

como podemos esperar uma noite de lua e vento?

Autor : João Miguel Fernandes Jorge
in "Direito de Mentir"

domingo, 2 de agosto de 2015

Nomeei-te no meio dos meus sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Autor  : Ruy Belo

sábado, 1 de agosto de 2015

SÁBADO



Um sábado como qualquer outro. E único. Belo azul frio no céu--tecto do mundo e dos dias--saio da concha de mim e vejo o mar das ruas. Sei que estão diferentes, que alguma coisa se perdeu ou acrescentou, mas não distingo. Por essa nuvem de não saber, entra o chumbo liquefeito do tédio. Estarei com os meus companheiros que velam pela beleza do mundo. Encontrarei argumentos, debates, entoarei em voz... clara as vitórias que enaltecem e os perigos que estimulam; esforços onde o fogo se acalme e gaste e nada será suficiente, nada será absoluto. Sei que é um dia de fevereiras emergências. Os caminhos são estes, fui eu que os desenhei sem ao menos uma lição de pintura. Entra o gelo pelo coração acima, por vezes, as veias destravam, ignição desesperada na procura. O Nada sempre triunfa, até o velho jacarandá toma as dores de uma dignidade magoada, uma pose de madeiras gastas, mas de pé. Assume, vegetal, a transcendente banalidade do aprumo e da coragem. Contra ele o vento já nada pode e nada quer. Nada vence.

No meio de grandes decisões e rasgos, de alterosas fúrias, de afirmativos propósitos, escondido procuro a periferia de tudo, uma só hora que brilhe, encanto, inocência pristina, talvez um sorriso, um aceno de ternura ao longe com o sol posto rindo-se da ousadia, ou olhos impossíveis, na neblina do passado ou na pálida cinematografia de um sonho a cores. Nada é real, Nada fica.

Um sábado como nenhum mais.

Autor:Bernardino Guimarães