quinta-feira, 28 de abril de 2022

A avidez da morte

Quem nos contará
o que o morto sabia
mas não disse?

Quem há-de escrever as cartas
que o morto não escreveu?

Qual de nós poderá lembrar-se
de quem só o morto ainda tinha lembrança?

Quem amará a mulher que apenas o morto amava?

Quem há-de medir o vazio,
a herança de silêncio
que a Morte nos deixou?

Autor : José Paulo Moreira da Fonseca,
in 'O Tempo e a Sorte'

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Não esqueças o meu nome

 

Um nome é uma eternidade mesmo no silêncio,
quando as aves não regressam à árvore e a noite se fecha.
Digo o teu nome, uma sílaba, e uma cascata de luz consubstancia a verdade.
Sal de lume, se te chamo, mais alto que os voos, o teu nome.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
in “Não esqueças o meu nome”, Poética Edições.
Imagem : Annegien Schilling

terça-feira, 26 de abril de 2022

O dia da liberdade

 

Este dia é um canteiro
e veleiros lá ao largo
navegando a todo o pano.
E assim se lembra outro dia febril
que em tempos mudou a história
numa madrugada de Abril,
quando os meninos de hoje
ainda não tinham nascido
e a nossa liberdade
era um fruto prometido,
tantas vezes proibido,
que tinha o sabor secreto
da esperança e do afecto
e dos amigos todos juntos
debaixo do mesmo tecto.


Autor : José Jorge Letria

domingo, 24 de abril de 2022

Hoje sobra-me tempo

Já estamos em Abril, eu nem me apercebi
A hora mudou, esqueci-me de mudar os relógios
É hora de ir embora, arrumo as coisas que estão em desalinho na secretária
Sinto que já foram todos embora
só eu ainda permaneço neste prédio
vazio e inóspito

Lá fora a tarde está enevoada
Ao longe sinto ecos de uma música
Que parece chamar-me
Estugo o passo e sigo pela rua
Vou ao encontro dela
Vem de um piano bar

Entro

É ainda cedo e está pouca gente
O pianista de costas para mim
Toca num tom alheado sem me ver
Peço algo e fico ali a queimar tempo

Tempo
Tudo reclama dele, eu, hoje sobra-me
Tempo

Faz anos que partiste
E depois eu já não sei que faço do tempo
Este, que me resta!

Eu sei que em casa me espera a gata
E uma cama vazia
.
Autor : BeatriceMar 2014-04-06

sábado, 23 de abril de 2022

Aos Poetas

 que faremos poetas aos cravos
roxos e libertos de maresia?que faremos às pernas do dia
que faremos maduramente em cachos?

que faremos é pôr as mãos no lume
viver é ter figueiras de abandono no quintal
morrer é balizar o sol com perfume.

Que faremos poetas antes do render
das botas ao chafariz dos versos?
que faremos a estes calhaus dispersos
– ilhas de carne e osso com a lava a escorrer?

cantar é desfolhar as rosas da garganta
gritar é ter nas veias a raiva dos fortes?
amar é sempre um medo que se canta.

a nada nos obriga a posição dos mortos?

Autor : Álamo Oliveira
(in 14 Poetas de Aqui e de Agora. Angra do Heroísmo, 1974)


sexta-feira, 22 de abril de 2022

Poesia engarrafada

Se a morte é certa que seja dia
Que seja poesia
Que seja grande
Que seja par-ti-da
Não de ida
Mas de mil pe-da-ços de volta
E na volta
Que eu seja flor
Que eu seja sorte
Sor-ti-da
Ah!
Que eu seja Vida.

Autor : Adriana Magalhães 11 de dezembro de 2015 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Um Dia Não Muito Perto Não Muito Longe

Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?

Autor : Ruy Belo
Imagem : Christiane Vleugels

quarta-feira, 20 de abril de 2022

O avô disse ao gato

 
O poema não é uma asa-delta com um poema
não se levanta voo com um poema somos bem capazes
de nem ir a lado nenhum.

O poema é apenas uma forma delicada
de um homem se despenhar
sobre os destroços de um outro homem.

Autor : Catarina Nunes de Almeida
In O dom da palavra (com desenhos de João Concha), não (edições), Lisboa, 2016.
Imagem Lindsey Kurtusch

terça-feira, 19 de abril de 2022

Canção à Ausente

Para te amar ensaiei os meus lábios...
Deixei de pronunciar palavras duras.
Para te amar ensaiei os meus lábios!

Para tocar-te ensaiei os meus dedos...
Banhei-os na água límpida das fontes.
Para tocar-te ensaiei os meus dedos!

Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!
Pus-me a escutar as vozes do silêncio...
Para te ouvir ensaiei meus ouvidos!

E a vida foi passando, foi passando...
E, à força de esperar a tua vinda,
De cada braço fiz mudo cipreste.

A vida foi passando, foi passando...
E nunca mais vieste!

Autor : Pedro Homem de Mello, in "Segredo"
Imagem : Mónia Merlo

domingo, 17 de abril de 2022

Ruas

 

Ando por ruas e acho-as aparentadas
umas com as outras, no entanto
eu sei que são todas desiguais.

Gosto de encontrar ruas novas,
para perscrutar,
e por vezes acho que as conheço,
mas sei que nunca por ali caminhei.

As ruas para mim são enigmáticas,
e cheias de curiosidade,
que me levam a um mundo,
que construo só para mim,
e que ninguém pode entender.

Autor : BeatriceM 2022-04-16
Imagem : Silena Lambertini

sábado, 16 de abril de 2022

Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

Autor : Mia Couto, 
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Imagem : Taylor Rayburn

sexta-feira, 15 de abril de 2022

Árvore fantasma

 

A árvore vã
segura o abandono
da estação

ela nunca escolhe
mas não arreda pé
de sua substância
ferida na seiva

desmancha-se
na sua profundidade
esperando atrair
os pássaros dementes
perdidos de seus ventos

Autor : Solange Firmino
No livro “Quando a dor acabar”, da @caravanagrupoeditora

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Poema da Utopia


A noite caiu sem manchas e sem culpa.
Os homens tiraram as máscaras de bons actores.
Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.
No alto, a utópica lua, vela comigo
e sonha inutilmente com a verdade das coisas.

- Noite! Deixa-nos também dormir...

Autor : Fernando Namora
Imagem : Taylor Rayburn

quarta-feira, 13 de abril de 2022

...

 

nenhuma montanha repõe o silêncio
que legaste às aves
a aridez das serranias revela    isso sim
o deserto dos teus lábios
a rarefação do teu sentir
afastas-me  

                      que importa
deixo o vento levar a forte carapaça do teu existir
pois o mar malgrado o vaivém inconstante das ondas
mantém-se fiel à tua sede

© Margarida Afonso Henriques (a publicar)
Imagem : Olga Domanova

terça-feira, 12 de abril de 2022

...

Também eu trago a saudade
nos sentidos

se dissesse que não
era mentira

Também eu perdi um cão
casas
rios

Mas hoje
tenho mulher
amigos
e uma saudade mais real
é que me inspira

Autor : António Reis, 
in 'Novos Poemas Quotidianos'
Imagem : Maria Magdalena Oosthuizen

domingo, 10 de abril de 2022

...


o brado do vento,
infestou a praça,
com um eco seco.

só as árvores amedrontadas
permaneceram de pé.

calada e receosa, entrei em casa,
com o meu sonho oculto,
nas algibeiras do vestido,
para não se perder.

Autor : BeatriceM 10-04-2022
Imagem : Joan Carol

sábado, 9 de abril de 2022

A sombra sou eu


 A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.

Sombra de mim que recebo luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei dó que seria
se de minha sombra chegasse a mim.

Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e que não me persigo.

Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Autor : José de Almada Negreiros

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Do dever

 
O fardo da montanha é quase tocar o céu
o fardo da nuvem é durar pouco
mesmo quando acaba a chuva

certos encargos são estranhos
pois o fardo da caverna é não conter vento
e o fardo do vento é ser abafado
em espaços muitas vezes minúsculos

o fardo humano é um tormento
pois não sabe se busca por Deus
ou se Deus o habita

Autor : Solange Firmino
In “Quando a dor acabar”
Imagem : Katharina Jung

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Recomece

Quando a vida bater forte
e sua alma sangrar,
quando esse mundo pesado
lhe ferir, lhe esmagar...
É hora do recomeço.
Recomece a LUTAR.

Quando tudo for escuro
e nada iluminar,
quando tudo for incerto
e você só duvidar...
É hora do recomeço.
Recomece a ACREDITAR.

Quando a estrada for longa
e seu corpo fraquejar,
quando não houver caminho
nem um lugar pra chegar...
É hora do recomeço.
Recomece a CAMINHAR.

Autor :  Bráulio Bessa
imagem Leszek Paradowski

quarta-feira, 6 de abril de 2022

A cabeça é que paga

 


Silêncio
Ela pediu
Silêncio
ao rádio do carro,
aos pais, aos irmãos,
aos chefes, aos amigos.

Só a cabeça
não respeitou o seu pedido.

Autor : Filipa Leal
(in A Cidade Líquida e Outras Texturas,

terça-feira, 5 de abril de 2022

Não é a tua mão


Não é a tua mão
filha

que eu levo
na minha mão

é uma raiz
que eu planto
em mim mesmo

Autor  : António Reis, 
in 'Novos Poemas Quotidianos'

domingo, 3 de abril de 2022

Momentos Efémeros


Os pingos de chuva encharcam a alvorada,
e a cidade, respira apática ao momento,
efémero.

Amarroto bem no fundo do meu peito,
esta solidão que ninguém quer,
nem eu.

Levanto a cortina,
e por entre os pingos ,
eu sou, e só, apenas um vulto.

Autor :BeatriceM 16-03-2014

sábado, 2 de abril de 2022

Trova do Mês de Abril

 

Foram dias foram anos a esperar por um só dia.
Alegrias. Desenganos. Foi o tempo que doía
Com seus riscos e seus danos. Foi a noite e foi o dia
Na esperança de um só dia.

Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias.
Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias)
Mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida)
Por um só dia vivida.

Foi o tempo que passava como nunca se passasse.
E uma flauta que cantava como se a noite rasgasse
Toda a vida e uma palavra: liberdade que vivia
Na esperança de um só dia.

Musa minha vem dizer o que nunca então disse
Esse morrer de viver por um dia em que se visse
um só dia e então morrer. Musa minha que tecias
um só dia dos teus dias.

Vem dizer o puro exemplo dos que nunca se cansaram
musa minha onde contemplo os dias que se passaram
sem nunca passar o tempo. Nesse tempo em que daria
a vida por um só dia.

Já muitas águas correram já muitos rios secaram
batalhas que se perderam batalhas que se ganharam.
Só os dias morreram em que era tão curta a vida
Por um só dia vivida.

E as quatros estações rolaram com seus ritmos e seus ritos.
Ventos do Norte levaram festas jogos brincos ditos.
E as chamas não se apagaram. Que na ideia a lenha ardia
Toda a vida por um dia.

Fogos-fátuos cinza fria. Musa minha que cantavas
A canção que se vestia com bandeiras nas palavras:
Armas que o tempo tecia. Minha vida toda a vida
Por um só dia vivida.

Autor : Manuel Alegre
Imagem : Piedade Araújo Sol