terça-feira, 31 de julho de 2018

Deixa-me dar-te o verão


Paul Kelley

O verão é feito de coisas
que não precisam de nome
um passeio de automóvel pela costa
o tempo incalculável de uma presença
o sofrimento que nos faz contar
um por um os peixes do tanque
e abandoná-los depressa
às suas voltas escuras.


Autor : José Tolentino Mendonça
In De Igual para Igual, 2001.

domingo, 15 de julho de 2018

Asas

Cristina Coral

Não sei porque tirei as sandálias, e  entrei na noite a procurar, um sonho em forma de pássaro.

É noite, e os pássaros já se recolheram nos seus ninhos.

Eu sei que o sonho tem asas, e  um dia eu também quero regressar ao lugar dos passáros mesmo que não tenha asas.
.
BeatriceM 2012-07-15

sábado, 14 de julho de 2018

Entre a flor e o perfume


ashraful arefin

Entre a flor
e o perfume
não há divórcio.

Entre ontem
e hoje
não há intervalo.

Entre o sono e o sonho
é mudo
o diálogo.

Entre o êxito
e o fracasso
a distância é um degrau.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Aquele que aproxima os que sempre estarão

maurizio raffa

Aquele que aproxima os que sempre estarão
distantes e desunidos
e separa os que pareceriam
para sempre unidos e semelhantes
enxuga meus olhos
no alto da noite de mil direcções.
Encostada a seu peito,
contemplo desfigurada
o negro curso da vida
como, um dia,
do alto de uma fortaleza
vi a solidão das pedras milenares
que desciam por suas arruinadas vertentes.

Autor : Cecília Meireles

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Verão

Paul Kelley

a paisagem dissolve-se
na cintilação.
Cresce a cobra
na vereda de som a explodir
na carqueja.
Fecha-se a poeira
gota a gota na luz.
Abre-se
na pedra a ruga.
O seu gume
sorri na boca.
Um nome
suporta a voz.
A trepadeira.

Autor : Rui Nunes

quarta-feira, 11 de julho de 2018

Noite

vino morais

Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios...
Há cantos de tungurúluas pelos ares!

Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros

Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...

E os meninos brancos cresceram,
e esqueceram
as histórias...

Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...
como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...

É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...

Os meninos-brancos... esqueceram!...

Autor : Alda Lara
1948-Outubro (Poemas1966)

terça-feira, 10 de julho de 2018

Passei a vida a servir

ashraful arefin
Passei a vida a servir
os meus dias passei-os a chorar
no meu mundo
meu inferno.

Os braços trabalhando
para um mundo alheio
os meus dedos musicando
para o mundo alheio

Meu mundo
meu inferno.

E ainda choro hoje
mas de vergonha
de pejo
por ter vivido num mundo inferno
sem ter tido ao menos alma para morrer

Autor: Agostinho Neto

domingo, 8 de julho de 2018

Enigma

ashraful arefin

Não sei porquê – ainda
Oculto as pétalas das rosas – secas
Entre o livro que me deste

E
Na lezíria em silêncio
O sol feneceu entre o fogo
E a lua a contestar o seu domínio

Entre as nuvens a namorar o mar
Eu ainda espero por ti
.
Autor : BeatriceM

sábado, 7 de julho de 2018

O sonho

ashraful arefin
Pelo sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
Pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

-Partimos. Vamos. Somos.

Autor : Sebastião da Gama


sexta-feira, 6 de julho de 2018

Meu Destino


Anka Zhuravlva

Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.

Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.

Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.

Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...

Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.

Esse dia foi marcado
com a pedra branca da cabeça de um peixe.

E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

Autor: Cora Coralina

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Poema

Brooke Shaden

Uma nota só, de desordem persistente,
a vibrar no abismo das coisas,
no mapa dos delitos;
acarinhando o pequeno remorso precioso
dos fins por atingir;
dobrando o tempo numa curvatura baixa
que cinge os tornozelos
da fugidia esfinge;
uma nota só, de correcção insidiosa,
na dádiva natural do tempo já vivido,
de dor aflitiva pela palidez das coisas
e o seu nome por dizer.

Falando sempre, sempre lamentando
o que ficou por decidir.

Autor : © ANTÓNIO MEGA FERREIRA
In O Tempo que nos Cabe, 2005

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Não tenhas medo do amor

cristina coral
Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão 
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e a genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca

foi só inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Autor : Maria do Rosário Pedreira
in 'Poesia Reunida'

terça-feira, 3 de julho de 2018

Aurora

Katharina Jung

A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

Autor : Adolfo Casais Monteiro
in 'Voo Sem Pássaro Dentro'

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Eis-me

Sophia de Mello Breyner Andresen foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999. (Wikipédia)
Nascimento: 6 de novembro de 1919,Porto
Falecimento: 2 de julho de 2004, Lisboa


Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo
[em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Autor : Sophia de Mello Breyner Andresen

in 'Livro Sexto

domingo, 1 de julho de 2018

Sei de um palco

Kolja Tatic


Sei de um palco
Onde o cenário é sempre igual
E sempre diferente

Declamo e danço ao som
Da música que faço e que ninguém ouve
E dos sonhos que tenho
E que lanço generosamente por aí

Sei de um palco
Mas nunca sei as cenas
Nem o enredo

É tudo espontâneo
Real
Brutal
E nem sempre perfeito

É a vida….

Autor : Beatrice