sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Epílogo

Benjamim Von Wong

Vocês, melhor aprenderem a ver, em vez de apenas
Arregalar os olhos, e a agir, em vez de somente falar.
Uma coisa dessas quase chegou a governar o mundo!
Os povos conseguiram dominá-la, mas ainda
É muito cedo para sair cantando vitória:
O ventre que gerou a coisa imunda continua fértil!

Autor : Bertolt Brecht

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

queria que me acompanhasses


queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos

Autor : Ana Paula Inácio

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Muito acima das nuvens seja o centro

Sacha Kalis

Muito acima das nuvens seja o centro
das nossas misteriosas poéticas
o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
nos ermos mais altos
mais desaparecidos


Autor: Mário Cesariny

domingo, 25 de novembro de 2018

sem rédeas



sem rédeas
és um potro que corre
livre e ágil
na planície
em cores de palha seca.
.
nessa inquietação de ser
nem tens tempo
para que libertes
também
.
a esperança que nos estorva
a nossa própria pequenez

Autor :BeatriceM 2011/11/23

sábado, 24 de novembro de 2018

Amor sem tréguas

Pascal Campion

É necessário amar,
qualquer coisa, ou alguém;
o que interessa é gostar
não importa de quem.

Não importa de quem,
nem importa de quê;
o que interessa é amar
mesmo o que não de vê.

Pode ser uma mulher,
uma pedra, uma flor,
uma coisa qualquer,
seja lá do que for.

Pode até nem ser nada
que em ser se concretize,
coisa apenas pensada,
qua a sonhar se precise.

Amar por claridade,
sem dever a cumprir;
uma oportunidade
para olhar e sorrir.

 Autor : António Gedeão

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Fascínio

Leah Johnston
a face oculta das palavras
às vezes se mostra
na mais estranha luz
e a parte escura
nunca antes revelada
aflora
ousada
com uma intimidade inesperada
como a primeira claridade
de uma aurora.
Todas essas malditas paalvras sem pudor
que eu queria afugentar
mandar embora.

as palavras elas, as palavras
suas luzes, seus ritimos, significados.
.

Autor : Bruna Lombardi

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

o riso útil

roberto liang


o riso útil da amorosa
retine de tal maneira
no pobre quarto côr-de-rosa

que as tuas mãos de senhor
já não sabem por que milagre
ainda é puro o amor

Autor : Mário Cesariny

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Entretenimento

Alexey Polkiy

Como quem procura conchas à beira do mar
 escolho as palavras para te dizer
 quando o silêncio dos teus braços
 vestir o frio dos meus ombros

Autor : Luísa Dacosta

terça-feira, 20 de novembro de 2018

..





Disse-te adeus e morri
E o cais vazio de ti
Aceitou novas marés
Gritos de búzios perdidos
Roubaram aos meus sentidos
A gaivota que tu és
Gaivota de asas paradas
Que não sente as madrugadas
E acorda à noite, a chorar.
Gaivota que faz um ninho
Porque perdeu o caminho
Onde aprendeu a voar
Preso no ventre do mar
O meu triste respirar
Sofre a invenção das horas
Pois na ausência que deixaste
Meu amor, como ficaste
Meu amor, como demoras.

Disse-te Adeus e morri!

Autor : Vasco de Lima Couto

domingo, 18 de novembro de 2018

Eu escrevo amor


Eu escrevo amor. E nem sei porquê. Não sou eu a pessoa certa para escrever amor, e não saber explicar o que é o amor. E tu ris. Ris muito. Olhas – me e só ris, não falas, e no entanto eu seria capaz de dizer que te ouvi dizer baixinho que eu sou o amor, que sou o teu amor e que isso basta. Mas eu sei que nem estás aqui e que não falaste. Deves estar em algum lado a ouvir música ou no cinema com alguém. E eu volto a escrever amor. Assim: AMOR. E acho que estou com uma expressão idiota e cândida e nem sei porque estou aqui a meio da tarde a fazer figura de parva, enquanto tu nem deves lembrar (mais) que eu existo. E eu que estou aqui a escrever amor, como se fosse um filme que se desenrola e onde todos sabem o que significa amor, menos eu. E tu ris e dizes que eu sou lunática. E eu sei que nem falaste que sou eu que oiço vozes e que oiço a tua. E tu nem sabes que eu estou aqui a escrever a palavra amor e que acho que sei o que significa, mas que não sei explicar. Acho que é um subterfúgio apenas para pensar que um dia ainda me dizes. 
És o meu amor!

BeatriceM 2012-11-11 reeditado

sábado, 17 de novembro de 2018

Dia

Com um peso de cegueira a esmagar-me o cérebro,
Face queimada pelo vento contra
E trôpego dos passos que venci em vão,
Atinjo a hora convencional da noite
Em que não há descanso já
Pois o sono é vazio de si mesmo
E mais que nunca durmo só por fora.

Desperto?
Passou um dia? Um ano?

É cinzenta de chumbo a claridade.
É cinzenta de chumbo a escuridão.

No tempo que não pára
Este minuto Aqui
Quanto espaço nos rouba?

Autor : Edmundo Bettencourt
in poemas de edmundo de bettencourt

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

amanhã vou comprar umas calças vermelhas

Josephine Cardin

amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.


Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícolaafiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.

Autor : Ana Paula Inácio
Vago Pressentimento Azul por Cima, Porto: Ilhas, 2000

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

abandono

karen hollingsworth

A quem senão a ti direi
como estou triste? Mas se a tristeza vem
de tu não estares, como ta direi, como hei-
-de juntar o que me está doendo ao vento
que não bate mais à tua porta? Eu sei

que a tristeza é só isto, é só isto,
o descoincidir consigo mesmo, eu sei,
descoincidir com os outros, estava previsto
porque dentro de si o mundo não coincide e
não há senão tristeza. Em cada um está Cristo

sempre abandonado, cada um abandonado
a si mesmo, sem princípio e sem fim,
pois no princípio o amor era dado
promessa de te ter sempre junto a mim
não ausência, nem dor, nem habitado

ser por todo este absurdo. Morrer
um pouco, disse, sem saber o que dizia
pois eram só palavras, como se a prometer
tudo aquilo que havia e não havia.

Não haver palavras és tu a desaparecer

Autor :  Bernardo Pinto de Almeida

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

A recusa das imagens evidentes

Marcela Bolivar

Há noites que são feitas dos meus braços
E um silêncio comum às violetas.
E há sete luas que são sete traços
De sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
Como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
Duma espada à bainha dum cometa.

Há noites que nos deixam para trás
Enrolados no nosso desencanto
E cisnes brancos que só são iguais
À mais longínqua onda do seu canto.

Há noites que nos levam para onde
O fantasma de nós fica mais perto;
E é sempre a nossa voz que nos responde
E só o nosso nome estava certo.

Há noites que são lírios e são feras
E a nossa exactidão de rosa vil
Reconcilia no frio das esferas
Os astros que se olham de perfil.

Autor : Natália Correia
In A rosa do mundo 2001 poemas para o futuro

terça-feira, 13 de novembro de 2018

regresso da noite

E, no fim de cada noite,
no fim da trabalhosa noite
barrela de cada noite
– se acaso a noite cumpriu
a missão de que está encarregada –
regresso à luz o dia de alma enxuta,
pronta para ser passada a ferro.

Autor : A.M.Pires Cabral
in a noite em que a noite ardeu

domingo, 11 de novembro de 2018

Ainda

sayaka maruyama


tantas vezes – ainda
são a memória dos teus dedos que me tocam
que deambulam 
e correm como um rio na procura desenfreada
da foz
no meu corpo
ainda – sempre – teu.

tantas vezes – ainda
chega-me o cheiro verde de mentol
do teu hálito no meu

e o corpo – o meu
ainda - sempre
continua solitário - à espera do teu.

Autor : BetriceM 2011-11-06
.

sábado, 10 de novembro de 2018

...

stephen carroll

Quero falar-te das horas incandescentes que antecedem a noite e não sei como fazê-lo. Às vezes penso que vou encontrar-te na rua mais improvável, que nos sentamos diante do rio e ficamos a trocar pedaços de coisas subitamente importantes: a tua solidão, por exemplo.
Mas depois, virando a esquina, todas as esquinas de todos os dias, esperam-me apenas as aves que ninguém sabe de onde partiram.

Autor : Vasco Gato

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

como se o vento trouxesse

sayaka maruyama

como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?

Autor : Ana Paula Inácio
In Vago Pressentimento Azul Por Cima

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

...


Não sei nem mais dizer
O que sinto por você...
Se é amor...
Se é amizade...
Se é paixão...
Mas suspeito fortemente
Que seja tudo isso junto!

Autor : Augusto Branco

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

O teu amor absoluto


leah johnston

O teu amor absoluto
é como a hera que envolve as paredes da casa.
Quero ser a casa
e que arranhes a cal da minha pele
e te aninhes nos meus ouvidos fendas
e perturbes a porta minha boca.
E por fim
procures o perigo das janelas
e enfrentes os meus olhos
infinitos de mágoa
noite e assombração.

Autor : Rosa Lobato de Faria

Guimarães Editora, 2012

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Hoje...


Pascal Campion

hoje vou fugir contigo
vou levar-te a lugares que só eu sei
vou ensinar-te a subir às árvores

a olhar o mundo inteiro lá de cima
vais aprender a reter a água
nas palmas das mãos
e talvez consigas à primeira
respirar o azul que o céu tem
e no fim vais perceber
que os dias são mais curtos
quando estamos juntos


Autor: José Rui Teixeira

domingo, 4 de novembro de 2018

olho através da vidraça

sharon sprung

olho através da vidraça, e, ainda sinto na (minha) pele
o sabor da entrega
no dia em que precedeu
a noite (em mim.

depois de tantas luas, ainda acordo com
sinais do teu corpo, no meu
e sei que, nunca mais, nunca mais.

seremos pele e beijo.

BeatriceM  2013.11.03

sábado, 3 de novembro de 2018

Retrato

irina mastalyarchuk

Fui só eu que estraguei as alvoradas
- presas suaves nos plúmbeos céus!,
e dei água aos ribeiros da minha alma
e fiz preces de amor e sangue, a Deus...

Fui só eu que, sabendo da tormenta
que o vento da nortada me dizia,
puz meus lábios no sonho incompleto
e rasguei o meu corpo na poesia.

Vieram dar-me abraços e contentes
viram que me afundava sem remédio
- nem um grito subia do horizonte
há mil anos deitado sobre o tédio!

Quando chamaram por mim do imenso rio
que a noite veste para se entreter
vi que os barcos andavam cheios de almas
buscando sonhos para não sofrer.

Cantavam doidas como a dor e a morte
parando, a espaços, para ver montanhas
e eram luzes mordidas pelas sombras,
corajosas, infelizes - mas tamanhas!

Eu fugi de as ouvir (que ardentes vozes...)
de navegar nas mesmas ansiedades
e fui sozinho semear as luas
e a natureza inculta das idades.

Parti, negando à vida o seu direito,
recalcando os meus sonhos e os meus medos...
sei agora que matei o meu destino
e quebrei o futuro nos meus dedos.

Autor : Vasco de Lima Couto, in Os Olhos e o Silêncio - 
1952

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Palavras

Mirella Santana

Tocam-me
 como lábios,
 como beijos.
 Pássaros, sedentos de ramos
 e de sombra,
pousam-me nos ombros.
 A movimentos de asa,
 desenham-me ainda um corpo
certa arquitectura de água,
 rasgada no vento.

Autor : Luísa Dacosta

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Toca-me

Cristina.Fornarelli
conjuga um verbo que conheças
no presente do indicativo,
soletra-o na segunda pessoa
do singular ao meu ouvido,
dá-me qualquer coisa
que me pareça eterno.

Autor: José Rui Teixeira