sexta-feira, 30 de junho de 2017

Das palavras

Pawel Kuczynski

Das palavras
de algumas palavras
temos de conhecer mais
que seu significado,
temos de lhes sentir o tacto
o gosto, ouvir a voz,
temos de as provar
beber, comer, saborear
mastigar suavemente
e depois com ternura,
as engolir para que permaneçam
guardadas em nós.
Amor! O que é amor
se não for vivido!

Autor : Alice Queiroz
In Jardim de Afectos

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Agnieska Motyka


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Autor : Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Livro Sexto'

terça-feira, 27 de junho de 2017

Poesia Depois da Chuva

       Laura Lee Zanghetti
 A Maria Guiomar 
Depois da chuva o Sol - a graça. 
Oh! a terra molhada iluminada! 
E os regos de água atravessando a praça 
- luz a fluir, num fluir imperceptível quase.

Canta, contente, um pássaro qualquer. 
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça. 
O fundo é branco - cal fresquinha no casario da praça. 

Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar. 

Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado 
antes do Sol, não duvidava agora.) 
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual 
às manhãs do princípio!

E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro. 
Grácil, tão grácil!... Pura imagem da Tarde... 
Flor levada nas águas, mansamente...

(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase...) 

Autor : Sebastião da Gama
in 'Pelo Sonho é que Vamos'

sexta-feira, 23 de junho de 2017

São horas de voltar

São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera
gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar
trará um corpo incerto dentro do nevoeiro,
mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto

à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo
os livros, escondo as cartas, viro os retratos
para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,
sei que não voltas, e ouço dizer que as aves
partem sempre assim, subitamente. Outras virão

em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.


Autor: Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O silêncio só raramente é vazio

Neil Driver

O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é

Autor : José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 21 de junho de 2017

...

Liat Aharoni


Um anjo vem todas as noites:
senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa,
como se fosse meu melhor amigo.
Esse fantasma que chega e me abraça
(asas cobrindo a ferida do flanco)
é todo o amor que resta
entre ti e mim, e está comigo.

Autor : Lya Luft

terça-feira, 20 de junho de 2017

um dia

Victor Bauer Art

um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo

lá fora o meu desejo assassina o mundo
a noite não existe porque a deixaste
no movimento de pedra dos meus braços

daqui onde estou quem te era
não se vê nada do amor

Autor:Pedro Sena-Lino
zona de perda livro de albas
objecto cardíaco, 2006


sábado, 17 de junho de 2017

Serenata

Maja Tocagic

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.
Permita que agora emudeça:
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina.
Permita que eu volte o meu rosto para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo.

Autor : Cecília Meireles

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Homem

tommy ingberg

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

Autor : António Gedeão
in 'Movimento Perpétuo'

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Carta

Bryan Larsen
Amor:
Ensina-me o tempo que passa devagar
a festa, o canto e o riso


Embala-me
até me dissolver no teu abraço
como se só houvesse este momento
em todos os momentos que hão de vir

E dá-me as tuas mãos e o teu corpo
para sentirmos de novo
a fome e a ânsia de nos termos

Ensina-me a vida
e o espanto, encanto do começo
e deixa-me o gosto de te amar.

Autor : Angela Leite

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Postal

Saul Landell

Chovem pais e filhos sobre os campos,
terrenos de árvores húmidas, outono.
Os pais tentam sempre proteger os filhos,
essa é a natureza que corre nas árvores,
essa é a lei e esse é o sentido. É outono
e não poderia ser outra estação, começou
o frio e a fome, olho a força dos campos
pela janela submersa deste último outono
e compreendo por fim a minha idade:
chovem pais e filhos de mãos dadas.
Lá longe, sou pai. Lá longe, sou filho.

Autor : José Luís Peixoto
In Gaveta de Papéis

domingo, 11 de junho de 2017

e ficou somente,

paolo barzman

apenas um rasto de nada
depois o tempo
o calor a abrasar a tarde
o corpo lasso
a memória difusa
o reflexo ao fim da curva
as mãos escondidas
a melancolia despida,

e no fim da curva
um reflexo…os faróis a alumiar a rua.

Autor : BeatriceM

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Razão inversa


Claude Raguet Hirs
Dispersa,
Imersa
em meu eu,
sou o adverso
de mim mesma.


Torno
meu universo
controverso
amando as rimas
e versos,
e
em paralelas
vou criando
um ângulo
transverso,
de fugas
e medos.

crio um
novo "segredo"
viro a vida
num novo enredo
que é
pra poder
sobreviver...
Autor : joanna.franko

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Forma de inocência

Liat Aharoni

Hei-de morrer inocente
exactamente
como nasci.
Sem nunca ter descoberto
o que há de falso ou de certo
no que vi.

Entre mim e a Evidência
paira uma névoa cinzenta.
Uma forma de inocência,
que apoquenta.

Mais que apoquenta:
enregela
como um gume
vertical.
E uma espécie de ciúme
de não poder ver igual.

Autor : António Gedeão

quarta-feira, 7 de junho de 2017

...

Este foi o nosso último abraço.
E quando,daqui a nada, deixares o chão desta casa
encostarei amorosamente os lábios ao teu copo
para sentir o sabor desse beijo que hoje nãodaremos.
E então, sim, poderei também eu
partir, sabendo que, afinal, o que tive da vida
foi mais, muito mais, do que mereci.
.
Autor:Maria do Rosário Pedreira
Foto:Kaunau

terça-feira, 6 de junho de 2017

Aos Amigos

Achraf Baznani

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
– Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Autor : Herberto Helder
In Ofício Cantante

domingo, 4 de junho de 2017

apenas questionar

George Christakis

de que nos servem os louros
os adereços
o supérfluo

no final da peça
e com a pano corrido
somos todos autómatos

paradoxalmente
ninguém sabe para onde vai
nem de onde vem.

Autor : BeatriceM

sábado, 3 de junho de 2017

...

Maja Topcagic
silêncio
um vazio interno
intenso
Minha verdade
sem futuro
sem meio
sem direção
tem apenas
um eco ensurdecedor
do nada.

Autor : joanna.franko

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Cinzas de Sísifo

Armando da Silva Carvalho
Óbidos. 28 de Março de 1938
Caldas da Rainha 01 de Junho de 2017

Eu vi o sobressalto.
Nesse bosque de lâminas e luvas
tocaste cada coisa como
um grito.

E amaste a minha boca
como quem corta
os pulsos ao silêncio.

Se o vento te derrama
entre folhas e cinza
é sempre a mesma voz que não perdoa

a mesma lei

o mesmo labirinto.

Autor : Armando da Silva Carvalho

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Em Louvor das Crianças

Gustav Klimt
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso. 
A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue. 
O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus. 

Autor : Eugénio de Andrade
in 'Rosto Precário'