domingo, 30 de julho de 2023

Letargia

meu poema é doce, enlaçando a noite,
conjecturando um corpo, afagos, e partilhas

em mil sonhos desfolho pétalas de malmequeres
em cores brancas , sobre os lençóis inocentes

e as horas passam plácidas, e letárgicas
meu poema é uma ilusão, e é quase madrugada

sem surpresa, reconheço acomodada
que meu poema está nu.

Autor : BeatriceM 2023-07-23
Imagem :Michelle Ellis

sábado, 29 de julho de 2023

Auto-Retrato

 

Apenas um homem
com febre de versos:
minha sã imagem
nua até aos ossos.

Autor : António Barahona
Imagem : Joan Carol

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Eu sou de ti

 

Eu sou de ti

Como a onda é do mar e o amor é do sonho;
Como o encanto é da noite e a seara é da foice;
Como a mó é do moinho e o céu é do luar.
Eu sou de ti
Como a luz é da manhã e a vela é do vento;
Como a voz da melodia e o por-vir da fantasia;
Como a palha é do fogo e a cor é da romã.
Eu sou de ti
Como o mistério é do feitiço e os olhos são da Alma;
Como o pão é da espiga e o som é da cantiga;
Como o segredo é da bruma e a espera é do cansaço.
Eu sou de ti
Como o campo é do jasmim e a fonte é da água;
Como a terra é da semente e a solidão é da vida;
Como a paixão é da saudade, como chegar é da partida;
Como o abismo é da ponte e o peito é da mágoa,
Como tu jamais serás de mim.

Autor : Margarida Faro
 in 44 Poemas 
Imagem : Melissa Vincent

quinta-feira, 27 de julho de 2023

.

 


Gosto de um templo onde não se passa nada.
A luz solar que entra é um acontecimento
assim como as sombras que se movem devagar.
Tudo é tão parado que os olhos também param
e ao pararem vêem como se não fossem olhos
mas aberturas simples ou passagens no aberto.
Gosto de uns olhos onde não se passa nada.
A luz mental que entra é um acontecimento
assim como os desejos que se movem devagar.
Tudo é tão parado que as palavras também param
e ao pararem falam como se nada dissessem
mas fossem vozes altas, chamamentos no disperso.
Gosto da palavra em que não se passa nada.
A luz moral que entra é um acontecimento
assim como os enganos que se movem devagar.
Tudo é tão parado que o corpo também pára
e ao parar respira como se não fosse um corpo
mas um desejo aberto, oração continuada.
Gosto de um corpo onde não se passa nada.
A luz do mal que entra é um acontecimento
assim como as culpas que se movem devagar.
Tudo é tão parado que o pensamento para
e ao parar recebe não a lâmpada e a verdade
mas a ondulação que vem de onde não se sabe nada.

Autor : Carlos Poças Falcão
in Sombra Silêncio
Imagem: Tobias Glud

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Renúncia

 Fui nova, mas fui triste... Só eu sei
Como passou por mim a mocidade...
Cantar era o dever da minha idade,
Devia ter cantado e não cantei...

Fui bela... Fui amada e desprezei...
Não quis beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade...
Devia ter amado e não amei...

Ai de mim!... Nem saudades, nem desejos...
Nem cinzas mortas... Nem calor de beijos...
Eu nada soube, eu nada quis prender...

E o que me resta?! Uma amargura infinda...
Ver que é, para morrer, tão cedo ainda...
E que é tão tarde já, para viver!...

Autor :Virgínia Victorino
Imagem : Nikolina Petolas

terça-feira, 25 de julho de 2023

Ondas

 

Tempestade
Marés vivas
Relâmpagos
Fúria do orvalho
Não é isto o amor?

Autor : Gonçalo Salvado
in Corpo Todo
Imagem Barbara Cole

domingo, 23 de julho de 2023

Ainda acredito no amor

 Ainda acredito no amor, inaceitável não acreditar, naquilo que eu acho que faz girar a terra  e faz balançar montanhas.

        Mas, acreditar não quer dizer que ainda espero que me ofereças as flores que naquele dia te esqueceste de comprar. 
   
       O teu espectro por vezes ainda ronda a luz que me fere a visão, mas, aprendi a viver sem a tua sombra e quiçá sem o teu fantasma.  

       Já não sei se ainda te amo, mas ainda acredito nesse amor, de que falam nos livros.

Autor : BeatriceM 2014/07/06
Imagem :Emily Soto

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Amo-te

Amo-te
com pressa
de não acabar o amor.

Autor : António Osório
O lugar doamor (1981)
imagem Taylor Rayburn

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Bastou Aquele Gesto

Bastou aquele gesto
da tua mão tocar tão docemente na minha,
para nascerem raízes
que me prendem à terra e me alimentam
nas horas mais vazias.

Bastou aquele olhar,
o teu olhar tão brando,
prolongando-se um pouco sobre o meu,
para iluminar as noites em que a lua se esconde
e a escuridão envolve um mundo sem sentido.

Bastou esse teu jeito de sorrir,
um sorriso em que vejo despontar a confiança
na vida não vivida,
nas emoções ainda não sentidas,
nos passos que ressoam noutros passos.

Bastaste tu !

Autor : Maria Eugénia Cunhal
Imagem : Leszek Paradowski

terça-feira, 18 de julho de 2023

Pórtico

Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda

Autor : Daniel Faria
in “A casa dos Ceifeiros”
Imagem : Natália Drepina

domingo, 16 de julho de 2023

Os dias

Os dias passam em retalhos
estirados pelos percursos em que ando
no meu olhar levo suspensa uma luz
que me conduzirá até o local
onde fomos felizes
algures por aí.

Autor : BeatriceM 2023-07-16
Imagem : Anka Zhuravleva

sábado, 15 de julho de 2023


Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.
Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.
Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.
A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.
Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.
E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.

Autor : José Luís Peixoto,
in Gaveta de Papéis

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Lírios


 Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.

Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.

Dispo agora toda esta roupa e escrevo
– sem frio nem perda nem desastre –
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:

lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.


Autor:  Rosa Maria Martelo
in “Matéria”, Editora Averno, Lisboa, 2014

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Exercício


Não procuro vantagem nem me interessa
tirar qualquer benefício
de te amar.

Apenas busco um ombro onde a cabeça
retome o exercício
de acreditar.

E não desejo outro ofício
em que me ocupar.

Autor : Torquato da Luz
Imagem : Evan Atwood

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Sem pranto nem angústia


Deixo-me ir como se fosse um regato infinito de vida.
Minhas mãos sobre a tua nudez de alma.
É algo tão sublime que sobrepõe mesmo o amor!
Moveram-se as algemas e soltaram-se as palavras,
Aquelas que falam de ti!
Revoltadas as letras saltam desenfreadamente,
E desaparecem as palavras que encerram tristeza e solidão!
Cravei uma flecha na sombra do passado.
Abri meu sentir para poder ouvir o silêncio que vem de mim.
Não tenho nome para a tua essência...
Mas no mistério da noite está lá a tua presença!
Sinto-te segurar meus braços, como numa breve despedida.
Para não perder a melodia de meus poemas.
Deixo-me deslizar de mansinho no leito,
Misturando meus sentimentos com o murmúrio da água
Batida nas lages e caindo em catadupa
Estilhaçando o calor do nosso amor, por todo o lado!
Mas agora só falarei contigo dentro de mim,
Sem pranto, nem angústia.

Autor : Maria Helena Quartas
in O Melhor De Mim
Imagem : amy spanos

terça-feira, 11 de julho de 2023

Ato de Contrição

Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei
— por tudo, vida, perdão!

Autor :Adolfo Casais Monteiro
Imagem : Jimmy Lawlor

domingo, 9 de julho de 2023

São minhas todas as memórias

 

São minhas, todas as memórias
Dos dias que desmaiaram
Entre a canícula e o vento

Num beijo que aconteceu
Na areia da praia, e que a onda presenciou
Junto ao pousio das gaivotas

São minhas todas as noites
Em que ainda recebo a tua visita
Nos sonhos com que vou entrelaçando.

Autor : BeatriceM 2023-07-09
Imagem : Nicole Burton

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Cantiga


Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.

Autor : João Cabral do Nascimento 
Imagem : vaggelis fragkakis

quarta-feira, 5 de julho de 2023

As Asas dos filhos


quando antecipamos o voo
antes de terminado o tempo
da aprendizagem das asas
a euforia pela nova liberdade
pode ser amortecida
pela ira dos ventos contrários

se cedo nos atiramos ao mundo
cedo o mundo se atira a nós
e o cansaço acaba por chegar
antes do tempo do descanso

um cansaço tamanho
que nem encontramos memória
do caminho até ele

e cedo
-demasiado cedo-
a vontade de recolher as asas e enrolar o corpo
nos novelos com que fizemos
o derradeiro ninho

um ninho seguro e redentor
feito de abraços maternais
e colos a segurar voos
que não se querem apressados

sabemos que não conseguimos preparar o coração
para os voos dos nossos filhos
porque também eles nos são colo e abraços
e guardam a nossa alma à superfície da pele
onde sentem o ar que lhes faz crescer as asas

é imenso o esforço imensa a ternura
incondicional o amor
com que inventamos planos de voo
planos de sorrisos
planos de ausência de dor

não temos garantias e isso é
totalmente irrelevante
porque os filhos são promessas do universo
e nele se vão cumprir
nós somos apenas grandes braços
que se desdobram em mãos de amparo

um dia partem
como nós partimos
e ainda assim vão ficar
como nós ficámos

só os filhos são capazes de ir
e ao mesmo tempo

ficar

Autor : Rosário Ferreira Alves
in lunaris, Poética Edições 2016
Imagem : Duong Quoc Dinh

terça-feira, 4 de julho de 2023

Estações da idade


Ando descalço sobre o nome da cidade.
Atravesso a rua. Uma sombra caminha ao meu encontro.
Toca-me e desfaz-se como um grito. 
Vim de África há muitos anos e nunca regressei
à idade da minha partida. 
Agora estou num parque, no fim de Novembro,
e o Inverno aproxima-se. 
Sou um homem com a memória de um menino.
Às vezes chove na janela sem fim
dos anos que correram adiante de mim. 
Mas estou aqui, no parque que escurece,
com o meu violino. As folhas dançam,
geladas; o silêncio tem a cor da neve. 
Os sinais da minha respiração crescem entre as árvores
adormecidas.
Mesmo fria a luz canta, húmida.
Como um cão, beija-me as mãos. 
Vou-me embora lentamente. Levo comigo
o teu nome, na minha boca e no meu peito.
Volto-me: os meus pés deixam na terra
o itinerário das aves. 
Amo, murmuro aos ramos quebrados
deste dia enquanto o meu coração
te pede a viagem
de regresso ao poema. 

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto (2011-12-01)
Foto : Trey Brafford

domingo, 2 de julho de 2023

Todos os dias



Todos os dias morro (morremos) um pouco,
hoje morri ainda (um pouco) mais,
sinto-me fragmento de papel,
como se fosse uma pétala de papoila,
a quem o vento teima em levar,
(só hoje)
amanhã tentarei ressurgir,
outra vez,

e outra,
e mais outra.

Autor: BeatriceM 08-06-2014