quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Disponibilidade para gostar




Gosto
de veladas juras de amor
gosto
quando te transformas numa rosa
gosto
mesmo que nada disto seja verdade.

Autor :Luís Rodrigues-
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Kamil Vojnar

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Ode do homem de rua



trazia uma pulseira branca de plástico
a imitar uma promessa
de asilo azul
ou um número gasto
um poema a emagrecer.

dormia à entrada de uma porta estranha
de sono ébrio coração esquecido
ou barba por fazer e a vida a dar horas.

só o medo não me fez tocar na mão
a segurar um abandono de fio de prata
e contar-lhe as feridas com os beijos possíveis.

(um coração esquecido de si é fácil de esquecer),
mas quando a rua grita e aflige com a náusea
das flores que nunca cobrirão os sete palmos de terra
é impossível anoitecer como homem igual.

e lembrar-me que o corpo é todo o mesmo
e triste assim.

a polícia veio
pôs uma sirene no lugar do estranho.
a porta fechada
nas frestas nenhuma respiração
quis sentir o perfume doído.

lembrar-me que o corpo é todo o mesmo
e triste assim
quando não há o que vestir
e não se tem mais dentes para amar ninguém
nem fome de casas.

Autor : Ana Salomé

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Sorrisos

Em laços de sorrisos
Desabotoei-me de preconceitos
E abri a vontade feérica
Como porta sedenta de receber.
A noite deitou-se ao meu lado
Fiz amor com a lua
E o sol ciumento trancou-me o sentir.
Louco ...
Percebi que o mundo escreve-se em olhares
E as palavras morrem à nascença
Depois de ditas...mesmo sorridentes!

Autor : José Luís Outono
Cadernos ao Acaso - 2010
Imagem : Alberto Dros

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Ilusão

Vou estudar o enigma dos pássaros
Abrir os braços e suave me tornar
Para com eles ter direito a voar

Autor :BeatriceM 2024-02-23
Imagem : Gina Vasquez

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Colina



Foi razão de colina
Justo aquela
Hoje tão oca
Mas tão bonita
Nos seus vários tons de verde

Estará lá
Sempre alta
Para quem quer encurtar
A distância até o céu

Num vertiginoso
Gole de gravidade
O mundo para
Nada mais se torna
Tornando-se o próprio nada

Autor : André Rosa

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Desterro

 

A minha vida
é um desterro sem retorno.
Não teve casa
minha errante infância perdida,
não tem terra
meu desterro.
A minha vida navegou
em barco de nostalgia.
Vivi à margem do mar
olhando o horizonte:
tornava minha casa ignorada
um dia pensava em zarpar,
e a pressentida viagem
me deixou em outro porto de partida.
É o amor, acaso,
o meu último cais?
Oh braços que me fizeram prisioneira,
sem me dar abrigo…
Também quis escapar
do cruel abraço.
Oh braços fugitivos,
que em vão buscaram minhas mãos…
Incessante fuga
e anseio incessante
o amor não é porto seguro.
Já não há terra prometida
para a minha esperança.

Autor : Alaíde Foppa
Imagem : Erik Johansson

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

...


À maçã
não lhe perguntes
quem é.

Outra forma
não há
de lhe reconhecer
o sabor

Autor : Albano Martins

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Ser e não ser

Entre mim e os livros na estante,
no espaço ocupado pela luz,
dão-se transformações
a que assisto quieta e calada.

Depois de olhar o ar,
cada palavra reflecte
o lugar invisível de onde veio o poema
ou o silêncio que passou pela casa.

A alma não escolhe a estação
nem prevê o detalhe do infinito.

Reparo com espanto infante
nos vestígios deste ritual,
os livros que não li
sabem de mim
e não dormem nunca.

Autor : Marta Chaves,
IN Avalanche

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Escreve-se


Escreve-se contra a vida, tu dizes.
Respondo que a métrica é a vida,
que às sombras sobram mapas, raízes.
Que aí, nesse chão, caem rima e dúvida.

São frutos de morte e dor indelével
o que essa voz dissonante persegue.
São vaga-lumes de tinta ilegível
sobre campos de hierático sangue.

Escreve-se contra a vida, tu dizes.
Eu recolho-me, fio o meu casulo,
abasteço-me de sonhos vorazes,

anoto a ambição negativa, a rosa
escurecida que é do crepúsculo
a cinza e a frágil arte rumorosa.

Autor :Luís Quintais,
In Ângulo Morto

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Oh!Noite!

Oh! Noite!
A minha cama é o teu refúgio,
que me abraça o corpo frio.

Algures noutro País,
alguém procurará o refúgio noutra cama,
e noutro corpo.

Amanhã, será outro dia.
e a esperança desabrocha, quando o dia despontar.
invadindo o meu quarto com raios de aurora.

Beatrice M 2024-02-18
Imagem : Monia Merlo

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sombras


Não estavas quando cheguei a casa.
Nem eu estava quando chegaste junto a mim.
Não estávamos em casa quando jantámos juntos.
Quando me falaste não estava.
Nem estavas quando eu te respondi.
Não estiveste ao meu lado
quando te deitaste junto a mim
e eu senti o toque do teu corpo ausente.
Fomos sombras.
Sombras de gente, nada mais.
Não estivemos nem aqui nem ali.
Nem tu comigo,
nem eu contigo.
Solitários sem voz
eu, tu...
fomos apenas sombras de nós

Autor : João Morgado
IN: Para Ti
Imagem : Karen Hollingsworth

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Diz-me

Lyubomir Sergeev


Diz-me.
Que o mundo enlouqueceu.
E que afinal,
todos os sonhos são possíveis.
É só preciso querer.
Voar.
E tocar a luz dos loucos,
dos que caminham à procura.
Da verdadeira essência,
que vive na luz de quem se interroga.
Para saber.
De si e dos outros.

Autor : Ana de Melo

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Noturno

A febre atrai o canto de um pássaro andrógino
e abre caminhos para um prazer insaciável
que se ramifica e cruza o corpo da terra.
Oh, a navegação infrutífera ao redor das ilhas
onde as mulheres oferecem ao viajante
o equilíbrio fresco de seus seios
e uma extensão de terror nos quadris!
A pele pálida e macia do dia
cai como a casca de um fruto infame.
A febre atrai o canto dos esgotos
onde a água atropela os desperdícios.

Autor : Alvaro Mutis
Imagem :Mary Parker

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Dádiva

Não sei que fazer, hoje que a chuva cai sem cessar,
não sei se me agarre a um pingo, e vou pela rua,
a encharcar os sapatos para sentir o molhado.

Talvez oiça a voz da minha mãe,
“Tem cuidado com as poças, não molhes os pés que ficas doente”
talvez a minha mãe seja o meu anjo da guarda.

Talvez seja mais sensato ficar aqui quieta,
a ouvir o som da chuva desabando,
e agradecer a dádiva da chuva a cair sobre as sementeiras.

Autor : Beatrice M 2024-02-11

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Trajecto


Na vertigem do oceano
vagueio
sou ave que com o seu voo
se embriaga
Atravesso o reverso do céu
e num instante
eleva-se o meu coração sem peso
Como a desamparada pluma
subo ao reino da inconstância
para alojar a palavra inquieta
Na distância que percorro
eu mudo de ser
permuto de existência
surpreendo os homens
na sua secreta obscuridade
transito por quartos
de cortinados desbotados
e nas calcinadas mãos
que esculpiram o mundo
estremeço como quem desabotoa
a primeira nudez de uma mulher

.
Autor:Mia Couto
Foto :Gina Vasquez

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

...

Eu estava habituada a vir para casa com um velho amigo
Que me punha a mão nos ombros. Eu raramente tropeçava
Porque dele irradiava o calor das macieiras e a paz das
Tílias. Era a árvore dos meus passos. E, regressando a casa,
Regressava à Paisagem que humana me fazia.

Autor : Maria Gabriela Llansol

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A Luz que Vem das Pedras

A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
 a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?

Autor : Pedro Tamen
Imagem : David Tomek

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

A outra

 A outra
aquela
a tal
que desdobrou de mim a tua forma
que te tomou diferente
e tão igual
à gente informe
de todas as pessoas que eu conheço.
E que te fez vulgar.
Que te respira o ar
e se passeia impune no teu corpo,
não é minha inimiga
nem rival
é apenas e só
um peso morto.

Autora  Manuela Amaral
in "Minha Memória de Ti", 1992)
Imagem :Nicole Burton

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Segunda Nota Explicativa

Se uma palavra toca noutra ou mesmo sem tocar
lhe queda próxima, põem-se as duas
a dedilhar lembranças na ária
da carne azada.

Passa-se isto
na poesia dos poetas e na linguagem
da rua. Os ganhos
são mútuos e ficam mal lembrados
ou julgados inconvenientes se
pouco prosados ultrapassam
a discreta função de fundo
musical na paisagem ambiente.

Ganham em sentidos o que perdem
em concisão. Para que servem os muros
que nos cercam senão para dar ganas
de os saldar?

Autor :Júlio Pomar

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Questões

Onde procuro os sonhos que projectamos,
onde escrevo o sentimento que se concebeu saudade,
quem me seca as lágrimas e me devolve a serenidade?.
 
Autor : BeatriceM  2024-02-04
Imagem : Erica Hopper

sábado, 3 de fevereiro de 2024

quem colhe?

diz-me: quem colhe
o silêncio dos pássaros
depois do trovão?

Autor : João de Mancelos
In Coração de aluguer. Lisboa: Colibri, 2023. 94 pp. ISBN: 978-989-566-285-2.
imagem Martin Stranka

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Etapas

omar ortiz

Não sei por que buscas palavras longas
para as coisas breves que nos assombram.

Não sei por que teces teias enormes
para as incertezas que nos envolvem.

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes
em prender meus passos nesse limite.

Autor : Glória de Sant’Anna
in ‘Poemas do Tempo Agreste

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Elegia

Nem os dias longos me separam da tua imagem. Abro-a no espelho de um céu monótono, ou deixo que a tarde a prolongue no tédio dos horizontes. O perfil cinzento da montanha, para norte, e a linha azul do mar, a sul, dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia quando, ao dizer o teu nome, a realidade do som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo o silêncio para que dele possas renascer, sombra, e dessa presença possa abstrair a tua memória.

Autor: Nuno Judice
Foto:Kamyk75