sábado, 31 de julho de 2021

O amor é

 

O amor é uma flor
prestes a nascer

uma semente
enterrada
no centro
da terra

O amor é o primeiro
raio de sol
que rompe a manhã

o primeiro gotejar
leve sobre o mar
numa manhã de agosto

o amor é uma palavra
um gesto
uma promessa

o amor é possível
inadiável
evidente
sempre renovado

o amor
abre-se como a flor
é uma planta
que não morre

a morte
não mata
o amor

Autor : Rui Prates Esteves
Imagem : Kristina Makeeva

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Arte Poética


Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.
O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?
Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.
Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.
O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!

 
Autor : Rosa Alice Branco
in "Soletrar o Dia. Obra Poética", 2002
Imagem : Slevin Aaron

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Diálogo

 

Levarás
pela mão
o menino
até ao rio. Dir-lhe-ás
que a água é cega
e surda. Muda,
não. Que o digam
os peixes, que em silêncio
com ela sustentam
seu diálogo
líquido, de líquidas
sílabas
de submersas
vogais.

Autor : Albano Martins, in "Castália e Outros Poemas"
Imagem : Victor Bauer

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Álbum


Dobro a roupa
em monte
os doze meses inteiros,
e tento juntar, incapaz,
duas peças com sentido.
As que ficam,
isoladas
sem uso provável,
escondo-as dentro de páginas brancas:
entre cada uma
papel vegetal quase transparente
e cantos antigos de colar fotografias.

Em dez anos encontro
um herbário inesperado:
folhas perenes e secas,
as meias cerzidas, únicas,
são exemplos raros destes dias
quase extintos.

Autor : Margarida Ferra

terça-feira, 27 de julho de 2021

Eu, aqui, sempre

 


Eu sempre estive aqui, no meu lugar,
olhando-me de frente, sem negar-me.
Se a minha condição é ser e estar,
que seja, sem receio nem alarme.

Nos astros que lucilam infinitos,
mitigo a minha sede de ansiedade!
Nos medos que exorcizo, vários ritos
à luz que me encandeia divindade.

Nas horas das esperas, tão paradas
procuro antecipar as horas frias
que orvalham de suor as madrugadas
e enrugam de incertezas outros dias.

Em mim, sem desencontros nem ardis,
hei-de encontrar-me, como sempre quis.

Autor: José Augusto de Carvalho
in... Da humana condição
Imagem : Christopher Ryan MeKenney's

domingo, 25 de julho de 2021

As sombras

 

No asfalto as sombras cruzam-se comigo,
são sempre pardacentas como o breu da noite,
nunca sei o que escondem.
Mas na minha ingenuidade,
sempre tive receio delas.
 
Autor : BeatriceM 2021-07-23
Imagem : Mariesol Fummy

sábado, 24 de julho de 2021

Um Lugar ao sol

Não te ofereço poemas de vitória:
os meus versos só falam do que existe.
Não contarei a esperança:
só a força que contra tudo subsiste.

Não teço os meus poemas de futuro:
corto-os nesta carne que somos.
Se vives de sonhar
eu vivo de viver ─ e é mais duro!

Autor :Adolfo Casais Monteiro 

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Os milagres acontecem



Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.

Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.

Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.

Autor : Ana Paula Inácio
Imagem : Kyli Sparre

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Porto Santo, Verão de 1973


oiço a música forjada e quente do sol e do mar
embravecido, num cântico azul, sem manhãs, nem
pureza, nem casas. os barcos, brancos e vermelhos
brilham e baloiçam, baloiçam e brilham afogados
pela água fria e irritada. as palavras flamejam
e soltam-me gritos amorfanhados enquanto as construo
na areia da praia em chama, onde o mar despeja
a sua ira da cor do céu. a hora, esta hora, é aquela
do beijo, da fervura, da comida, do sono, ou então
a do amor. é um castelo, uma cara, no chão molhado
o tempo. uma mão. cinco dedos num esconderijo profundo
do gesto, do vómito sem cor nem corpo. é o sol e as
formigas, o vento e a música procurando um porto, um
cais, ou um navio, um braço queimado correndo a pele
e o suor do sonho. oiço as vozes, a música, e congemino
um silêncio cavalgando o ruído enquanto o calor cai
nos olhos, devorando a carne e o pensamento. ao meu
pé, algumas crianças jogam lama no meio-dia e procuram
a mãe. encontram-na na água morna do porto, perdida
e embrenhada na alma dum santo sem auréola, primitivo,
no coração dum homem só e húmido, embriagado, dizendo
versos com as rimas colorindo as pálpebras inchadas.
e toda a gente fala, ao mesmo tempo. a tarde desprende-me
o lugar da mão assustada. e ela, solta, é o rosto fornicado
da esperança, a água bebida com sal, bebida com sol, sem
saber a nada. é uma carta, um diário, ou um postal. é o
porto santo moldado na pedra negra, escavada ao alcance
da música e do poema. sem loucura, nem amor.

Autor : José António Gonçalves
(in «Vinte Textos Para Falar de Mim», Col. Cadernos Ilha, Nº. 1, 1988)

quarta-feira, 21 de julho de 2021

La Cathédrale engloutie

Deste lado da vida
são sete horas (vestidas
de preto, vermelho e medo)
da manhã de outro dia.
Mas a janela fechada dá
para a noite ancorada
de leve sobre as esperanças
azedas da cidade.

Conto um rio preso num poço,
dois comboios afogados na pressa,
meia dúzia de faróis
acesos em prédios
cuja felicidade parece sempre
proporcional à distância.

O vinil negro continua a rodar,
atiça os seus pássaros enferrujados
contra a lua atada
a uma das chaminés.
E a luz que nunca chega
traz as últimas notícias da guerrilha,
expõe o plástico roto nas armas
dos nossos heróis de ontem.

Abandono as saudades
pelos telhados, com
as patas embaciadas, os olhos
magros. Saio.
Recomeço a fazer horas
para novos sonhos.

Autor :  Inês Dias

terça-feira, 20 de julho de 2021

Horário do Fim


morre-se nada
quando chega a vez
.
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
.
morre-se tudo
quando não é o justo momento
.
e não é nunca
esse momento
.
Autor : Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
Imagem : Kyle Thompson

domingo, 18 de julho de 2021

Foste com os anjos

 

Foste com os anjos no invisível caminho,
a fazer a tua derradeira jornada,
e na casa o silêncio ficou imbuído,
como fungos,
e a tua ausência como uma calamidade,
incontornável e irrevogável.

Dizem que estás no outro lado
no paraíso celestial.

Tanto tempo se passou,mas o teu nome,
ainda tem ressonância ,
em todos nós,
e no silêncio insuportável da casa.

Autor : BeatriceM 2021-07-17

sábado, 17 de julho de 2021

Quem fala

quem fala
não sou eu
é o outro o que me expulsou
da concha do meu sol

É ele que caminha nos meus passos
e eu olho-o e esqueço-o
Quem pode suportar em reflexo?
Quem pode viver contra o seu duplo?

Eu digo eu ainda
mas sou eu que declino
sou eu que caio
com a ferida do sol que ele me arrancou

Autor : António Ramos Rosa
Imagem : Jordi Puig

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Beijo a Beijo

 



E de novo a armadilha dos abraços.
E de novo o enredo das delícias.
O rouco da garganta, os pés descalços
a pele alucinada de carícias.
As preces, os segredos, as risadas
no altar esplendoroso das ofertas.
De novo beijo a beijo as madrugadas
de novo seio a seio as descobertas.
Alcandorada no teu corpo imenso
teço um colar de gritos e silêncios
a ecoar no som dos precipícios.
E tudo o que me dás eu te devolvo.
E fazemos de novo, sempre novo
o amor total dos deuses e dos bichos.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 15 de julho de 2021

Paisagem

 

Ilha: pedaço de osso
à flor da pele do mar.
Esquírola viva, troço
de abóbada lunar.
Mar em azul inesperado.
Ilha, começo e fim do mundo
perpetuamente adiado
entre as algas do fundo.
Ilha, navio antes do oceano,
terra em pouso do sonho, rosto
de pedra com perfil humano,
ao vento sul exposto.

Autor : Daniel Filipe
Imagem : Katerina Plotnikova

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Indecifrável

 


 

Eu me repito.
Colo post-it por aí
para não esquecer datas.
Atravesso a idade já gasta
comprando um espelho novo.
Vejo poesia em tudo,
procurando o traço ressonante.
Sou transparente,
mas ninguém nada sabe
sobre mim.
E sempre me repito.

Autor : Solange Firmino

terça-feira, 13 de julho de 2021

Dos Poetas, Poemas e Sonhos

 

Os Poetas sonham, mas não como os outros comuns mortais, o seu sonho vai para além da vida e da morte, atravessa oceanos de palavras e mares de angústias.
Mas o que são e quem são os Poetas?
Quem pode ousar ir além do sonho?
Poetas, são todos os que dizem o que lhes vai na alma, os que sofrem se não soltam as palavras que lhes surgem na cabeça, sofrendo também, quando as não encontram.
Se porventura o seu sonho é tão intenso, que já não tem em si lugar e há momentos em que as palavras lhe faltam, é o morrer um pouco em cada dia.
Diz isto quem não é poeta, mas que fala daquilo que lhe vai na alma e escreve todos os dias as palavras com que sonha.

Autor : Silvestre Raposo

domingo, 11 de julho de 2021

Fugas

 

o que resta de nós
é tão-somente esta dor no peito
que vem pela calmaria da tarde
quando a saudade se torna intolerável
e a tua presença
é apenas uma lembrança
que nem o tempo
nem a distância apagou.

Autor : BeatriceM 2021-07-10
Imagem: Omar Ortiz

sábado, 10 de julho de 2021

Todos os dias viajo para a culpa


Todos os dias viajo para a culpa.
É lá onde trabalho, movendo e removendo
juízos e vergonhas, vergando-me nas margens
do rio tenebroso. Depois liberto as faces
lavadas nas passagens, estendo inteiro ao sol
o manto, a envoltura, a translúcida mortalha

que ilude o meu rubor. Viajo para a culpa
e regresso ao fim dos dias, a tempo dos crepúsculos
e do corpo de repouso. Já amo esta viagem
que segura o meu amor, a inteligência canta
todo o dia de canseiras. Assim trabalho ao sol
fazendo por que a vida não me seja inimputável.

 Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem : Dariusz Klimczak

sexta-feira, 9 de julho de 2021

As portas que batem...

 

As portas que batem
nas casas que esperam.
Os olhos que passam
sem verem quem está.
O talvez um dia
Aos que desesperam.
O seguir em frente.
O não se me dá.
O fechar os olhos
a quem nos olhou.
O não querer ouvir
quem nos quer dizer.
O não reparar
que nada ficou.
Seguir sempre em frente
E nem perceber.

Autor : Maria Judite de Carvalho

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Tarde de Chuva


Cai com a cadência
dos poemas brancos,
das sonatas nascidas
de beijos secretos e noites de luar.

Se as margaridas riem
e cantam sob graça tamanha,
quatro pombos de asa agitada
empurram-se no estreito friso
da casa que tomou às rosas a cor.

Um melro, mais dado a festejos,
equilibra-se num ramo,
cantando uma primavera
de espigas e papoilas ao vento.

Mas a velha senhora,
espantada na sua solidão,
só pergunta às nuvens:
quem de vós me roubou as lágrimas?

Autor : | Pedro Belo Clara
Imagem : Laura Lee Zanghett

quarta-feira, 7 de julho de 2021

......


-aprendi nas pequenas gares de província a esperar comboios que não chegavam nunca
(ou chegavam tão atrasados que
no momento em que se avistavam
já eu tinha desistido deles)
e sempre invejei o velho Tolstoi
fugido de casa aos oitenta anos
a deixar-se morrer numa delas
no meio de toda a brancura do mundo

um dia entre Belver e Gavião
(possivelmente nem sabes onde
isso fica)
uma velha pediu-me que lhe segurasse as mãos
porque de repente sentira muito medo de
morrer sozinha
(coisa que nunca deve ter passado pela
cabeça do velho russo
para quem a morte só podia ser um
brando ajuste de contas sem testemunhas)

então entre curvas e desvios contei-lhe
todas as curvas e desvios das minhas vidas
e ela sossegou um pouco e disse que
eu ia ser muito feliz porque sabia
distinguir entre todos o comboio certo

aquele explicou já na saída
que se afasta no exato momento em que
o sol desenha a nossa sombra no olhar de
quem nos deixou

Autor : Alice Vieira
Imagem : Moreira Lopes

terça-feira, 6 de julho de 2021

Teoria da Narrativa Familiar

 


Naquele tempo o meu pai trabalhava
por turnos
como herói socialista
no sector siderúrgico
e dormia com a minha mãe.
A minha mãe esfregava
a sarja encardida:
a água ficava da cor da ferrugem.
Havia, por perto, um cão
esgalgado,
sempre a rondar.
Depois, a minha irmã nasceu
e eu fui obrigado
a rever a minha mitologia privada do caos.
Entre uma coisa e outra
aprendi a mentir.
E isso, não sei se sabem, mudou tudo.

Autor :Luís Filipe Parrado
imagem ;Anne Scottlin

domingo, 4 de julho de 2021

pinto na tela


pinto na tela
os olhares anónimos das pessoas felizes
a desenhar-me mar e areia
no tráfego do pincel.

que dança na cor
dos cabelos em desalinho
do vento em remoinho
pinto o sal.

que me transcende a mão, e
ingenuamente, enleio o vácuo
e amarfanho a tela inacabada.

quero o teu olhar (ausente)
aqui, no meu desenho, a acariciar marés
a beijar a minha pele
e aliso o pincel, para, refazer a tela
que jaz inofensiva sobre
a areia.

Autor : BeatriceM 01-07-2012
Imagem : Magdalena Russocka

sábado, 3 de julho de 2021

Por vezes a boca


Por vezes a boca e o horizonte comunicam
longínquos mas sobre a mesma mesa
e da espessura do sono a melodia
levanta-se na glória de uma sala transparente
E tudo está presente em vermos da varanda
o ébrio sossego dos longos voos das aves
ou a tranquilidade dos rebanhos de arbustos
que nas encostas sobem até ao cimo azul
Reencontramos assim a nitidez do nascimento
e o canto das sílabas brancas e o corpo intenso
no seu ritmo de júbilo em ser o pleno espaço

Autor :  António Ramos Rosa 
Imagem Sarah Fecteau

sexta-feira, 2 de julho de 2021

A Canção Possível

Poderei ainda, amor, cantar
o exercício da insuportável ternura
sem que a vida sucumba
às cicatrizes do passado?
Por mais que digamos,
as nossas bocas morrendo uma na outra,
entre espasmos,
ainda a rosa é pálida
e os nossos dedos não passarão de mendigos
que se tocam na espuma dos dias.
Por mais que digamos,
as palavras jamais saberão o caminho
que lhes é devido,
o caminho das flores do silêncio
esse o único que salva o amor,
cravando-o na boca de Deus.
É noite, ainda, meu amor,
e a lua vem beijar-te os ombros
o teu corpo procura o lugar do meu,
como se nenhum outro coubesse dentro dele
antigo como a noite.
E os dedos serão ainda em torno da luz,
buscando a chama, o fruto,
a ferida que as tuas palavras
rasgaram no meu corpo
em volta dessa insuportável ternura.

Autor :  Maria João Cantinho
Imagem : Mariesol Fumy

quinta-feira, 1 de julho de 2021

na casa do campo

 

naquela onde mais e menos vivo
a minha mãe prevalece e reza
como se me não tivesse
em maio de 45.

casa de campo e da ilha
minha febre água de bica
conrrendo nos meus sábados de lá ir
escutar os milhos escutar o povo.

mais e menos poeta
as noivas procuram-me de enxoval
nos braços
e eu desenho-lhes os sonhos
risco-lhes as toalhas e
vejo-as ir à igreja casar.

na casa do campo sou asceta.
cresço linho de bordar
ouço os sinos vou à missa
e como povo canto deus
para me cansar.

é nisto que reside
o meu correr de vivo o meu verbo ser-me.

Autor : Álamo Oliveira
Pintura : gustav klimt