sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Naufrágio

Quero soltar a âncora e velejar nesse mapa desconhecido,
e se o mar ficar bravo, 
assobiarei aos céus para negociar a rota directa à lua,
e se os ventos forem fortes, 
aguentarei firme nas coordenadas dessa viagem da vida

Autor : Sónia Sultuane

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Canção Erótica


Alegria é este pássaro que voa 
da minha boca à tua. É este beijo. 
É ter-te nos meus braços toda nua. 
Sentir-me vivo. E morto de desejo. 

Alegria é este orgasmo. Esta loucura 
de estar dentro de ti. E assim ficar. 
Como se andasse perdido e à procura 
de possuir-te. E possuir-te devagar. 

Autor : Joaquim Pessoa 
in CANÇÕES DE ex-CRAVO E MALVIVER. 
Imagem : laura makabresku

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

........

As coisas nunca acontecem
como a gente quer.

Nem como a gente
não quer.

As coisas nunca pedem
a nossa opinião.

Autor : Cary Bertazzoni
Imagem: antoine renault

sábado, 25 de janeiro de 2020

..

na monotonia 
de uma vida vazia

qualquer tragédia
é alegria.

Autor : Kaio Bruno Dias
Imagem : Sandy Skoglund

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Os meus olhos


Guarda, se possível, a cor das paredes do quarto,
as flores desbotadas do tapete,
a lâmpada fundida junto ao teu lugar na cama,
o pó mergulhado na textura das cortinas,
a janela aberta em dias de vento,
o cheiro a alfazema do roupeiro,
os álbuns dentro das gavetas como memórias que
o teu corpo desejou no meu, só não guardes, por favor,
o som daquela porta a bater nas tuas costas,
pois esse, foi o som que guardaram os meus olhos

Autor: Carla Pais
Imagem : Brooke Shaden

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Revolta


Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só. Não trouxe mensagem
e nem deram senha…Disseram-se que não iria perder nada,
porque não há mais céu.
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora…Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha pátria é a minha memória.
Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória…

Autor :João Guimarães Rosa
em ‘Magma’.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

..

A primeira vez que morremos
morre também o para sempre 
de cada morte.

Partimos para um lugar
onde as paredes são espelhos quebrados. 
E por cada fresta de reflexo vazio
passam todas as dores. 

Insinua-se a realidade nas pálpebras 
e no ventre. 

Como dói acordar do sono branco...

Quando se regressa
não somos menos 
mas mais um outro
cujas mãos cumprem o seu propósito 
de rasgar nuvens
alheias à luz que escondem. 

Depois há a memória
que sempre resiste às pressas do tempo. 
Porque sempre lembramos o dia
em que deixamos de falar 
com os peixes
as pedras e os pássaros 

e inventamos um deus que nos escute.

Autor : Sónia M
Imagem : Bree Rivers

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Sobre flancos e barcos


Havia ainda outro jardim o da minha vida
exíguo é certo mas o do meu olhar
são talvez dois pássaros que se amam
um sobre o outro ou dois cães de pé
é sempre a mesma inquietação

este delírio branco ou o rumor
da chuva sobre flancos e barcos
o inverno vai chegar
sobre a palha ainda quente a mão
uma doçura de abelha muito jovem

era o sopro distante das manhãs sobre o mar
e eu disse sentindo os seus passos nos pátios do coração
é o silêncio é por fim o silêncio
vai desabar

Autor : Eugénio de Andrade
In Véspera de Água
Imagem: Bertoni Siswanto

sábado, 18 de janeiro de 2020

Se você morrer de saudade me avisa


Se você morrer de saudade me avisa, para eu saber se amanhã será um dia azul ou cinza. Se você lembrar o meu nome pega o telefone e conta que lembrou, que foi sem querer, mas lembrou. Se for uma saudade que passou de raspão conta mesmo assim, conta que quase pegou em você, que você quase sentiu a minha falta e quase mandou uma mensagem e quase passamos a tarde conversando. E, se você não sentir saudade nunca, tudo bem, fico aqui achando que sentiu e não contou, e invejo as suas duas habilidades: não sentir saudade e ficar em silêncio quando sente. Perguntei para aquele nosso amigo, “Será que ela também sente?”. Ele respondeu com outra pergunta, “Você sente tanta saudade assim?”. Eu disse, “Todos os dias”. Ele evitou me olhar nos olhos e falou baixo, “Todos os dias é melhor que todos os minutos”. Essa foi a primeira vez que quantifiquei a minha saudade em relação ao tempo: é muita, mas não é a cada minuto. Isso me leva a pensar que a sua pode ser pouca e única, por isso, se acontecer me avisa, para eu saber se amanhã será um dia azul ou cinza.

Autor : Bruno Fontes
Imagem : Joel Robison

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Da calma e do silêncio


Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Autor : Conceiçao Evaristo

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

depois do amor


às vezes, depois do amor, 
quando feras dóceis rondam o nosso sono, 
e afastam os passos dos teus amantes, 

às vezes, quando me encosto à nudez, exausto, 
e tomo o peso às tuas palavras, 
e fico sempre devedor, 

às vezes, quando me inventas um nome 
para que a madrugada chegue 
e eu não tenha de morrer nunca mais, 

às vezes, penso no deus que te perdeu, 
e choro, às escondidas, por ele. 

Autor : João de Mancelos 
Imagem : Alex Stoddard

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

..

limitações
a morte não chega

a vida não basta
não quero não queiras
ser ave sem asas

Autor : Líria Porto
Imagem : Shelby Robison

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Remoinho

Enrodilhei-me no Vento...
Vou e venho,
vou e venho,
e o Vento sempre a rolar-me,
e agora quero agarrar-me,
lanço a mão a procurar-me,
e é só o Vento que apanho...

Autor : Sebastião da Gama
Imagem : Frank Melech

sábado, 11 de janeiro de 2020

circular de adeus

[circular de adeus]

[dez de janeiro. só o silêncio responde]


não sei se alguma vez viste
crescer a morte sobre um corpo 
é como uma infância
de que se desconhecem os modos 
ou o lento estalar de um vidro 
são como imagens as imagens
partidas esse abandono de partir 
o que em água viram os olhos 

por esse lençol subido de silêncio
sobe nu de tempo um homem 
com mãos devagar de luz 
a morte cresce com ele 
é o seu corpo que poderá ser 
a palavra.

Autor : © Pedro Sena-Lino
Extraído de: deste lado da morte ninguém responde
Quasi, 2005
Imagem : Hossein Zare

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Restos de verbos



A minha alma quer cantar poemas aluados,
quer rasgar versos prateados,
quer jogar no mar as rimas perdidas na noite de lua cheia,
restos de verbos deitam-se quietos no colo da lua.

Autor : Sónia Sultuane
Imagem : Brooke Shaden

Sónia Sultuane é artista plástica, escritora e poeta moçambicana. Tem quatro livros de poesia publicados, além de obras voltadas ao público infantil. Roda das encarnações é o quarto livro da escritora, e o primeiro lançado no Brasil, em 2017, pela editora Kapulana. Foi escolhida como Escritora do ano 2014 pelo Círculo de Escritores Moçambicanos na Diáspora e, em 2017, recebeu o Prêmio Femina na categoria Letras em Literatura e Poesia. Roda das encarnações (2017) traz uma poética suave, sensorial e mística. Temas como a espiritualidade, a memória e o amor também estão presentes

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

..


no inverno algumas pessoas ficam mais elegantes outras morrem de frio. 

Autor : Kaio Bruno Dias
Imagem : Nelleke Pieters

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

..


To escrevendo o que preciso pra começar o novo ano em paz. Você é a primeira na lista de coisas que quero. E na de que não quero, também. 
Autor: Bruno Fontes
Imagem : Ali Jardine

domingo, 5 de janeiro de 2020

Ele


Não te iludas 
Com toda aquela alegria contagiante 
Que transborda dele e do seu olhar 

Nos momentos de melancolia 
Ele tem muros de medo e o pânico 
Metamorfoseados em espasmos de ansiedade 

Quando notares uma mancha mais escura 
No seu olhar esverdeado 
Não lhe digas nada, apenas sorri e leva-o a ver o mar 

Autor: BeatriceM 2020-01-04
Imagem: Bertoni Siswanto

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Hoje

Hoje tinha algo entalado na minha garganta e não era um comida.
Era o medo do desconhecido
Era a angústia de não saber pra onde vamos
Era a raiva por ver tantas pessoas desumanas
Era o desejo por querer ajudar e não conseguir
Eram as lágrimas de saudade do que foi bom
Era a vontade de ver as coisas dando certo
Era a incapacidade de lidar com decisões
Era o desespero por uma vida justa para todos. 

Autor : Cary Bertazzoni
Kindra Nikole

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Calendário




Janeiro. O sol vem devagarinho
bater à minha porta. Vem dizer
que o frio é um punhal. E o caminho
é uma rosa de sono a apodrecer.

Fevereiro. As aves têm medo
de poisar nos braços da manhã.
Morreu a toutinegra. O arvoredo
deita lágrimas de cinza e hortelã.

Depois Março rasteja. É uma hera
penetrando o vente da alegria.
A terra é verde. E é loira a primavera
bordada a fios de sol do meio-dia.

Abril é um abraço. É uma flor.
A flor que tem raiz no coração.
Abril foi um sol dado. Um sol maior.
Uma espingarda dentro da razão.

E Maio? Ah sim! De Maio o menos
que poderei dizer é a verdade.
É da luta na rua que faremos
um país que seja a própria liberdade.

Mês de Junho: a pedra sobre o lago.
Um barco de palavras que não vejo.
O mar da estranha calma em que naufrago.
A praia onde respira o meu desejo.

De Julho quase nada. Fiz um filho.
As noites são irmãs da minha boca.
E há beijos que me sabem a tomilho
quando abraço das estrelas a mais louca.

Agosto é a seara. A lua cheia
de promessas. De raivas. De cantigas.
O sol é uma aranha. E faz a teia
entre o azul do céu e as espigas.

Setembro da tristeza. Das vindimas.
Ai vinhas da mentira! Orgasmo das videiras!
Há cachos de uvas brancas nestas rimas.
Borboletas colorindo as bebedeiras.

Outubro é um cavalo. Um potro branco.
Escoiceando o vento. Mordendo a claridade.
E ferido de um só golpe sobre o flanco 
ainda vai trotando esta ansiedade.

E vem Novembro. Um assassino deixa
morrer a minha pátria. E jaz no chão
a minha rosa negra. A minha queixa.
Novembro não tem paz. Não tem perdão.

Dezembro. Cantaram-se outros hinos.
Gritaram-se os poemas que não fiz.
E morro entre palavras. Entre os sinos
que tocam a rebate o meu país.

Autor : Joaquim Pessoa 
 in AMOR COMBATE.