quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

composição


Sequer um gesto fica por esboçar
nem hora sem a sua liturgia:
realidade inteira a respirar
Deus, por todos os poros, à porfia.
Só então o poeta bebe a bica
e, discreto, compõe versos à lupa.


Autor : António Barahona da Fonseca

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

A Noite abre meus olhos

Christine Ellger


Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só

Autor : José Tolentino Mendonça
in 'A Estrada Branca'

domingo, 27 de dezembro de 2015

Fiquei

Laura Makabresku

Fiquei de pé, a ver-te partir, por entre
os automóveis, que seguiam na mesma
direcção
só quando desapareceste no final da
rua,
cambaleando,
comecei a andar pela praça
coberta de folhas das que árvores que
circundavam as casas.

E então chorei…totalmente desamparada.

BeatriceMar

sábado, 26 de dezembro de 2015

Não é Preciso

Laura Treece

Não é preciso que a realidade exista
para acreditarmos nela. Na verdade,
se não existir tudo é mais luminoso.
Mundo, evidência submissa e soberana.

Autor : Pedro Mexia
in "Duplo Império"

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Feliz Natal


Desejo a todos os amigos, visitantes e seguidores um Feliz Natal.

BeatriceMar

domingo, 20 de dezembro de 2015

despedidas

Andrea Hubner
Ao fundo da rua, o teu carro,
a esvair-se em marcha lenta.

Eu parada, a reter, a tarde, a rua,
a despedida.

Às vezes oiço as tuas palavras,
que guardo em lugares recônditos.

BeatriceMar


sábado, 19 de dezembro de 2015

significativo

todos os nomes podem ter uma coisa
que pode não ter nome.
não sei se é o tempo, se há tempo
ou se há um tempo, sequer.
os meus dedos são o que eu quiser,
mas tocar-te, sejam eles o que forem,
só se o desejares. o resto, nesta matéria:
são invenções ou coisas de outra razão,
que não a minha. ou palavras. ou nomes.

mas eu sonho. pouco importa a cor
ou o nome. sonho, como respiro.
respira. podes colar estrelas no céu,
embalar a dor e ter mapas no corpo.
poderemos não ter que atribuir um nome
a tudo e, ainda assim, comer laranjas.

Autor : Henrique Caldeira dos Santos
http://aurorar.blogspot.pt/

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Palavras minhas

Rosie Hardy

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

Autor : Pedro Tamen
in TÁBUA DAS MATÉRIAS – POESIA 1956-1991 (Tertúlia,

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Nem tudo

Elizabhet Gadd

Nem tudo o que os olhos vêem são verdade, tal como nem tudo o que o coração sente é real.
Não se escreve o que se pensa e o que se sente, escreve-se no crú da folha o que se é.
Ao se mostrar, nú, o homem despe-se de seu corpo e matéria para se apresentar aos nossos olhos.
Acreditamos religiosamente nas nossas mãos e sentidos sem antes as lavarmos.
Acreditem que nossos sentidos são mentores de nossa personalidade mas não nossos poderes.
Se me perguntarem a mim, se assim o é, tenho que pensar um pouco sobre o que sinto do próprio homem.
Na vida, o peito doi, aperta, mas ele sabe o tempo e o caminho.
Autor: Alvaromartins MArtins  Alvaromartins Martins

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

era um vapor que passava

Saul Landell

Era um vapor que passava
e o seu rasto na água.
Era uma ave suspensa
no redondo do céu.
Era a tarde e a sua
luz esmaecente.
E eram as nossas mãos
que se uniam
em silêncio.


Autor  . Pedro da Silveira (Memória Vaga)

domingo, 13 de dezembro de 2015

...

lembro os nossos corpos
à chuva
na praça defronte da casa

hoje chove
e só existe a praça a casa
e a tua lembrança

BeatriceMar

sábado, 12 de dezembro de 2015

É estranho este sentir em que nada sinto

Ana.Photography.PL

É estranho este sentir em que nada sinto,
Este morrer que semelha uma outra lida
Ao lavrar estranha emoção jamais sentida
Pois não escrevo pensando, mas por instinto.

Sendo justo, escrevo tão-só o que pressinto,
O que não sentirei nesta coisa nunca tida,
Para uns existência, para mim triste vida
De cuja ausência no que faço me ressinto.

Sou assim, nada há a fazer. E, ao sê-lo,
Melindro quem s’atreve a ter piedade,
A nutrir por mim certo dó, sem merecê-lo,

Pois só então sei ser para ser de verdade
Quem julgo ser quando tento esquecê-lo,
Esse que sou, mas do qual não tenho saudade.

LC dixit
Autor : Luís Corredoura

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Quando vieres

17 de janeiro de 1927 
10 de Dezembro de 2015

Encontrarás tudo como quando partiste.
A mãe bordará a um canto da sala...
Apenas os cabelos mais brancos
E o olhar mais cansado.
O pai fumará o cigarro depois do jantar
E lerá o jornal.
Quando vieres
Só não encontrarás aquela menina de saias curtas
E cabelos entrançados
Que deixaste um dia.
Mas os meus filhos brincarão nos teus joelhos
Como se te tivessem sempre conhecido.
Quando vieres
nenhum de nós dirá nada
mas a mãe largará o bordado
o pai largará o jornal
as crianças os brinquedos
e abriremos para ti os nossos corações.
Pois quando tu vieres
Não és só tu que vens
É todo um mundo novo que despontará lá fora
Quando vieres.

Eugénia Cunhal
in «Silêncio de Vidro»

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

E agora a tua pele

Rosie Hardy

Revejo: é manso o mar.
E sei que o vento corre e que por ele
se colam no teu corpo lembranças de luar.
Descanso: os teus cabelos.
Entrego: já é dia.
Os caules são serenos, e ao vê-los
No côncavo da mão o sol nascia.

Autor : Pedro Tamen

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

I Was Made To Love Magic

Elena Vizerskaya

A manhã com as suas proibições
na tua fala. A claridade estava a crescer
numa cama que já se tinha atravessado no escuro
como uma nave enfileirando para a guerra.

Eu não tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas não cheguei a levantar as persianas.
Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar
porque quando falávamos os nossos olhos
não coincidiam com nenhuma palavra.

Teria gostado de te levar comigo outra vez
mas era difícil recuperar as razões
para o desejo. E no caso de nos ter acontecido
uma mudança, onde é que havíamos de procurar
os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes
e eu só falava em livros.

Autor : Rui Pires Cabral
in 'Música Antológica & Onze Cidades'

domingo, 6 de dezembro de 2015

a tarde entra

Barbara Cole

a tarde entra sorrateira pela janela
por cima das cortinas

e as gaivotas esvoaçam, adivinhado
a chuva da noite

na minha memória, ainda
recuo no tempo

e sei que amanhã os barcos
não vão para o mar.

BeatriceMar

sábado, 5 de dezembro de 2015

quisera

Oleg Oprisco

quisera tão só esse dom de cegar,
de luz trespassar as noites
e no ventre do mundo correr mansamente
como se os navios chamassem
e um oceano morresse no vazio dos passos,
como se fosse a hora de me transformar numa ilha
onde só tu naufragasses


autor . gil t. sousa

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Dizes que me amas

Ivan Alifan

Dizes que me amas de uma tal forma,
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.


autor: Amália Bautista