terça-feira, 31 de outubro de 2023

Olha-me agora



Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rota mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.

Fala-me agora, que não tenho boca.
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.

Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;

ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Ruslan Bolgov

domingo, 29 de outubro de 2023

O silêncio do teu olhar


O silêncio do teu olhar, repleto de palavras,
ainda ressoam em mim, como,
um fogo-fátuo por entre a bruma.

Autor : Beatrice 2023-10-29
Imagem : Michelle Ellis

sábado, 28 de outubro de 2023

Refugio-me do fogo das bocas

A boca é o lugar onde se dá o encontro
entre o pensamento e o fragor da palavra.

Há palavras que incendeiam quem as ouve
bocas de lume secas de tão escaldantes
aparentemente luminosas
mas negras depois do fogo.


Refugio-me na beleza que me dás violoncelo ___
__ desculpa tratar-te por tu.

Autor :Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Trago-te nos braços ao cair da tarde

trago-te nos braços ao cair da tarde
quando a glicínia cheira na porta do meu corpo
tacteias a espaço a porta entreaberta
e reténs o grito na fogueira da boca
convulsionada e ágil te conduzo
na relva agora húmida e macia.

Fecho-me para crescer em ti
os dedos acordados e subtis
e é tudo água, vórtice, clarão.
 
Autor :  Maria Aurora Carvalho Homem
in antes que a noite caia

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Não existe tempo sem tempo



Não existe tempo que determine o amor
Nem palavras que definam como amar
Não há beleza mais aromada que a flor
Nem astro que tenha a luz do teu olhar
.
São os teus olhos tão puros e fraternos
Que acalentam as lágrimas da emoção
São os teus abraços tão fortes e ternos
Que aquecem as pulsações do coração
.
São as tuas palavras trovas de encanto
Que me fazem vaguear pelo entretanto
Das interrogações em cálido esplendor
.
Quando se dança pelos sonhos diversos
Em sentidos musicais a afagos imersos
Não existe tempo que determine o amor
.
Autor " R y k @ r d o "
https://pensamentosedevaneiosdoaguialivre.blogspot.com/
Imagem : Lilian Liu

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

XI


Vou trazer comigo as folhas amarelecidas
pelo tempo
E o cheiro dos livros antigos que
abandonaste
Vou trazer comigo a pele ocupada
pelo esquecimento
A mente que alberga
a solidão que se faz loucura
Vou trazer comigo todas as vezes
que me negaste
Na casa desabitada
Engolida pelo desejo que perpetuou
o silêncio
Vou trazer comigo a dor a tristeza
a melancolia
E vou abandonar tudo aos teus pés e partir
despida
Sem versos que me vistam

Autor : Teresa Almeida Rocha
in Coreografia do Silêncio
Imagem :Vaggelis Fragkakis

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Quarto


Os posters, colados com fita-cola,
arderam nas paredes. Os ursos de
peluche fecharam os braços e, por
quase nada, arderam sobre a cama.
Os cartões de estudante antigos, os
postais de férias e os três poemas
passados a limpo arderam dentro
da gaveta da mesinha-de-cabeceira.
Fiz dezasseis anos, chegou o verão e
os bombeiros não tiveram meios
técnicos e humanos suficientes.

Autor : José Luís Peixoto
in Gaveta de Papéis, Prémio Daniel Faria 2008,
Imagem : Erik Johansson

domingo, 22 de outubro de 2023

Compaixão


E que eu seja surda e muda
Mas apenas vislumbro
A ausência da compaixão

Pesarosa não me quero alongar
Mas constato e questiono
Porque esta turbulência neste mundo?

Autor : Beatrice 2023-10-21
Imagem : Michelle Ellis

sábado, 21 de outubro de 2023

Bastava que me olhasses uma vez ainda.

 

Bastava que dissesses a palavra exacta,
que tens aprisionada na garganta,
Bastava que pendurasses
na porta do teu quarto um lenço branco.
Bastava que enfeitasses o chapéu
com as flores que o fim da tarde
pões sedentas da luz dos teus cabelos.
 
Bastava que me olhasses uma vez ainda.

Autor : Torquato da Luz
Imagem : Ezgi Polat

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

IV


 Eu dantes tinha olhos verdes
Só agora reparei
Verdes, viam tudo verde...
por que eram verdes, não sei.
Sorriam àquela flor
Que havia na água parada
(Verde flor, na verde água
da vida transfigurada).
Hoje olham e reconhecem
que há muito mais cores para ver.
Cor de flor, que logo esquecem
Cor de charco a apodrecer.

Autor : Maria Judite de Carvalho
Imagem : Rodney Smith

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Quadro Mediterrâneo

 

Nas altas varandas da tarde os flamingos
eram os dias.
Mulheres de cinza estendiam roupas
em frágeis fios de espuma.

Na orla magma dos templos,
onde se ajoelhavam os mitos,
cantaste o jorrar do vinho,
o entornar de taças sobre os linhos da noite,
acesas estava as lamparinas, os hóspedes
nos degraus de júbilo.

Levantavas das vozes colunas de buganvílias,
ressoar de asa perdendo-se na distância,
tecedeiras olhando o paciente trabalho do verão
nos vasos das janelas
onde os gatos dormiam até ao fim
de setembro.

Chegaste nos cânticos dos trovadores,
no ranger das portas velhas das casas junto ao mar,
nesse homem que ninguém nota, sentado
em ervas de areia, nas pegadas brancas
do vento
e nos secretos presídios
da memória.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto

Nota: EDUARDO BETTENCOURT PINTO, escritor, VANCOUVER, CANADÁ, representa a comunidade açoriana na diáspora. Eduardo Bettencourt Pinto. Nasceu em Gabela, Kwanza Sul, Angola, em 1954. Tem ascendência açoriana pelo lado materno.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Confissão

Quando às vezes me queixo, não é nada
pelas loucuras que tens feito. Não!
A gente não domina o coração,
antes por ele é sempre dominada...

Sei que ainda em teus olhos, disfarçada,
vibra a chama da última paixão!
Que falas da saudade e da ilusão
numa voz triste, lenta, perturbada!

Tu procuraste sempre em toda a parte
emoções raras, e eu não posso dar-te
mais do que um calmo, um grande amor sem fim!...

Viveste horas febris, horas serenas...
Não as lamento, não. Lamento apenas
as que tu não guardaste para mim!

Autor :Virgínia Victorino
Imagem : Berta Vicent Salas

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Uma viagem no Outono


Imensa, esta gente reconduz
a catástrofe ao ruído de folha sobre folha,
mas a vingança dos mortos
é uma faca mergulhada na terra, o gume
iluminado da raiz.

Autor :Rui Nunes
Imagem :Janek Sedlar

domingo, 15 de outubro de 2023

Um abraço


É um laço
Estreito
Macio
Sem margens
Sem obstáculos
Um abraço apenas
E neste momento
Era tudo
O que eu te queria dar

Beatrice 2012-10-14
Imagem : Desconheço o autor

sábado, 14 de outubro de 2023

Sobre as Areias

Um mar de nada, luzindo turquesa em eterna canção. Duas sombras, tão gémeas do céu ou do vento, sobre o espelho fulgente de areias em decrescente ebulição trilham um caminho sem fim. Vestígio após vestígio, garça alguma neles lerá a denúncia do rumo traçado no sal do instante.

Um perfume de nardo imiscuído em sândalo e canela de cetim, um polvilho salgado sobre a maior frescura do sopro poente. Os olhos anseiam evaporar-se num incêndio de luz, mas querer é demasiado quando tudo é o perfeito acorde do vazio. Por isso cintila, tão magnífica e pura, a solidão do voo duma gaivota, a rocha aberta ao eterno movimento da onda que aceita a sua morte.

O teu toque, explosão solar de giesta fora de estação, lembra no seu súbito arrepio a carne doída do desejo voraz.

Autor : Pedro Belo Clara

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Dor



Não há forma de abrir o peito e reparar o coração.
Podes rasgar a carne, limpar e repor as artérias certas
no seu lugar, consertar o rasgo, suturar a pele. Mas o
peito ficou por abrir e não há bisturi que o perfure.

O corpo é um lugar que podes adormecer para
dissecar. Mas o peito não. O peito é uma pedra dura
que nada mais recebe em si que os resíduos de vida
que se lhe assimilam por aglutinação natural da dor.

E não há diafragma que to separe do resto de ti.

Autor : Virgínia do Carmo
in Relevos(Poética Edições, 2014)
Imagem : Korinne Bisig

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Podia dizer-te hoje



Podia dizer-te hoje,
Que nunca te deixei.
Por nenhum momento.
Ouvia-te chorar dentro de ti.
E as tuas lágrimas
Inundavam as planícies, negras
E acidentadas, do meu corpo
Pela erosão dos teus dias.
Já não tenho lugar
No silêncio onde moram as gaivotas,
Nem na tua pele, onde dantes,
Desenhava constelações.
Já não deixamos as roupas
Debaixo dos luares
Dos nossos corpos,
Nem sentimos o galopar
Dos nossos corações,
Por entre bosques
E lábios de silêncio.

Autor Paulo Eduardo Campos
in «Na serenidade dos rios que enlouquecem»,

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

ODE RIMBAUD

eu sou absolutamente moderna, Rimbaud.
sei que nunca pensaste que uma rapariga de Portugal
se tornasse absolutamente moderna.
o caso é que nunca deitei o amor pela janela
mas a janela deitou-se pelo amor dentro.
não toco piano, não falo francês, nem faço fru-fru.
sou absolutamente moderna, Rimbaud.
tenho telemóvel, tenho blog, tenho carro
e até uma paixão que já não é platónica
agora para se ser absolutamente moderno
diz-se virtual, Rimbaud.
perdoa-me
dou-te a minha perna
um prato com bolinhos de canela
para te lembrares do tempo dela.
perdoa-me o sarcasmo, Rimbaud
o fatalismo azedo de rapariga absolutamente moderna
constructo humano, já não ser.
perdoa as minhas pernas a engordar de noite para noite
o fumo da chaminé comum do prédio
a minha imensa falta de árvores
a minha necessidade que devora um poema para o deitar fora.
perdoa-me não ter entendido uma única coisa que disseste
mesmo na tradução do Cesariny que é livre e bela
como uma rosa francesa desgrenhada em solo português.
perdoa-me escrever telegraficamente
ter deixado de respirar para todo o sempre
e continuar a pintar os lábios de vermelho
como se isso fosse possível num deserto sem beijos.
perdoa-me não ter conseguido manter a tua palavra
perdoa-me ter falhado e ser erro.

p.s. - se quiseres regressar a terra
como o Cristo da literatura do não
tomas café comigo?

Autor : Ana Salomé

terça-feira, 10 de outubro de 2023

De onde nasce a Poesia


De tuas entranhas,
Do odor de tua pele,
Do suor e do sangue,
Do calor do teu corpo,
Entre tuas pernas...

Abertas ou fechadas
Como janelas cansadas,
Atrevidas, caladas.

Nasce do medo,
E da cor do dia,
Da tristeza
E da alegria,
Até da própria poesia!

Nasce do grito,
Da dor da mulher parida,
Da satisfação,
Da necessidade,
Da leitura ao pão,
E da própria vida!

De onde? De tudo!
Até do absurdo!
Do poeta que não fala,
Da dor que se cala,
Quando pareço mudo!

De onde? Do caos!
Da guerra dos mundos,
Dos olhos perdidos,
Atrevidos, sem esperança,
Da moça e da criança.

Nasce também da dança,
Dos lobos na madrugada,
Nasce do amor,
E do amor à amada!

Nasce quando choro,
Imploro e quero colo,
Nasce quando da minha veia,
A inspiração parece teia,

E a minha poesia é nada mais
Que dois dedos na areia!

Autor :  Paulo Carvalho
 jornalista, poeta e escritor brasileiro. ..
https://www.redegn.com.br/?pes=Paulo+Carvalho&sessao=busca&button=Buscar
Imagem : Kamil Vojnar

domingo, 8 de outubro de 2023

Pôr-do-sol

 

Tenho um sonho
Junto da minha janela
Não o alcanço com a mão
Mas os meus olhos sim
E ao cair da tarde
Vejo através do horizonte
Aquecendo a praia
E despedindo-se do dia
E de mim…
Amanhã volta novamente…

BeatriceM 2023-10-08

sábado, 7 de outubro de 2023

O poema que hei-de escrever para ti, dando notícias

 

O poema que hei-de escrever para ti, dando notícias
Do último reduto das coisas, das profundidades intactas,
Nasce, adormece e referve-me no sangue
Com a íntima lentidão dos teus seios desabrochando,
Porque, sei, não estás longe (nem da minha vida!), meu mistério fiel.

Hoje a nossa companhia é a tua inconsciência e o teu instinto: puro

Instinto que eu, de longe, embalo e velo
E acordará («em frente!») às primeiras palavras
Do poema, quando ele despontar.

Autor : Cristovam Pavia 
pseudónimo literário de Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, nascido na freguesia de Alcântara, Lisboa a 7 de Outubro de 1933 e faleceu na mesma cidade a 13 de Outubro de 1968.


sexta-feira, 6 de outubro de 2023

quando a casa se cala


quando a casa se cala
de repente aprendo a ter medo
e fui eu que pedi este silêncio

abro e fecho armários e gavetas
quero um lugar fechado para guardar memórias
depois fico ali sentada
à espera que algo aconteça

Autor ▪ Maria Sousa
Imagem : Anka Zhuravleva

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Desalinho


Corri para os teus braços, mas não estavas,
Não dei conta da tua falta ao meu redor,
Por sentir no ar o teu odor, esse pormenor,
O que resistia, mesmo quando t’ausentavas…
Busquei-te p’lo mundo onde t’encontravas,
O que outrora criámos por um bem maior
Por crermos que tal seria para nós melhor,
Tendo-te tal como tu tudo de ti me davas…
Tentei perceber o que havia sucedido,
O que surgira para ter ficado sozinho,
Achando-me sem rumo certo, desiludido,
Mas só vi como motivo deste desalinho
O que nunca, para mim, fará sentido
Sempre que um futuro contigo adivinho…

Autor : Luís Corredoura dixit ©
Imagem : Daniel Del Orfano

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Crepúsculo


Só no fim da tarde o dia acontece
quando o horizonte cresce 
e o ocaso é uma bola de cristal.

Só no fim da tarde o mar sibila
a areia emudece
esperando amanhecer
Só no fim da tarde encontro nos teus olhos
a profusão dos sentidos
na perdição dos meus.

Autor : Teresa Brinco de Oliveira
Imagem David Tomek

terça-feira, 3 de outubro de 2023

O outro

 


Feridas mais fundas do que em mim
abriu em ti o silêncio,
estrelas maiores
enredam-te na rede dos seus olhares,
cinza mais branca
repousa sobra a palavra em que acreditaste.

Autor : Paul Celan
A MORTE É UMA FLOR, POEMAS DO ESPÓLIO, Tradução, posfácio e notas de João Barrento, Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1998
Imagem : Anke Merzbach

domingo, 1 de outubro de 2023

Desejo



o corpo descaído,
a melancolia na tarde,
entranhada na epiderme,
a água salgada,
encharcada no corpo lasso,
o fogo cérceo,
a percorrer desejos,
indizíveis.
.
autor :BeatriceM :2014-09-27
Imagem: Mary Parker