domingo, 20 de outubro de 2024

hoje repouso


amanhã sobrevivem as minhas palavras adormecidas
em todos os esconderijos dos silêncios
e nos ruídos calados em que as escrevi, pressentidas.

Autor : BeatriceM 2024-10-19
Imagem :Stephanie Pearl

sábado, 19 de outubro de 2024

Ainda não

Ainda não
não há dinheiro para partir de vez
não há espaço de mais para ficar
ainda não se pode abrir uma veia
e morrer antes de alguém chegar

ainda não há uma flor na boca
para os poetas que estão aqui de passagem
e outra escarlate na alma
para os postos à margem

ainda não há nada no pulmão direito
ainda não se respira como devia ser
ainda não é por isso que choramos às vezes
e que outras somos heróis a valer

ainda não é a pátria que é uma maçada
nem estar deste lado que custa a cabeça
ainda não há uma escada e outra escada depois
para descer à frente de quem quer que desça

ainda não há camas só para pesadelos
ainda não se ama só no chão
ainda não há uma granada
ainda não há um coração

Autor : António José Forte
Uma Faca nos Dentes
Livraria Editora, Lda.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

....

Logan Zillmer

a casa é feita de gestos
e a solidão é um vazio
que quase se consegue tocar

o quarto, o corredor, a sala
tudo faz parte desta geografia
do vazio

e se de repente o telefone tocasse
e fosse a tua voz?

Autor : Maria Sousa

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Não me peçam razões,


Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há de vir.

Autor : José Saramago

domingo, 13 de outubro de 2024

Olhar perdido na tarde ...



Defronte tenho o mar ilimitado e sem fim à vista
Selecciono um banco de pedra e sento-me
Acalmo a minha mente ao observar as ondas
A desnudar as areias ou a lavá-las tanto faz
Observo as gaivotas na sua marcha infindável
Á procura de algum mantimento
Aquela linha que separa o oceano do mar
Atrai-me
Por momentos fico a meditar e o pensamento ganha asas
O horizonte é uma parte de um filme que eu engenho
E fico-me com o olhar ligeiramente toldado
Não sei se é da neblina se é de algum cisco
Se calhar nem uma coisa nem outra
E permaneço, até a noite cair sobre o mar e sobre mim.

Autor : BeatriceM 2024-10-12
Imagem : Korinne Bisig

sábado, 12 de outubro de 2024

Morte silenciosa

A noite cedeu-nos o instinto para o fundo de nós imigrou a ave a inquietação

Serve-nos a vida mas não nos chega: somos resina de um tronco golpeado para a luz nos abrimos nos lábios dessa incurável ferida

Na suprema felicidade existe uma morte silenciada

Autor:Mia Couto
Foto:Paralajka

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

A rosa branca

Isto é a terra?
Então não sou daqui
Quem és tu na janela acesa,
agora à sombra
das folhas trêmulas do viburno?
Podes sobreviver onde não vou durar
Além do próximo verão?
A noite inteira os galhos esguios da árvore
movem-se e sussurram à janela iluminada.

Explica a minha vida,
tu que não fazes sinal algum,
embora eu chame por ti na noite:
não sou como tu, tenho apenas
meu corpo como voz; não posso
desaparecer no silêncio —
E na manhã fria
sobre a superfície escura da terra
vagueiam ecos da minha voz,
brancura que firme se consome em escuridão
como se finalmente fizesses um sinal
para me convencer de que também
não pudeste sobreviver aqui
ou para me mostrar que não és
a luz que chamei
mas o breu atrás dela.

Autor : Louise Glück — tradução de Maria Lúcia Milléo Martins
Imagem : Alexei Antonov

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

    O poema, senhores,
    não fede
    nem cheira

Autor : Ferreira Gullar
 in 'Antologia Poética'

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Principe

katia chausheva

Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Autor : Ana Hatherly

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Homem

tommy ingberg

Inútil definir este animal aflito.
Nem palavras,
nem cinzéis,
nem acordes,
nem pincéis
são gargantas deste grito.
Universo em expansão.
Pincelada de zarcão
desde mais infinito a menos infinito.

Autor : António Gedeão
in 'Movimento Perpétuo'

domingo, 6 de outubro de 2024

Apontamento



Às vezes penso que já era estranha quando te conheci.
Sei lá!
Acho que depois fiquei pior, e nem sei se é pior ou melhor ficar ainda mais estranha, do que sempre fui. Tu dizias que eu era uma ostra, mas que também sabia ser uma gaivota. E eu sabia que ostra queria dizer, calada e gaivota queria dizer, capaz de voar sem dar explicação nenhuma a ninguém muito menos a ti. Tu também ias e vinhas, mas nunca ficavas.
Ás vezes penso que eu não sou assim estranha como tu me fazes crer que eu sou, acho que quem é estranho és tu, por isso, quando voltares, a passar na minha rua e quereres saber de mim, nem fazes ideia que eu já cruzei o oceano, e que na minha bagagem a lembrar-me de ti apenas levo aquele boneco horrível que me deste quando fomos comer um hambúrguer ao mcdonalds.
Talvez por isso eu não me importo nem um pouco que me aches estranha.
E sem querer ser normal, acho que vou guardar em mim tudo o que ainda sinto por ti e que tu nunca vais morrer nas minhas memórias.
Mas, isso, tu também não precisas de saber…

.
Autor: BeatriceM 02-10-2016
Imagem Brook Shaden

sábado, 5 de outubro de 2024

“We are flint and steel to each other"

Ontem choveu sem descanso
e fizemos tudo mal. São dias
de pedra e aço - alguém sabe
onde nos levam? Dão-nos
um amor volúvel que lisonjeia
os sentidos, mas não podem
consolar-nos da penúria
de existirmos, tu e eu, cada um
na sua pele, no seu áspero

lugar. E lembram-nos a todo
o instante do que já estava perdido
no escuro de uma gaveta
antes de ter começado,
como um verso interrompido
nas costas de um envelope
ou uma velha cassete
que mal chegámos a ouvir,
hora e meia de remerso

e distorção. Não te salvo,
não me salvas - nem é certo,
quando o medo se demora,
que haja ainda o que salvar.

Contra o frio que nos ronda,
resta o lume que ateamos
por ternura, desfastio
ou vontade de vingar
o dissabor de viver.

Autor : Rui Pires Cabral
Imagem : Emérico Toth

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Motivo

Bryan Larsen

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Autor : Cecília Meireles

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

esta esquisita prova me tentou

esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo

culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha

em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas

um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Taylor Rayburn

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Digo-te por isso

Digo-te por isso
que não me obrigues a luz.

Que escrever não é fácil,
que viver não é fácil
quando começamos a frase a meio.

Que lavo a cara ao chegar tão tarde
e mesmo assim o dia não se despega,
e mesmo assim
tu não estás, ninguém está.

Que não tenho espaço na minha secretária,
na minha vida, na minha cama
para tanto espaço.

Que já me disseram urbana,
e nem por isso me disseram decadente,
e que eu gostei.

Que já me disseram
muitas vezes
disfarçadamente triste,
e que por isso, por ser triste, por
sermos todos tristes, não mo deviam dizer.

Digo-te por isso
que não era minha intenção dizer-te mais uns versos
tristes e sem luz, e por isso, só por isso,
não era minha intenção dizer-te nada.

Autor : Filipa Leal
Imagem :Alex Benetel