sábado, 9 de novembro de 2024

Aniversário

Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.

No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.

E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia.
  
Autor : António Franco Alexandre
Imagem:Laura Zalenga

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Afirmação

Mara Light
A essência das coisas é senti-las 
tão densas e tão claras, 
que não possam conter-se por completo 
nas palavras. 

A essência das coisas é nutri-las 
tão de alegria e mágoa, 
que o silêncio se ajuste à sua forma 
sem mais nada. 

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Um Denso Azul Silêncio'

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Cântico da Esperança

Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.

Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.

Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.

Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.

Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso

Autor : Rabindranath Tagore
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões
Imagem : Caras Lonut

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Poema ao amigo que perdi

Era uma manhã nutrida quase fúlgida
Quando te visitei no ermo
E te vi com as pedras os braços e as âncoras
Enquanto enunciavas palavras sem eira nem beira
alcalinas e demoradas
Eras todo tu um mundo que já não existe
Um apelo ao terrunho às saudades de enxadas e alguidares
Eras um viajante dos sonos silentes
Eras caligrafia e gestos dissidentes
Eras uma flor sem água com a ampulheta e o passar das horas
Elegi-te o meu maior amigo
O que desvelava a minha espera o meu grito
Eras o refrão do meu cansaço da minha inquietação do meu ser aflito
Eras as consoantes de uma chávena de um pão de um atrito
Quando te partiste de mim
Amareleci e pendi para as cicatrizes de um marejar maldito
Reuni as dálias e os escaravelhos e aí por ora me agito

Autor : Cecília Barreira July 31, 2022
Imagem : Trini Schultz

terça-feira, 5 de novembro de 2024

A noite tem tudo

 

A noite tem tudo
o silêncio nobre
sobre todos os silêncios
uma silhueta breve
que vemos de olhos fechados
o remorso como um punho
dentro da nossa boca
a noite tem tudo.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Michal Zahornacky

domingo, 3 de novembro de 2024

Vidas de Papel

Por momentos, somos apenas marionetas de cores
por vezes berrantes, por vezes suaves, conforme o instante
com cordelinhos a nos manipularem sem clemência nem dores

Autor : BeatriceM 2024-11-02
Imagem : Marcin Łaskarzewski

sábado, 2 de novembro de 2024

Visita



no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Autor : Ferreira Gullar
Imagem : Pinterest

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Um Céu e Nada Mais

Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.

Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.

Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.

Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,

nem inocência. Um céu e nada mais.

Autor : Ana Luísa Amaral
 in “Às Vezes o Paraíso”
Imagem : Andrea Peipe

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Labirinto

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.
E o alcácer abarca o universo
E não tem anverso nem reverso
Não tem extremo muro nem secreto centro.

Não esperes que o rigor do teu caminho
Que fatalmente se bifurca em outro,
Que fatalmente se bifurca em outro,
Terá fim. É de ferro teu destino

Como o juiz. Não creias na investida
Do touro que é um homem cuja estranha
Forma plural dá horror a essa maranha

De interminável pedra entretecida.
Não virá. Nada esperes. Nem te espera
No negro crepúsculo uma fera.

Autor : Jorge Luis Borges 
Trad.: Augusto de Campos
Imagem : Taylor Rayburn

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Deixa- me lembrar de ti.

Deixa-me lembrar de ti. Sei que nunca virás, por isso vai devagar onde houver sombras , a mão na minha e uma lua alta a escorrer de sedução para que possa morrer nos teus braços ou morrermos os dois na dança de todos os sonhos.

A noite é a sede  do teu nome no meu pensamento, por isso danço, canto, deslizo no porto do destino onde nunca desembarcámos.

Estou a olhar o calor noturno e uma leve luz ilumina os meus pensamentos.

Vens então devagar para que nunca chegues e eu possa continuar a  rodar na valsa quimérica da meia noite envolta nos teus braços de neblina.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Brooke Shaden

terça-feira, 29 de outubro de 2024

conselho

Se saudade vem
Mais cuidado com teu fado!
Chega a dor, também!

Autor :Artur Eduardo Benevides
Imagem : Andrea Kiss

domingo, 27 de outubro de 2024

Instantes

Quando o elevador ficou estático
Numa paragem imprevista
No seu interior dois olhares amedrontados
Entreolharam-se surpresos

Numa encruzilhada de predestinações
O silêncio compartilhado
Foi um gatilho para as palavras
Que brotaram espontâneas

Ávidos da liberdade dissipada
Por escassos momentos
Quando a porta se abriu
Foi o renascer para um novo destino

Autor : BeatriceM 2024-10-26
Imagem :Michael Vincent Manalo 

sábado, 26 de outubro de 2024

Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

Autor  : António Ramos Rosa
 in 'Facilidade do Ar'

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Amor vs Paixão

 

Para mim
o amor
fica-me justo.

Eu só visto
a paixão
de corpo inteiro.

Autor  : Maria Teresa Horta
Imagem : Karrah Kobus

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Gargalhada

Quando me disseste que não mais me amavas,
e que ias partir,
dura, precisa, bela e inabalável,
com a impassibilidade de um executor,
dilatou-se em mim o pavor das cavernas vazias…

Mas olhei-te bem nos olhos,
belos como o veludo das lagartas verdes,
e porque já houvesse lágrimas nos meus olhos,
tive pena de ti, de mim, de todos,
e me ri
da inutilidade das torturas predestinadas,
guardadas para nós, desde a treva das épocas,
quando a inexperiência dos Deuses
ainda não criara o mundo…

Autor : João Guimarães Rosa
In “Magma”
Imagem : Miçhael Muller