segunda-feira, 26 de julho de 2010

Ausentes para amor incerto



Já nem sabíamos quem fingir,
meu amor.
Foram raros os barcos nos lábios,
e demasiadas as laranjas
que a manhã descobriu
por afagar.

Já não somos a glória
de um corpo à deriva noutro corpo,
as nossas mãos já não florescem
nos cantos de cada noite.

Abelhas mordidas de morte,
cães de olhar deserto,
à chuva, à pedra, ao riso,
todos somos
Ausentes para Amor Incerto.

Autor :João de Mancelos In Ausentes para Amor Incerto , Aveiro, Ed. de autor, 1994.
Foto:Szarareneta

sábado, 24 de julho de 2010

Tudo o que ficou por dizer



Tudo o que ficou por dizer
porque de repente
era a hora do combóio
ou um telefone longínquo tocava
ou um qualquer acidente aconteceu.

Tudo o que ficou por dizer
porque o pudor calou a voz
porque um orgulho surdo a interrompeu
porque as palavras talvez já nem chegassem
ou era tarde
e o cansaço aos poucos foi levando a melhor.

Tudo o que ficou por dizer
porque a dor doía em demasia
e era necessário que as palavras
fossem capazes de ser claras como o ar
porque as palavras traem
como gumes de facas que nos cortam.

Tudo o que ficou por dizer
porque a tristeza apertou tanto a garganta
que nenhum som saía
nem o olhar continha
em desespero
uma lágrima ainda assim contida.

Tudo o que ficou por dizer
porque o tempo urgente
se esvaía
e de repente já não estava
no lugar a quem havia que o dizer
quem ainda há pouco nos ouvia.

Tudo o que ficou por dizer
e tudo
o que ficou por dizer
ou tudo
sempre
por dizer.
.
Autor: Bernardo Pinto de Almeida
Foto:Komarek66

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Esta manhã encontrei o teu nome



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Autor:Maria do Rosário Pedreira
Foto:Marasm

domingo, 18 de julho de 2010

Esta noite

esta noite
senti o mar incendiar-se
nas tuas mãos

arderam os olhos
nas tuas mão inteiras
enormes

esta noite no teu peito
inventei estrelas
que não conhecia
.

Autor:Luis Rodrigues
Foto:fotoalterego http://plfoto.com/zdjecie,akt,bez-tytulu,2140002.html

terça-feira, 13 de julho de 2010

As cidades Invisíveis


É o início das chuvas, o amor.

Encontramo-nos de acesos lábios,
mãos feridas de ruína,
e tremente solidão.

Passam fantasmas travestidos
de gente, – sombras, ilhas,
um breve par adolescente.

E todo o tempo é feito de cinza,
Outubro de um só dia
no céu da nossa vida.

São invisíveis, as cidades,
e até o anjo na hora de ponta
guarda seus olhos de nós:

Ninguém sabe, meu amor,
que só teu nome é uma ave
no final da minha voz.

Autor :João de Mancelos
In O Labor das Marés, Aveiro, Estante Editora, 1994.

sábado, 10 de julho de 2010

A mulher desconhecida



é muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
o doce amor
.
Autor:José Tolentino Mendonça
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida, Assírio & A
Foto:holethrom

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Queria.....



Queria dizer-te que já abandonei os barcos. Queria que soubesses. Queria dizer-te que agora já não existem motivos para que partas, já não te troco pelo mar e os barcos são só memória. Mas é a tua que se sobrepõe a todas as outras memórias mesmo sendo a água a primeira memória da humanidade.

Só queria que soubesses isso. Que abandonei os barcos

Agora para matar o tempo, para que saibas também, passeio pela beira-mar na praia que foi a nossa no cabo do mundo. E se um dia resolveres regressar nem a vais reconhecer…

Autor:João Marinheiro
Foto:komarek66

quinta-feira, 8 de julho de 2010

sede


Bebi um verso,
Sôfrego de cor,
No calor-do-não-estar-aqui…
Bebi-o!
Todo,
para respirar
e
perder-me no olhar,
sem dor,
por ali…
.
Autor:Almaro
Foto:Szarareneta

domingo, 4 de julho de 2010

Vagueio

Vagueio por caminhos perdidos a fim de me encontrar
Escondo sentimentos mas divulgo emoções
Escrevo palavras que me escorrem pelos olhos
Ignoro diários inacabados por ausência de coragem e
Adopto hábitos solitários que me enternecem por breves segundos mas que me abatem por longas horas.

No fundo, até a ínfima parte do meu ser esperneia para que voltemos a ser um só.
Tu e Eu, apenas.

Autor:Petra Correia

Foto:RCotton

sábado, 3 de julho de 2010

Toma-me

Toma-me
em teus braços
d’enlaços feitos.
Faz-me princesa dos teus actos,
(ou boneca de trapos)
coroa-me de boquets diademados
d’ hortenses d’algas e sargaços...

Mata a sede antiga
de te sentir a palpitar de lés-a-lés
edificado em mim, que, musa ou diva,
cederei ao desejo incontido
de ser em ti, de ti, poema, livro aberto,
mapa de um mundo secreto
e só nosso,
bonança e porto de abrigo

ou água …

simplemente água, livre e solta,
a explodir-se saliva no céu-da-boca
nos poros da alma
e nos corpos exaltados
os nossos corpos, amado, fundidos e nus
em palco divino de estrelas e de astros
afixos.

Mostra-me, se fores capaz,
a lua p’los teus olhos
os prados largos
e o sol alcantilado
nos delírios de ninfas e faunos.

Ofereço-te este mapa de marés…
.
Autor:Boneca de Trapos http://emsaltosaltos.blogspot.com/
Foto:GosiaMakova