quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Empresta-me



Empresta-me o teu olhar com pássaros
sem as sombras vazias da terra
Diz-me, diz o meu nome quando o teu corpo murmurar segredos às árvores
e o silêncio das palavras desaguar
nas transparências nuas do vento
Faz das tuas mãos um manto terno sem pressa
e deixa-me adormecer dentro delas,
longe das sombras vazias da terra
para que eu possa enfim adormecer

Autor : Maria João Saraiva
in Rio de Doze àguas(Coisas de Ler Ed., 2012)

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Irremediável

Quando eu continuar na minha marcha eterna,
direito no caixão, sereno e branco,
tu ficarás sozinha.
E talvez só entendas claramente
que, além de ti, eu era a única pessoa.
As mãos que se estenderem para ti
ser-te-ão irreais, como de fumo.
E todas as bocas serão gélidas e mortas,
e todas as palavras gélidas e mortas,
tudo gélido e morto para ti.
Terás os cabelos singelamente escorridos
e os olhos molhados
e as mãos abandonadas.
E só então (tão tarde) tu verás,
com a lucidez que vem depois das coisas consumadas,
a verdade total.
Tuas olheiras roxas
e os ombros caídos ao peso dos braços
serão a medida exata desta palavra: angústia.
Um manto de inutilidade e do vazio cairá sobre as coisas.
Ah mas então será tarde, imensamente tarde!
Porque eu estarei direito no caixão, sereno e branco,
sem poder repetir-me nunca mais.

Autor : Mário Dionísio
Imagem : Ben Zank

domingo, 28 de janeiro de 2024

A cifra


De tudo o que restou não lamento nada,
nada vezes nada, que circunscrevido é um nada,
majestoso ao mais alto expoente da memória activa.

Permanecemos nesse olhar tão cúmplice,
excedemos ondas de prazer,
esvoaçamos contra as adversidades do tempo.

Nos meus sentidos conservei tudo o que foi benigno,
só lamento o tempo que foi diminuto,
e esvaído em palavras que foram desvalorizadas.

Um dia voltarei para ti com todas as memórias,
inscritas num mapa em forma de hieroglíficos,
não necessitamos falar, tu compreenderás a cifra.

Autor : BeatriceM 2024-01-27
Imagem : Shelby Robinson

sábado, 27 de janeiro de 2024

Poema

Inteira
no sabor
de uma dor.
Verdadeira
na cor
de uma flor.
Exata em cada momento,
e no instante do movimento
mentida,
- Vida.

Autor : Vergílio Ferreira,
in Diário Inédit
Imagem : Lizzy Petereit

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Depois de tanta vida

Depois de tanta vida
não mais ocorre outra vida.
É um ponto negro e final,
cheio de mágoas e atitudes,
palavras por dizer.
Tão tanto e tanto nada.
Relâmpagos e flores,
montes, rios e vazios.

Afinal, sim.
De quantas vidas se faz uma vida?
.
Autor : ©Paula Raposo
Imagem : Kiara Rose

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

mãe queremos ainda passear

 

mãe queremos ainda passear
e já não temos quem nos leve
perdeu-se o olhar que nos guiava
e explicava os caminhos
perdeu-se a mão dobrada pela
lâmina de tanto trabalhar que
nos amparava se as curvas
da estrada anoiteciam
mãe já não temos a camioneta
azul onde construímos casas
e vivemos tanta vida
mãe já não temos a carrinha
branca onde voltaste ao
que conhecias para conhecer
de novo onde ouvimos música
de piqueniques e risos de netas
mãe queremos ainda passear
e já não temos quem nos leve
esperamos uma madrugada
que nos apresse a entrar na
camioneta azul na carrinha branca
um conforto que chegue e nos leve
um conforto que não chega
que não chega nunca mãe

José Luis Peixoto
In “A Criança em Ruínas”
Imagem : Karyn Teno

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Posta-Restante

 

No dia em que a tua carta chegar,
estarei sentada no sofá
provavelmente esquecida
que a espero.

No dia em que a tua carta chegar, ficarei surpreendida
como se algo inesperado
tivesse acontecido.

Algo profundamente diferente
do que agora imagino
acontecerá nesse dia.

Não terei de passar o poema a limpo,
não sentirei a tentação de emendá-lo
pois a carta não chegará e, por isso,
restará apenas o poema como prova.

Autor : Marta Chaves

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Sei que o silêncio morde a minha boca

Richard Blunt

Sei que o silêncio morde a minha boca.
Hoje, na melancolia de um fim de tarde,
Chamei por uma estrela solitária.
Essa que morreu antes de chamar pelo teu nome.
Sei hoje que a tua ausência
É a voz do silêncio do meu corpo,
O tempo que faltou ao nosso encontro,
Se pudesse ser outro que não eu
Talvez me pudesse despir de antigas mortes
E olhar-te na madrugada súbita dos teus olhos
E dizer-te que amanhã
É sempre o dia em que te procuro.
Amanhã, será sempre o dia em que te digo
“Amo-te”.

Autor : Paulo Eduardo Campos
In: Na serenidade dos rios que enloquecem

domingo, 21 de janeiro de 2024

Triunfo

 

Descerrou a boca à sede inquieta e insaciável
o corpo à sequiosa fome___ imposta pelos caminhos áridos
resiliente, e segura realizou os sonhos guardados.

Autor : BeatriceM 2024-01-20
Imagem : Dorota Górecka

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Disse-te um Dia

 

Disse-te um dia
... que havia de dar-te uma estrela
tão real como os sonhos
do rio Guadalquivir
e o perfume adolescente
do teu corpo
a ondular na aurora de Sevilha
Não foste comigo a Barcelona
ver as pesadas corolas e os mosaicos
de La Pedrera
mas espera-me no aeroporto
de nunca antes
o rumor febril dos teus olhos
onde aprendi
que o tempo não existe
Mas a vida pode ser
também mágoa escura
bem sabes. Por isso te prendo
as mãos sobre as ancas
para não fugirmos mais um do outro
e bebo todo o sol e afinal o tempo
nos teus lábios.

Autor : Urbano Tavares Rodrigues
 in Horas de Vidro
Imagem : Masha Raymers

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O lado fatal - Poema 18

Morreu quem eu amava:
viver sem ele, como dói.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data e disse:
“Somos um só desde sempre.”

Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso ainda me salve.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heroico,
atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso: falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força
para até sorrir se alguém me diz:
“Você hoje está com a cara ótima”.
Eu de castigo,
eu no escuro,
eu no nada.

Autor : Lya Luft

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Arte Poética


Nos bosques das
madrugadas do verão
colhes nevoeiros
É que o poema também
precisa disso
para que o verso
tenha dureza e elasticidade

Depois, retesas o arco
e o horizonte vibra em
suas etéreas arcadas
A liberdade é agora uma
antiga praça
Ao centro, um fontanário
e sorridentes crianças

Autor : Luís Costa 
Imagem : Rachel Baran

domingo, 14 de janeiro de 2024

arte de olvidar

 ordenou na estante com elevada abnegação
todos os livros que não voltaria a ler
bem atrás, para nem os ver.

não seduziam mais
significavam ausências
regressos e partidas.

lá no fundo não lhe fariam lembrar
mas a audácia para os doar
eram pálidas e sem coragem.

continuam ordenados
as capas desbotadas pelo tempo
 não mais os fui buscar

são todos do mesmo autor
do mesmo amor
do mesmo sonhar.

Autor : BeatriceM 2024-01-14
Imagem : Kelly Tan

sábado, 13 de janeiro de 2024

Se

 

Se não estivermos presos a uma pedra
que nos roube o sonhar...
mesmo sem vento na montanha
nós podemos voar!

Voar onde a vista não chega,
chegar onde a vista não sonha,
sonhar muito além de nós.

Alcançando o horizonte mais alto,
transpondo o mundo num salto
soltando mais o corpo que a voz...!

Autor : João Morgado 
In: Para Ti (Poesia)
Imagem Martin Stranka

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Canta. Busca na vida o que é perfeito.

 
Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia,
tal uma flor que te florisse ao peito.

Da terra maternal, faz o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faz de cada pena uma alegria
e um bem de cada mal insatisfeito.

Colhe todas as flores do jardim,
todos os frutos do pomar e enfim
colhe todos os sonhos do universo.

Procura eternizar cada momento,
Fecha os olhos a todo o sofrimento
E terás feito a carne do teu verso.

Autor : Fernanda de Castro
In “Daquém e Dalém Alma”
Imagem :Marta Bevacqua

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Hegel

    leszek paradowski   

Minto para tecer palavras,
Inventar dialetos.
Minto como um livro édito
E sua tradução de cogumelos.
Minto como a noite insuspeita
No alvorecer dos instintos.

Autor : André Rosa

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Pequenos crimes entre amigos


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo
– com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.

Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.

Autor : Inês Dias

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

O Ladrão de Versos


Uma gargalhada do meu filho
rouba-me um verso. Era,
se não erro, um verso largo,
enxuto e musical. Era bom
e certeiro, acreditem, esse verso
arisco e difícil, que se soltara
dentro de mim. Mas meu filho
riu e o verso despenhou-se no cristal
ingénuo e fresco desse riso. Meu Deus,
troco todos os meus versos
mais perfeitos pelo riso antigo
e verdadeiro de meu filho.

Autor : Rui Knopfli
imagem:  David Freske

domingo, 7 de janeiro de 2024

Rotas

 

Escolheu os caminhos seguros
Deixou de parte os trilhos complicados
Perdeu-se nos caminhos salvaguardados

Autor : BeatriceM 2024-01-07
Imagem : Martin Stranka

sábado, 6 de janeiro de 2024

Os dedos

 

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro.A pele é o espelho da memória.

Autor : Luís Miguel Nava
Imagem :Omar Ortiz

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Prefácio

 

Tu não sabes quem eu sou.
E a vida é muito breve
para te contar do regresso.
Sou o princípio do nada
e sou o fim do começo.

Autor : Manuela Amaral
in ""Tempo de Passagem"
Imagem : Vivienne Bellini

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Tradutor de Chuvas


Um lenço branco
apaga o céu. 

A fala da asa
vai traduzindo chuvas:
não há adeus
no idioma das aves. 

O mundo voa
e apenas o poeta
faz companhia ao chão. 

Autor : Mia Couto
Imagem : Saul Landell

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Por vezes finjo que sou eu

por vezes finjo que sou eu
é formidável
engano toda a gente
eu própria fico confundida
quem és tu, pergunto desconfiada
várias vozes respondem nomes diversos
e chego a acreditar
é o que dá tomar realidades por milagres
ou o inverso

Autor :Bénédicte Houart
Imagem :Ruslan Bolgov

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

prece

atravessa comigo a noite deserta,
sacia a minha boca de lume,
enche-me o coração de pássaros.

Autor: João de Mancelos,
In Coração de aluguer. Lisboa: Colibri, 2023. 94 pp. ISBN: 978-989-566-285-2.
Imagem : Sina Domke