sábado, 27 de julho de 2024

...


Não digas
beijo, diz a boca. Não
digas rio, diz a fonte. Diz
apenas.

Autor : Albano Martins
Palinódias e Palimpsestos Editorial Campo das Letras, Porto 2006
Imagem : Michal Zahornacky

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Preciso que um barco atravesse o mar

 

Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.

Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz electrónica
e pensa no mar.

Autor : Marina Colasanti

quinta-feira, 25 de julho de 2024

A Casa


eu conhecia a distância entre as paredes. caminhei muitas
vezes pelo corredor. a sala: o sofá grande, a janela fechada
para a rua, o quadro bonito e antigo: a sala: estas palavras e
este verso podiam ser o corredor se as palavras fossem
a tinta nas paredes: a cozinha: a mãe a contar-me
histórias, a mesa, a água que lavava os talheres, o lume do
fogão. a cozinha era onde estávamos felizes.

quero que a casa fique desenhada:

quarto, escada , despensa, sala,

casa de banho, corredor corredor,

cozinha cozinha, escritório.

depois, subia as escadas:

despensa, quarto, quarto,

despensa, corredor, casa de banho,

despensa, escadas, quarto.

depois, descia as escadas.

eu, na cozinha, chamava a minha mãe. a minha voz: mãe.
a minha mãe respondia-me: estou aqui. e estava num dos
quartos de cima. eu subia as escadas para a encontrar.
de manhã, eu acordava e descia as escadas.

sem que eu soubesse, os anos passavam na casa. sem que eu
soubesse, a minha mãe e o meu pai envelheciam. a casa era
toda de claridade e eu não sabia que iria envelhecer assim que
saísse de casa.

havia janelas e havia portas. eu subia para cima de cadeiras
para abrir as janelas. da janela do meu quarto, via o mundo.
sei hoje que poderia ter vivido sem mais mundo do que esse.

sei hoje que transformei o mundo todo nessa casa. chamo a minha
mãe. está num dos quartos de cima. está muito longe. chamo o meu
pai. está muito longe.

Autor : José Luís Peixoto

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Silêncio desnudado em sol sustenido

 

Uma janela que se abre
em pétalas de Sol

embala o amanhecer insone
da ternura.

E os sonhos florescem nas mimosas.

E as mãos moram em versos
e em sorrisos.

e o meu olhar de gaivota em revoada
canta o nosso silêncio desnudado.

Autor : Sandra Costa
Imagem : Karen Hollingsworth

terça-feira, 23 de julho de 2024

Este Mar

Este mar que me entra pela janela é afinal um ruído de carros
Ao começar a Primavera
- Isto é fácil de dizer,
O difícil é responder ao corpo que quer voar.
O dia entra pela casa como a mão na luva,
Quente e cheio, exatamente como aquilo
Que já vai enchendo os frutos,
E o meu corpo não sabe
Que assim vai rubricando a sua morte.

Autor : Manuel Resende
In Poesia Reunida
Imagem : Eric Rubens

domingo, 21 de julho de 2024

encantamento

 

como o rio que corre freneticamente
procurando desesperado o ajuntamento com a foz
a minha mão navega no calor do teu corpo
constituído em voluptuosidade.

Autor : BeatriceM 2024-07-20

sábado, 20 de julho de 2024

Princípio do Dia


No quarto o sonho
abandona o sono da criança,

ao espelho o rosto e uma imagem
jogam às escondidas,

no escritório a esferográfica
despede-se da página,

na cozinha a mesa
em expectativa feliz,

na sala os retratos familiares
ignoram o relógio de parede,

na varanda a cadeira
onde se senta o sol,

na rua a sombra que
arrasta a cidade.

Autor : Jorge Gomes Miranda
In A Última Pedra
Imagem :Caroline Margonois

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Como


Como este beijo,
é vasto e profundo
o oceano.

E alheio ao mundo.

Autor : Isabel Solano

terça-feira, 16 de julho de 2024

Balas


A arma do Poeta

Eu nunca
Fui soldado
Nunca usei
Farda
Mas usei
A arma do poeta
A arma do verso

Eles disparam
Balas
Eu "disparo"
Versos

Não carrego
No gatilho
Mas empunho
A pena!

Autor : Delmar Maia Gonçalves

domingo, 14 de julho de 2024

hoje


senti o riso das aves
que voavam, em bando
felizes
e eu sorri no sorriso que de ti recebi.

Autor : BeatriceM 2016-07-10

sábado, 13 de julho de 2024

Pedras


Pedras.Reconheço-me nas pedras.
Nuvens violentamente negras e pedras
Amontoadas de um castelo que ruiu.

O sol fundiu-se, a cidade está afónica.
O calor dos passos acesos
Alenta este silêncio de vão de escada.
.
Musica longínqua, remota.
Um bêbado cambaleante fermenta na voz:
«Já não temos tempo…»
.
Calo-me
À luz implacável do tacto frio da ausência.
Calam-se as palavras,
Seca a tinta da caneta,

É o grito do caos.

E assim perdemos tudo…

Autor:Gonçalo Nuno Martins
In:Nada em 54 vezes Pág.52
Foto:Oscar Keserci

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Se és meu amigo

Se és meu amigo
oferece-me um barco

e deixa-me no meio do mar
sozinha

Se gostas de mim
inventa para hoje
uma ilha

e deixa-me nua
na areia

Apenas o corpo das dunas
apenas a ansiedade dos juncos
apenas a pressentida viagem dos peixes

Apenas a alta sombra fresca
dos pássaros
passando

Autor ;Teresa Rita Lopes

quinta-feira, 11 de julho de 2024

O Destino

 

Não tive a má intenção de te prender
à minha vida. A música, o álcool,
todo o ouropel da noite, eu só quis
sossegar por algum tempo a dúvida

que me castigava, antes que a manhã
chegasse e a aranha do remorso
descesse pelo seu alimento à mesa
do pequeno-almoço. Batemos

à mesma porta e chamaste destino
ao acaso. Zelava por nós, entre
as eléctricas estrelas, o pequeno deus
do amor? Era o que trazia ao peito

a divisa da derrota universal? Como vês,
foi sempre outra, e inútil, a minha
fé - mas perdoa, se puderes, o pouco
que soube fazer pela solidão dos dois.

Autor : Rui Pires Cabral
Imagem : Anthony Garcia

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Se

 

Se eu tivesse um carro
havia de conhecer
toda a terra.

Se eu tivesse um barco
havia de conhecer
todo o mar.

Se eu tivesse um avião
havia de conhecer
todo o céu.

Tens duas pernas
e ainda não conheces
a gente da tua rua.

Autor : Luísa Dacosta
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 9 de julho de 2024

Nunca são as coisas mais simples que aparecem

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.
.
Autor :Nuno Judice
Foto:Sitriel