domingo, 13 de julho de 2025

Ainda Não Sei Partir


pela janela, o céu escurece
a lua impõe-se, lívida,
num horizonte que arde devagar.
penso na viagem —
sonhada, adiada, necessária —
e calo-me, como quem ainda
não sabe se parte,
ou se permanece a olhar.

Autor:BeatriceM 2025-07-12

sábado, 12 de julho de 2025

ainda te falta

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
.
Autor : Albano Martins

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A SABEDORIA DAS MARÉS...


O mar devolve o que não lhe pertence,
e acolhe nas entre-linhas das esperas,
as correntes libertas e certas,
onde brotam as águas imparáveis do coração...

Autor : Cristina Fernandes
in, "O Momento Certo

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Uma prosa sobre os gatos


Ildiko Neer

Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa
.
Autor : Manuel António Pina

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Passos sem memória

Parvana Photography

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

 Autora : Rosa Alice Branco 
In Soletrar o Dia 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Pouco é um Homem

 




Pouco é um homem e, no entanto, nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo.


Autor : Armindo Rodrigues
 in 'Beleza Prometida (XC)'

domingo, 6 de julho de 2025

As areias da praia


Nas dunas,
as areias da praia
são as nossas únicas testemunhas.

E, como sempre,
escorrem por entre os meus dedos.

Autor:BeatriceM 2025-07-05

sábado, 5 de julho de 2025

Palavras minhas

Rosie Hardy

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

Autor : Pedro Tamen
in TÁBUA DAS MATÉRIAS – POESIA 1956-1991 (Tertúlia,

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Nesta brisa quase suave

 

Nesta brisa quase suave
de plantas já anoitecidas
quase te toco entre as regas,
e entristeço.

A tua ausência é tão real
como os vastos campos de girassóis
secos, envelhecidos, quase mortos.

Alugo a voz e a expressão
a par de todos os espaços
deste lugar que se inicia.

Tudo isto é simples:
tenho o coração desarrumado.
Vem.

Autor : Filipa Leal
Imagem : Anna Derzhanovskaya

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Quantas vezes me deixei ficar...

 


Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...

Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava

ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,

as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir

e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.


Autor : Victor Oliveira Mateus
In A Irresistível Voz de Ionatos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branco


 

 Interessa-me o inconcreto branquejar
da roupa no estendal (o branco, não)

mais do que o peso da água, ver
que o nada não se vê na água a evaporar

na luz do tecido em contraluz interessa-me
o vazio suspenso do vazio

quando a roupa enforma ao vento e sobe
no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.

Autor : Rosa Maria Martelo

terça-feira, 1 de julho de 2025

"Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora"

Bogna Altman

Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora,
a primavera agitar-se-á num desespero verde,
calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs.
,
Eu poderia dizer que sem os teus cabelos a chuva não cairá durante séculos,
o inverno recolherá as suas crinas de água
e semeará punhais por toda a terra.
,
Eu poderia dizer que sem os teus olhos nenhuma madrugada rodará o seu vestido de estrelas,
nenhum barco achará o porto,
nenhuma ave encontrará o ninho.
,
Eu poderia dizer que sem os teus seios a loucura apagará fogueiras,
a noite enforcará todas as rosas,
as abelhas terão a morte mais amarga,
as dunas recusarão as mãos do vento.
,
Eu poderia dizer que sem o teu corpo nenhum rio chegará ao mar,
os afogados cantarão o silêncio em todas as praias
e uma dor violenta impedirá o sexo dos amantes.
,
Eu poderia dizer que sem as tuas mãos não haverá uvas nem águias nem corolas,
nenhuma porta se abrirá de novo,
nenhum gesto será mais possível.
,
Oh, meu amor!,
eu poderia dizer tudo,
poderia inventar tudo. Mas não. De ti
direi apenas que não voltas. Ficarei
ainda e sempre e sempre e sempre
à tua espera.
.
Poema XX
.
Autor : Joaquim Pessoa
in " Os Olhos de Isa" (1979)

domingo, 29 de junho de 2025

Testamento


deixo-te o sentimento puro e nu
com que a noite ainda me despe
não deixes que se separe de ti
guarda-o como se eu fosse
um anjo que partiu em dia hostil
e voltou à terra
para te proteger.

Autor:BeatriceM 2025-06-28

sábado, 28 de junho de 2025

E se...

 


E se...

       E se em todos os sonhos eu te busco,   

   eu  te encontro e eu te perco

       E se em todas estradas tu me buscas, tu me encontras e

   tu me perdes

       É que em todas as estradas que eu te busco, que tu me

   encontras, que eu te perco e que tu me perdes. "


Autor - Armindo Lima de Carvalho
- In Antologia do Amor - Tomo II pág. 139
Edições Chiado Editora
Imagem : Vicent Croce

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Não há lugares seguros


Não estamos a salvo, ainda.
Nem dos desfazeres do mundo,
nem dos atrasos da paciência.
Não há lugares seguros onde guardar
equívocos. Nem âncoras que bastem
ao arrasto da solidão.

Não estamos ainda em terra. Não há
farol nem costa. E somos frágeis demais
para tanto mar. Para tanto abismo.
Para tanto.

Não estamos a salvo, ainda.
Nem das coisas inevitáveis.
Nem das coisas sérias e óbvias.

Não há lugares seguros neste mundo.

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem : Brooke Shaden