terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Elegia Azul

 

Clara, como talvez tu antes da última esquina da noite,
uma imagem redonda colava-se aos meus dedos por entre
as folhas de papel que lentamente ardiam. Foram sempre
mais as páginas que juntei do que aquelas de que pude
separar-me, naquele T1 pequeno com vista para Monsanto
e para o teu corpo sempre azul.

Infelizmente, não fora capaz de preparar
o silêncio que sempre se segue a tudo o que
não somos, dirias tu, o rumor de instantes que nos apanha
na canga e nos sugere o vale sem luzes e a varanda grande.

Parado sei que isso é poesia, um sonho, pequenas alucinações
de primavera sem apelo no fundo destas veias e sei também
que continuas a existir e vais ser minha muitas vezes,
como eu quero ser teu intermitentemente em cada lua nossa.

Mas tu sabes como os astros nos pregam partidas ao telefone,
como em certos dias a pique para o sol embatem nas antenas,
e este ligeiro pesadelo é apenas o desconforto baço de saber
que há coisas demasiado belas para não serem tristes.

Autor : Rui Costa in "Os Dias do Amor"
Imagem : Michael Vincent Manalo

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Mapa

Procuro ainda na lembrança dos dias
Os contornos do teu corpo em itinerários
Que insisto como se fosses um mapa.

E idealizo a viagem improvável
Procurandos nos meus gestos
O porto onde havemos de ancorar

Autor : BeatriceM 2023-02-25
Imagem : Anna McNaught

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Nascente



Quando sinto de noite
o teu calor dormente
e devagar
para que não despertes
digo: cedro azul,
terra vegetal,
ou só
amor, amor;
quando te acaricio
e devagar
para que não despertes
tomo na mão direita
as duas fontes, iguais, da vida,
procuro a nascente
e adormeço
nela essa mão depositando.

Autor : António Osório
António Osório, nascido António Gabriel Maranca Osório de Castro[1] (Setúbal, 1 de agosto de 1933 – 18 de novembro de 2021), foi um escritor e poeta português, com antepassados galegos e italianos (com raízes corsas e florentinas

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Teorema

 

A vida é uma mulher estéril
nomeando os filhos
que nunca poderá ter.

Autor : Clarissa Macedo

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Nunca Me Tinha Apaixonado Verdadeiramente


Escrevi até o princípio da manhã aparecer na janela. O sol a iluminar os olhos dos gatos espalhados na sala, sentados, deitados de olhos abertos. O sol a iluminar o sofá grande, o vermelho ruço debaixo de uma cobertura de pêlo dos gatos. O sol a chegar à escrivaninha e a ser dia nas folhas brancas. Escrevi duas páginas. Descrevi-lhe o rosto, os olhos, os lábios, a pele, os cabelos. Descrevi-lhe o corpo, os seios sob o vestido, o ventre sob o vestido, as pernas. Descrevi-lhe o silêncio. E, quando me parecia que as palavras eram poucas para tanta e tanta beleza, fechava os olhos e parava-me a olhá-la. Ao seu esplendor seguia-se a vontade de a descrever e, de cada vez que repetia este exercício, conseguia escrever duas palavras ou, no máximo, uma frase. Quando a manhã apareceu na janela, levantei-me e voltei para a cama. Adormeci a olhá-la. Adormeci com ela dentro de mim.

Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. A partir dos dezasseis anos, conheci muitas mulheres, senti algo por todas. Quando lhes lia no rosto um olhar diferente, demorado, deixava-me impressionar e, durante algumas semanas, achava que estava apaixonado e que as amava. Mas depois, o tempo. Sempre o tempo como uma brisa. Uma aragem suave, mas definitiva, a empurrar-me os sentimentos, a deixá-los lá ao fundo e a mostrar-me na distância que eram pequenos, muito pequenos e sem valor. E sempre só a solidão. Sempre. Eu sozinho, a viver. Sozinho, a ver coisas que não iriam repetir-se; sozinho, a ver a vida gastar-se na erosão da minha memória. Sozinho, com pena de mim próprio, ridículo, mas a sofrer mesmo. Nunca me tinha apaixonado verdadeiramente. Muitas vezes disse amo-te, mas arrependi-me sempre. Arrependi-me sempre das palavras.

Autor : José Luis Peixoto

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Um homem que está


 um homem que está
no meio da entreaberta porta
apenas não fechada ainda
ou já
está
entrando ou saindo dela
lividamente ou putrefacto
um homem está
na entreaberta
entretanto
porta
apenas não fechada ainda
ou já

Autor : ANA HATHERLY[...]

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A misteriosa fraqueza do rosto humano


Não compreenderás a misteriosa fraqueza (que te confronta)
Não reconhecerás sequer o rosto

Não distinguirás, em difusa bruma, nenhuma utopia (evidente)
Nem uma única aspiração

Entenderás que existes, existes apenas,
E que, brevemente, também essa existente continuidade cessará

Sentirás, então, que presságio algum te estava destinado
E que era a ti, somente, que incumbia determinar o caminho

(Exceptuando, talvez, os contornos dos atalhos incontornáveis)

Perceberás, tardiamente, a instabilidade do percurso que percorreste
Escutarás o progressivo ruir dos territórios (que não poderás deter)

A iminente insurgência de um tempo absurdo

Como Sartre, compreenderás a frágil existência do destino figurado
Ser Nada, senão a razão dialética de uma responsabilidade crítica

Recordarás, enternecido, a candura inaugural
E, por um brevíssimo momento, serás o tempo pleno

A remota idade, a vida remotamente feliz
A época precedente à divergência das faces

Perceberás, mais tarde, a debilidade do sonho humano
Sentirás o progressivo desfazer dos fragmentos (que não saberás reter)
O gradual elevar do rosto inanimado

O levantamento de um tempo onde nenhum regressivo caminhar Te poderá regressar

Da vergada silhueta que (unicamente) subsistirá
Não reconhecerás sequer o rosto

Autor  : Filipe Campos Melo
Imagem : Anke Herzbach

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Sinto saudades do teu olhar

Sinto saudades do teu olhar
Sobre mim
Sinto que o tempo
É um deserto
Onde a aridez
Desagua
Na secura dos afectos

Mas existem os dias em que o sol me aquece
E as noites em que as estrelas sempre brilhem

BeatriceM 2023-02-19
Imagem : Irina Dzhul

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Da verdade do amor

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor

Autor : José Tolentino Mendonça
Imagem : Laurent Rosset

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Distância



Não vás para tão longe!
Vem sentar-te
Aqui na chaise-longue, ao pé de mim…
Tenho o desejo doido de contar-te
Estas saudades que não tinham fim.

Não vás para tão longe;
Quero ver
Se ainda sabes olhar-me como d’antes,
E se nas tuas mãos acariciantes,
Inda existe o perfume de que eu gosto.

Não vás para tão longe!
Tenho medo
Do silêncio pesado d’esta sala…
Como soluça o vento no arvoredo!
E a tua voz, amor, como se cala!

Não vás para tão longe!
Antigamente,
Era sempre demais o curto espaço
Que havia entre nós dois…
Agora, um embaraço,
Hesitas e depois,
Com um gesto de tédio e de cansaço,
Achas inconveniente
O meu abraço.

Não vás para tão longe!
Fica. Inda é tão cedo!
O vento continua a fustigar
Os ramos sofredores do arvoredo,
E eu ponho-me a pensar
E tenho medo!

Não vás para tão longe!
Na sombra impenetrada,
Como se agita e se debate o vento!…
Paira nas velhas ruínas do convento

Que além se avista,
A alma melancólica d’um monge
Que a vida arremessou àquela crista…

Céu apagado, negro, pessimista,
E tu sempre mais longe!…

Autor : Fernanda de Castro

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Para lá da janela

Fechei-me nos meus silêncios,
guardei dentro do meu peito
as palavras vazias
sopradas por ventos em desvario...

Aquieto-me na solidão que me contempla
e penso serenamente, sentado na nostalgia...
Olho a paisagem que me espreita pela janela
e, inesperadamente, invade-me uma melancolia
da cor do tempo passado!

Olho fixamente de olhos semi-cerrados
o nada para lá da janela,
e, imagino-me cavaleiro de fantasias,
cavalgando pelas alegrias esquecidas…
agarro-as, trago-as novamente a mim
e desperto os meus silêncios
na solidão que me sorri.

Autor : José Carlos Moutinho
Imagem : Karen Hollingsworth

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

10

10.
Chove.
Nem posso acreditar
como chove a minha cidade,
chove em mim
e chove sobre todos…
nem posso acreditar
o quanto chove esta cidade…
Se ao menos chovesse anjos,
ou estrelas,
ou almas…

Mas nada.

Nada mais que a fria chuva
que me molha
e que molha a minha cidade
em que chove, chove, chove.

Nem posso acreditar
o quanto a minha cidade chove. […]

Autor : Alexandra Malheiro
in “Sombras de Noite”
Imagem : Steve Hanks

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

As Altas Torres

Nas altas torres do corpo
todas as horas cantavam.
Eu quis ficar mais um pouco
como se um campo de potros
espantasse a madrugada.

Eu quis ficar mais um pouco
e o teu corpo e o meu tocavam
inquietudes, caminhos,
noites, números, datas.

Nas altas torres do corpo
eu quis ficar mais um pouco
e o silêncio não deixava.

Conjugámos mãos e peitos
no mesmo leito, trançados;
eis que surgiu outro peito,
o do tempo atravessado.

Eu quis ficar mais um pouco
e o teu corpo se iniciava
na liturgia do vento,
lenta e veloz como enxada.

Era a semente batendo,
era a estrela debulhada.

Nas altas torres do corpo,
quis ficar. Amanhecia.

Todos os pombos voavam
das altas torres do corpo.

As horas resplandeciam.

Autor : Carlos Nejar[...]
Imagem : António Macedo

domingo, 12 de fevereiro de 2023

fugas

há dias que saio cedo de casa,
para fugir de tudo e todos,
mas nesta desenfreada fuga,
esqueço das palavras que devia dizer,
e enclausuro as emoções,
em sonhos que ainda conservo dentro de mim.

Autor : BeatriceM 2023-02-12

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Quatro estações

como as luzes da cidade nossos olhos se acendem
meu amor. cai o teu braço sobre o meu braço.
vê como tudo amadurece de passagem como a flor
se muda em fruto como se chora pelo primeiro namorado
e como o dizê-lo nos custa. vê como o campo se muda
em montanha e o rio em água apenas e pedra
vê como é mudo o nascer das árvores o seu crescer
a monda do milho. vê como o calor sucede

ao fogo do inverno à neve que desce para o vale.
cai o teu braço sobre o meu braço. as uvas estão
no cesto entras na minha casa na minha
janela na minha cama vê como cai o teu braço

Autor Francisco José Viegas

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Faz anos navego o incerto

Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia.
Não há respostas.
Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração
como uma âncora.

Autor :Caio Fernando Abreu

No íntimo de nada

Não há mundo que lhe caiba na agrura da boca,
nem caminhos que lhe reparem nas solas usadas
que os pés devoraram – são as ruelas acabadas
pelo silêncio dos gestos que lhe dançam nos olhos
a cada anoitecer, são os vultos adormecidos à soleira
das portas vazias que carrega nas palavras que desconhece
tal como as estrelas mortas na escuridão escusam o céu.

Assim é ela – presa naufragada no íntimo do nada. Que seja!

Autor : Carla Pais
Imagem : anna derhanovskaya

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Negação


O rio do teu corpo
não me foi margem.
Só na noite interior
das minhas pálpebras
provei a tua boca

Autor : Luisa Dacosta
 in A Maresia e o Sargaço dos Dias 
Imagem : aleah michele

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Os meus livros


Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.

Jorge Luís Borges
Imagem :Diego Dayer

domingo, 5 de fevereiro de 2023

As chaves

Ainda tenho as chaves da casa do monte
Embora ela já nem exista
Senão nas minhas memórias
E são vagas, onde apenas os aromas
Ainda resistem ao tempo

Na altura não havia nome de ruas
Eram conhecidos pelo nome da família, sítios ou
Até pela cor das casas e agora
Tem nome pomposo de alguém famoso
Mas que ninguém se lembra quem foi

Acho que esta chave que ainda guardo
Já não serve para nada
E está na altura de a devolver
À terra onde pertenceu
Ou então ao ferro velho.

E nada mais me fará lembrar
A casa do monte onde tudo feneceu
Onde só restam ruínas
E este vazio sem nome
Que em mim também se desvaneceu

Autor : BeatriceM 2023-02-05

sábado, 4 de fevereiro de 2023

É domingo hoje



É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa

não como quem
de ilusão
precisa

Tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

Autor : António Reis
in 'Novos Poemas Quotidianos

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

...

Aqui posso medir tudo o que digo
pelo eco em montanhas indomáveis:
toco a crosta da terra e de repente
logo um som me anuncia em claridade.
Ouvir fica para lá de qualquer voz
junto à fonte mais triste onde se guarde
uma pequena lágrima que esqueça
o que de mim se lembra em tenra idade.

Autor: Maria Alberta Menéres
In O Jogo dos Silêncios
Imagem : Amy Spanos

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Amo-te nesta Ideia Nocturna da Luz nas Mãos

 
Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.


Autor :Daniel Faria
Imagem :Michelle Ellis

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Concerto para cavalos

Despidos de crinas que não se reconhecem
Cravados de marcas de ferro
Fugidos pela palha que nega o que desejam
Mortos pelas pirâmides que migraram
Surdos pela sinfonia que não se nomeia
Loucos de manadas de dragões que cospem estrelas
Vivos pelas correntes que berram astros
… assim são os cavalos do concerto de meu coração
crianças que preparam o primeiro verso,
feras que não se sujeitam.

Autor : Clarissa Macedo