domingo, 31 de julho de 2022

Delírios

 

Acordei e não foi sonho
nem pesadelo
talvez apenas
resquícios de algo sonhado.

Mas não foi sonho meu
talvez, se calhar
foi o teu…

Autor : BeatriceM 2022-07-30
Imagem : António Macedo

sábado, 30 de julho de 2022

Onde me escondo

Onde me escondo

Guardo algumas lágrimas
entre as páginas de um livro
esse é o lugar onde me escondo
quando já ninguém me procura.

Autor :Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Jen Mazza

sexta-feira, 29 de julho de 2022

Flores Silvestres


 O que estão dizendo? Que querem
vida eterna? Seus pensamentos são mesmo
tão arrebatadores assim? Com certeza
não olham para nós, não nos ouvem,
em sua pele mancha de sol, pó
de botões-de-ouro: estou falando
com vocês, vocês que olham fixamente
por entre os talos de grama alta agitando
o pequeno guizo — Ó alma! alma! Basta
olhar para dentro? Desdém
pela humanidade é uma coisa,
mas por que desprezar o vasto campo,
seu olhar elevando-se acima das nítidas cabeças
dos botões-de-ouro silvestres em direção a quê?
Sua pobre ideia de céu: ausência
de mudança. Melhor que a terra? Como
saberiam, se não estão nem
aqui nem lá, eretas entre nós?

Autor :Louise Glück 
tradução de Maria Lúcia Milléo Martins

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Tão pouco sentimento é a emoção


tão pouco sentimento é a emoção, que quando
do chão a levantamos se fez leve
maneira de outras águas

os camiões caminham para o norte
com serenos destroços
as maquinetas baças da invenção

será verão, os panos levantados;
terás no espelho a idade, o jeito quase
infeliz de ser homem;

o pouco amor te imita; e nunca
chegarás a saber que não existes.

Autor : António Franco Alexandre

quarta-feira, 27 de julho de 2022

....


A hora chegou em que o tempo não é tempo, pois é longo
e breve o perfume doce das searas maduras.
Idade dos voos e da fertilidade das abelhas
No ocre da terra que não é terra, pois é demorado
e curto o tempo que é tempo no teu colo
na espera das tardes esvaziadas de saudade.

Autor : Lília Tavares
 in Parto com os Ventos
Imagem :   Olga Sinclair   

terça-feira, 26 de julho de 2022

A Imprecisa Melancolia

 


Nada o distrairia
nessa procura, disse.
Este o recado
da contingência:

era verão e fazia
muito calor.

Saía cedo, cortando
a passos lentos
a sombra das 9:30.

Caminhar até à vertiginosa
queda dos poentes.

Assinalar uma cinza,
a imprecisa melancolia

Autor: Luís Quintais
 in 'A Imprecisa Melancolia'
Imagem :Leon Devenic

domingo, 24 de julho de 2022

Testemunho

Quando a noite me despe
existe sempre a recordação de ti
e quem se lembra,

não deixa morrer a ternura
nem a paixão
que o amor ergueu
nos testemunhos dos corpos.

Unidos.

Autor : BeatriceM 2022-07-23
Imagem :Clare Elsaesser

sábado, 23 de julho de 2022

Se o tempo

Frank Wilcok 

Se o tempo
fosse
uma flor, o seu
perfume
seria
esta luz
escorrendo
pelas escarpas
do dia.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Serotonina


Deveríamos escolher ir para a esquerda
ou para a direita
é que sempre em frente, desalinhados
não chegaremos nem mais um passo
os teus pés nunca me acompanham
dizes tudo como nada, nada importa
eu sempre mais atrás.

Agora há horas a mais e as portas
batem-me na cara
andamos em redemoinho, uma centrifugação
de comida estragada
azedámo-nos
já não nos fazemos a digestão, andas
aqui para cima e para baixo como os
pimentos
não entras nem sais, não me dás
casa
vivo na rua desde que me puxas os lençóis
mudamos de abrigo e aposto
que chegas lá primeiro
eu fico sempre para trás
a ver o que perdemos.

Vou, mas fico
a autocomiseração é mais indigesta
que os teus passos à frente
e eu também preciso de me alinhar
bater continência à vida e alargar a boca
para os lados, coisa que não
me tem acontecido.

Tenho tudo pronto.

Andei a varrer os restinhos de serotonina
que nem me enchem um saco
vieram misturados com cabelos e
pequenas farpas de madeira das
portas que batem, mas espero que chegue
deixo-te à entrada os meus sapatos
que nunca estão ao teu lado na rua,
sempre um metro mais atrás, como
a distância da minha vida à tua

vou descalça

Autor : Cláudia R. Sampaio

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Notícias do Cerco


os dias vão indo
caídos no papel,
e rasgá-los não os lava
da hora que vem depois.

é tudo uma questão de senha.
a gente diz borboleta,
e o inimigo crucifica-a
nas paredes de cada manhã.

é tudo tão previsível.
e não há quem saia ileso
de um golpe de Lua cheia.

Autor : Emanuel Jorge Botelho 
(Fecho as cortinas, e espero

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Um dia, diz a mulher


Um dia
também eu sairei porta fora
caminharei nas ruas
ausentes de sentido
atravessando esplanadas
e jardins
bairros que não conheço
irei em frente
sem parar nas lojas elegantes
da Avenida principal
que pouca Liberdade tem
irei assim
perdida e sem destino
descendo à beira-rio
quando me virem na água
darão então por mim

Autor : Ivette K. Centeno
 in DIZER (Eufeme, 2021)
Imagem : Ragne Sigmund

terça-feira, 19 de julho de 2022

Ao Espelho

 

E de repente chegas aos
quarenta e tal anos

e palavras como colesterol
hipertensão astigmatismo

começam a invadir a tua
vida... Olhas para trás e

o que vês? Uma pomba
com uma das asas ferida

condenada ao mais terrí-
vel pedestrianismo

Autor : Jorge de Sousa Braga
 in 'Porto de Abrigo'
Imagem : Karen Hollingsworth

domingo, 17 de julho de 2022

És o abrigo

 

És o abrigo que eu procurei
És o poiso que repousei
O porto onde fundeei
A cidade onde sou mais eu
E no entanto anónima
Entre a multidão
Sem embuços
Sem subterfúgios
Sem filtros

Apenas eu.

Autor : BeatriceM 16-07-2022
Imagem : Duong Quoc Dinh

sábado, 16 de julho de 2022

Um pouco mais de nós

 

Podes dar uma centelha de lua,

um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale ?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.

Autor : José Jorge Letria
Imagem : Jimmy Lawlor

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Poema


Desço pela margem da memória
e entro pelo cais do rio
onde havia o ouro das manhãs
e o sorriso lavado do vento
lento na mansidão matinal.

Havia o dorso molhado da água apetecível
e um ensejo de lume
sem saber que ardia

Desço sem pressa por onde andei
na idade antes desta idade
como viajante clandestino
sem rumo
no ventre azul da mocidade.

Era tudo bom e grande na promessa
o sol despontava como um dardo perdurável
e sem pressa desço por mim mesma
como duna estendida num lençol do areal
ou uma serpente.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem :Steve Hanks

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Beijo

 

meus olhos nos teus
teus olhos nos meus

e mais ninguém junto a nós
nem deus

Autor : Vieira da Silva
Imagem : Boyana Petkova

domingo, 10 de julho de 2022

Poema

  

Não quero em nós o silêncio
Nem os dias acinzentados
Imensos e taciturnos

Quero ainda olhar-te
E saber
Que tudo valeu a pena

Autor : BeatriceM 09-07-2022
Imagem : Richard Macneil

sábado, 9 de julho de 2022

Poema

 

 


Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos conservar
mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou.

Autor: José Tolentino Mendonça
in A Noite Abre Meus Olhos
Imagem : Vladimir Volegov

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Morder a Língua


 A ponta do cigarro apaga-se
como o ruído dum insecto
a agonizar na água. A
noite arrefeceu apesar de ser Julho
porque o Verão a norte nunca
se despede da bruma. É tarde
e procuro um verso
que morda a própria língua.

Autor : Inês Lourenço
In O jogo das comparações, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2016.
imagem Aykut Aydogdu

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Não Digas Nada

 


Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

Autor : Fernando Pessoa
Imagem : Christiane Vleugels

quarta-feira, 6 de julho de 2022

não atravesses a rua

 


não atravesses a rua
(ou a vida tanto faz)
com palavras ameaçadas de medo
leva em vez delas
um límpido silêncio onde
possas nascer para o dia claro
que se anuncia
nas janelas do quarto
não regresses à rua
(ou à vida tanto faz)
com gestos grisalhos de medo
leva em vez deles
um derradeiro aceno se
for caso disso
entre as dobras do sono
de quem ao. longe está
a ser feliz doutra maneira
e se no teu olhar houver um rio
a apressar a partida
não hesites
mas por favor
não atravesses a rua
(ou a vida tanto faz)
com madrugadas contagiadas de medo
*
Autor : Alice Vieira
Imagem : Leszek Paradowski

terça-feira, 5 de julho de 2022

Nostalgia

 


A pequena flor
só que além nasceu
sonhou ser maior:
nada lhe valeu...

Na cova esquecida,
sol que desejou
não a bafejou,
bastarda da vida...

E era flor ou gente?
Esquecida imperfeita
numa dor silente
ali jaz desfeita!

Autor : António Salvado
Imagem : Magdalena Lutek

domingo, 3 de julho de 2022

Perduro


Perduro
No presente
Sem me inquietar com o futuro

Não busco percursos
Nem atalhos
Já não me auxiliam
As descobertas serão outras

Mas sei
Lembrar o passado
Sem nele permanecer

Fico a olhar o hoje
E amanhã
Logo se vê.

Autor : BeatriceM 2022-07-02
Imagem : Rachel Neville

sábado, 2 de julho de 2022

Desfecho


Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te…
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada
Era certa a meu lado

A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente…

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tua não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Autor : Miguel Torga
 In câmara ardente 1962
Imagem : David Talley

sexta-feira, 1 de julho de 2022

apenas aquela estória

Hoje o dia foi longo,
ainda agora nasceu,
talvez seja apenas aquela história
que nunca me contaste ao adormecer
e as risadas que dei quando
a escrevi, precocemente,
nas linhas das nossas mãos.

Nesse momento
de pensamento desalinhado
e um saco à tiracolo
a história nasceu
como uma borboleta, ainda larva desajeitada,
a rodopiar no papel imaginário
onde o dia se perdeu.

Hoje é um dia longo,
já não volto a nascer,
mas ainda espero
que aquela história que nunca me contaste
perdure escrita no sorriso
de uma criança qualquer,
e que as gargalhadas se espalhem
onde o dia já não nasce
.
Autor : Conceição Bernardino
 In - "abreviaturas"
Imagem : Annegien Schilling