quarta-feira, 31 de março de 2021


Chegaste cedo chegaste logo ao princípio dos olhos
ainda nem manhãs havia nem estradas nem luzes nos frutos.

Eras como o primeiro vislumbre do sangue
num ouriço do mar. Uma natureza morta
de riso. A mão que vai do homem
até ao começo dos animais.

Ainda nem manhãs havia nem gente
que nos dissesse as horas e os lugares.
Era uma corrente de mar rupestre que pulsava.
Às vezes os sinos ainda fazem lembrar
o torvelinho que havia na saia
e os cabelos um pouco à toa
ermos como as passagens sem guarda.

Estava de grandes esperanças no teu corpo.
Um perto do outro cheirávamos a aves
com muita urgência.

Ainda nem manhãs havia nem havia palavras
mas para ti eu fabricava o silêncio
com todas as letras.

Autor :Catarina Nunes de Almeida
Autor : Danielle Richard

terça-feira, 30 de março de 2021

Oculta Lágrima



Mesmo que retornases a pisar
as ervas do caminho,
mesmo que as tuas mãos anunciassem
em concha água das fontes,
mesmo que em desatino
os sons da tua voz
como outrora se ouvissem perto ou longe
e mesmo que os teus olhos
languidamente para os meus olhassem -
só poderia responder-te agora
com uma oculta lágrima
que não foi derramada.

Autor : António Salvado, In "Essa Estória", 
Imagem :  Brian Oldham

domingo, 28 de março de 2021

Fardo

 


Perdoar é fácil,
esquecer é mais difícil.
Já o remorso
é um fardo para toda a vida.

Autor: BeatriceM
Imagem: Emilie Legger

sábado, 27 de março de 2021

Sede


Que o meu amor por ti
seja um rio na sede
que vai em ti.

Já vi desertos que da água
em oásis se transformaram.

Autor : LuisM Castanheira
https://alemabarca.blogspot.com/search?updated-max=2020-11-24T20:54:00Z&max-results=10

sexta-feira, 26 de março de 2021

Livros Usados




Tudo que se disse depois e
ainda se diz, pode estar num usado
exemplar de Crime e Castigo ou da Utopia.
Os livros usados - mesmo
que se chamem Utopia -
têm aquela terna docilidade
das páginas em que outras
mãos passaram, ao contrário
dos novos, que em rígidas e
intactas páginas são só apenas
papel impresso.
.
E para escassos amigos, quando
se fugiu duma livraria de
consumíveis tops,
talvez seja essa
a melhor oferta.
.
Autor : Inês Lourenço, In "a disfunção lírica"

quinta-feira, 25 de março de 2021

Poetas


Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Autor : Ruy Belo, In "Todos os Poemas", Assírio & Alvim, pp. 212/3.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Estar contigo ao amanhecer

Estar contigo ao amanhecer
e ver-te abrir os olhos
sorrindo, repetindo o gesto
de cada dia, de cada sonho,
e deixar abrir a manhã
escancarar as portas
com o canto dos pássaros
sem que tu te dês conta
que já é um novo dia
volta, sem saberes, ao início.

Autor : Maria Joao Cantinho

terça-feira, 23 de março de 2021

deixarei

 

deixarei as luzes acesas
para que saibas o caminho
de regresso ao meu corpo,
não, não tragas a alma,
animal sempre volátil,
perfume fútil.
sacrifica antes uma onda
antes da noite,
um milagre para migrar
com outras aves daninhas,
vem, dá-me o fruto e a semente,
aquele lugar no corpo
onde a fonte cresce ao ar
e a nudez se faz mais pura.

Autor : João de Mancelos in "Línguas de Fogo
Imagem : Jordi Puig

domingo, 21 de março de 2021

Dia da Poesia

tenho as mãos cheias de letras
todas as do alfabeto português
e afago-as
deixo-as voar
livres e sem freios
concebo palavras
e sou feliz de todas as vezes
que com elas escrevo poesia
hoje e como é dia dela
apenas deixo um abraço redondo
a todos os Poetas do mundo
e a toda a Poesia.

Autor : Beatrice M 2021-03-21

sábado, 20 de março de 2021

O que sei de Poesia

 

Não sei falar de literatura. Não sei falar de poesia. Sobretudo não sei se a poesia tem alguma coisa a ver com a literatura. Talvez esteja antes ou depois da literatura. Sei que a poesia não se explica, a poesia implica, como costuma dizer a minha amiga Sophia de Mello Breyner. Sei que a energia, como diz o meu amigo Herberto Hélder, é a essência do mundo e que “os rit­mos em que se exprime constituem a forma do mundo". Sei, como o poeta russo Mandelstam, que "escrever é um acontecimento cósmico". E que cada palavra é um pedaço de universo. Ou como dizia Klebnikov: "Na natureza da palavra viva, esconde-se a matéria luminosa do universo." Talvez tudo isto seja a poesia. Ou talvez ela não seja mais do que o primeiro verso, aquele que nos é dado, como sempre dizia Miguel Torga, porque os outros têm de ser conquistados. Talvez tudo esteja nesse primeiro verso, que é o instante da revelação e da relação mágica com o mundo através da palavra poética. Talvez o poeta, afinal, não seja muito diferente daquele sujeito que vemos nas tribos primitivas, de plumas na cabeça, repetindo palavras mágicas enquanto dança e pula ao ritmo de um tambor. O poeta é esse feiticeiro. Dança com palavras ao som de um ritmo que só ele entende. Ou é talvez o adivinho.

Como já não pode ler nas vísceras das vítimas, procura decifrar os sinais dos tempos através de múltiplos sentidos ou dos semi-sentidos da palavra. De qualquer modo, como nas sociedades primitivas, que tinham uma concepção mágica do mundo, o poeta de hoje é como esse xamã antigo que, através da repetição rítmica de palavras e imagens, convoca as forças benfazejas ou tenta exorcizar as forcas maléficas.

A poesia é, assim, antes de tudo, uma forma de medição. Um presságio do sul, como diz o meu amigo José Manuel Mendes. Uma encantada, encantatória e desesperada tentativa de captar a essência do mundo e de, através da palavra, "mudar a vida", como queria Rimbaud. Uma forma de alquimia. Que procura o impossível. Ou seja: o verso que não há.

A poesia é também a língua. E para mim a língua começa em Camões, que tinha uma flauta mágica.

A música secreta da língua. A arte e o ofício da língua e da linguagem.. Nem foi por acaso que Dante chamou a Arnaut Daniel "il migiior fabbro". O poeta, dizia Cioran, "é aquele que leva a sério a linguagem". E o que é levar a sério a linguagem? Eu creio que é estar atento aos sinais. Os sinais mágicos da palavra. Os sinais da essência do mundo que por vezes se revelam na palavra poética. Ou talvez o duende e aquela ferida de que falava Lorca. Porque o poeta traz em si uma ferida e o duende por vezes ouve "sonidos negros". É então que a poesia acontece.

Isto é o que sei de poesia. Talvez seja muito pouco. Mas não sei se é possível saber mais.

Autor : Manuel Alegre, in “Obra Poética”,

sexta-feira, 19 de março de 2021

Pai, Dizem-me que Ainda Te Chamo

Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante
o sono - a ausência não te apaga como a bruma
sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos
meus sonhos um território suspenso de toda a dor,
um país de verão aonde não chegam as guinadas
da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí

nos encontramos, para dizermos um ao outro aquilo
que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te
chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com
lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum
ruído que envenene as palavras: pai, pai. Contam-me

depois que é deste lado da noite que me ouvem gritar
e que por isso me libertam bruscamente do cativeiro
escuro desse sonho. Não sabem

que o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu
nome - porque a memória é uma fogueira dentro
das mãos e tu onde estás também não me respondes.

Autor : Maria do Rosário Pedreira, in 'Nenhum Nome Depois'
Imagem : Ricardo Fernandez Ortega

quinta-feira, 18 de março de 2021

Cegueira

Há muito que sabia o que o esperava quando,
surgindo do nada, olhou à volta,
cego pela claridade.
Subiu lentamente a ribeira e encontrou as grutas,
e aí bebeu,
enquanto esperava a senhora da escuridão.

E ela chegou, de repente, e disse:
abandona os remos, abandona o leme,
porque o teu destino é um barco parado na
montanha.
E ele levantou-se, como se já nada quisesse,
e ouviu a estranha ave que anuncia a morte.

Noa montanha, ardiam dois archotes.
As casas, do outro lado, pareciam de cera,
dementes e imóveis.
O mar fazia ouvir a sua canção eterna.
Há muito que sabia que o clamor das viagens
tinha chegado ao fim.

Autor : José Agostinho Baptista in Filho Pródigo 
Imagem : Hossein Zare

quarta-feira, 17 de março de 2021

juro que vou escolher palavras que não doam


Toma-me ainda em tuas mãos e
não perguntes nada
nem sequer dês um nome aos gestos que se abrigam
como um fruto uma promessa um murmúrio
nas fogueiras ateadas em junho

juro que vou escolher palavras que não doam
parecidas com as que sempre encontrava
nas camas em que tantas vezes te enterrei
por dentro do meu corpo

toma-me ainda em tuas mãos eu sei que
temos pouco tempo que não queres
inventar novos ardis para um desamor tão velho
mas vais ver
o mundo é apenas isto e para isto
não procures nenhuma filosofia redentora
porque tudo é no fim de contas tão banal

podes por isso começar a refazer a estrada que
te levava ao centro dos meus dias e esperar
que eu chegue com um retrato desfocado nas mãos
na hora certa de abrir para ti as minhas veias

Autor : Alice Vieira In " o que dói às aves"
Imagem : Magdalena

terça-feira, 16 de março de 2021

Testamento

Nunca vivi de joelhos,
Não fui “moço de recados”.
De frente peguei a vida,
Vi o bem,
Vi o mal,
Vi luxúria e traição.
Vi um amor sincero,
maior que o mundo,
caber na palma da mão.

Fiz poemas.
Pintei quadros.
Escrevi livros.
Aprisionei a ilusão.
Amei e fui amado.
Tive um sonh,o
na palma da mão.

Levo em mim ao partir,
a riqueza do que aprendi.
Deixo palavras,
sem valerem “um tostão”
e sonhos que foram ilusão.

Deixo o amor
maior que o mundo,
que me escapou
da palma da mão.

Autor :Silvestre Raposo
In poiesis volume XIII
Imagem : Omar Ortiz

domingo, 14 de março de 2021

âs vezes voando com flores



Às vezes voando com um braçado de flores
lembro-me de ti, e de todas as coisas inexequíveis
que edifico em torno de memórias (antigas).

São apenas sonhos em que, ainda pinto
os locais por onde um dia andamos e
onde ainda recordo a música que tocava
do tempo que ficou entre os odores dos jacarandás.

O teu nome ainda gira na minha boca
a querer trespassar o tempo,
e o eco que eu consigo manter

faiscante e sempre autêntico.
.
Autor : BeatriceM 09-03-2014
Imagem :Patrizia Burra

sábado, 13 de março de 2021

deram-me um espelho onde me queimei


deram-me um espelho onde me queimei
integral e semente
 
atravessava vultos corredores do tempo
mas só a sede me vivia

a criança que corre pelo outono
só deseja a morte
gosto de areia é a memória
vai cegando de coisas irreais
famílias de divisas actos de passagem

um rosto devorado pelas invasões
com a sede a diluir-lhe o corpo
cadáver absoluto nas vizinhanças da
dor que Deus doía

Autor : Pedro Sena-Lino In "deste lado da morte ninguém responde",
Imagem : Brian Oldham

sexta-feira, 12 de março de 2021

Honra-me com teus nadas.

 

Honra-me com teus nadas.
Traduz meu passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.

Autor: Hilda Hilst

domingo, 7 de março de 2021

A Tela

 

Para A . 
Calo o meu canto, na voz do vento
em silêncios de mim.

Abraço-me num isolamento que não procurei, num dia que nem assinalei.

É só mais um dia,
outro,
onde me desnudo para a tela do pintor,
e onde só o pincel entende,
essa nudez.
.
Autor : BeatriceM 2013-03-0

sábado, 6 de março de 2021

Naquela Praça


Hei de encontrar-te ali
naquela praça que talvez já não exista.

Praça da palavra.
Praça da canção.
Praça de bandeiras a beijar
os primeiros odores da primavera.

Hei de encontrar-te um dia
ao alto da cidade
partilhando pão
azeitonas
e poema.

Ali
naquela praça que talvez já não exista
hei de encontrar-te um dia
e seguiremos
abraçando
as laranjeiras
desfraldando
uma vez mais
a nossa voz ao vento.

Autor : José Fanha

sexta-feira, 5 de março de 2021

O meu compromisso não é contigo




O meu compromisso não é com a memória com os pedaços de pele
que deixei na boca dos cães
com a inquietação das ondas
que me temperaram de sal e tempestade
O meu compromisso não é com o riso
nem com os gritos nem com as lágrimas
O meu compromisso não é com os olhares
com os murmúrios com o vento

O meu compromisso não é contigo
por mais que eu te ame
e sejas o voo da minha liberdade

O meu compromisso místico e solene
é com o corpo exacto fugidio sedutor
equívoco imperativo do não dito

O meu compromisso
é com as palavras.

Autor : Rosa Lobato de Faria In "Poemas Escolhidos e Dispersos"
Imagem:Jenna Martin

quinta-feira, 4 de março de 2021

um coração ao longe

 


Um coração tão branco que pudesse
invadir o mar
um coração como uma onda
ténue contra a areia
um coração ao longe
uma vaga ao longo do oceano
através do céu em direção à falésia
em direção ao mar
um coração onde coubesse
todo o amor
toda a fraternidade
um coração verdadeiro
um coração humano
um coração animal
um coração de ternura
um coração maior onde coubesse
todo o mar
toda a vida
toda a verdade
um coração onde morar

Autor : Rui Prates Esteves

quarta-feira, 3 de março de 2021

-


Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia
Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível
Porque de barro e palha tem sido esta viagem
Que faço a sós comigo. Isenta de traçado
Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem
Hei de levar apenas a vertigem e a fé:
Para teu corpo de luz, dois fardos breves.
Deixarei palavras e cantigas. E movediças
Embaçadas vias de Ilusão.
Não cantei cotidianos. Só te cantei a ti
Pássaro-Poesia
E a paisagem-limite: o fosso, o extremo
A convulsão do Homem.

Carrega-me contigo.
No amanhã.

Autora : Hilda Hilst
Imagem : Ricardo Fernandez Ortega

terça-feira, 2 de março de 2021

lágrima

sou água
rio
enxurrada

tormentosa lágrima
caída
em campa rasa.
.
Autor : LuísM Castanheira
 https://barcaarmada.blogspot.com/
Foto:Desconheço o autor