sábado, 31 de outubro de 2020

Tu eras ...

 

Tu eras tambem uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo. 

Autor : Pablo Neruda
Imagem : Margarida Cepêda

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Havia qualquer coisa de santa

 

mas havia, também, qualquer coisa de louca
não sei se o jeito de olhar.
O atrever-se com as mãos
ou o recato do decote, tão íntimo.
Havia qualquer coisa de tímida,
mas, também havia qualquer coisa de exibicionista.
Não sei se o riso solto
ou a voz quase rindo, quase suspiro.
Havia qualquer coisa de pecado,
de sagrado também…
e profanava em mim
nas mãos que me descobria a alma 

Autor : Mariana Gouveia
.
Imagem :Ruslan Bolgov

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Respeite a solidão alheia



Respeite a solidão alheia
e todo o silencio
da mesma forma respeite
o excesso
o motivo
o momento
o outro

Respeite os calafrios
a sua ansiedade
Respeite as partidas
as tensões
distrações
a vida acumulada

Respeite a distancia
os afagos
a brisa
o final
não esperado.

Autor: Kaio Bruno Dias
Imagem Monia Merlo

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Não...


Não, as palavras não fazem amor 
fazem ausência 
Se digo água, beberei? 
Se digo pão,comerei? 

Autor : Alejandra Pizarnik

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Perdoa este amor

 


perdoa-me este vento no rosto
só por dizer o teu nome
esta forma imoderada de pousar-te no corpo
e íbis nidificar em teus seios
redondos e suaves como mundos imaginados

perdoa a riqueza deste amor
sem sedas nem brocados
a fragilidade deste mundo sem orientes
nem senhas nem tratados
e esta resma de escritos imperfeitos
em que invariavelmente falo de ti
mesmo quando não é de ti que falo
quando disfarço o teu nome sob a capa do mar
quando desfolho o teu corpo crisálida
em momentos só meus
e vejo emergir mariposas de toucados ancestrais
quando digo de «a» a «z» o que me vem escrito na alma
e grito que é vazio
(só vazio)
o alfabeto das coisas
que em teu nome não digo
e nego que tu existes
que te sonho sequer
perdoa tudo isto amor
porque homem e mulher que sejamos
somos só destinos anónimos
.............................distantes
de chegada

........... e de partida

Autor: Jorge Casimiro
Imagem :Omar Ortiz

domingo, 25 de outubro de 2020

Outono

 

O outono, deixa-me um desalento 
que me cobre o corpo de frio 
como se o frio fosse o medo 
da noite escura e sem estrelas. 

E á noite o meu corpo dá voltas na cama 
arquitectando um círculo de fogo 
que se aniquila 
no conforto ao lembrar o teu corpo 
e o teu cheiro pela casa 
que me traz as estrelas de volta. 

Autor : BeatriceM 2020-10-24
Imagem : Eric Zener

sábado, 24 de outubro de 2020

Jamais tive eu amor senão por ti


Jamais tive eu amor senão por ti.
Paixões o vento as trouxe e as levou
Qual ave migratória que pousou
Em temporário ninho onde vivi. 

Amor, porém, é ave que povoa
O coração da gente e nele exulta
E ocupa de outra ave mais estulta
O coração partido e o perdoa. 

Mas que fazer, se amor o dei ao vento
E sinto o coração ninho vazio
E sinto um grão calor e grande frio 

E amo em oração no meu convento?
Eu amo quem amei e me deixou;
Não amo quem pousou — só quem voou.

Autor :Daniel Jonas
Imagem : 

Nota : Neste seu mais recente livro de poesia Daniel Jonas regressa ao soneto, num livro desconcertante e surpreendente. Como nos diz o poeta, «Assim no meu soneto aqui gravei / Quem não sou nem fui e menos serei.»

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Cançoneta

 

Não me importa 
O que se saiba... 
- Só me importa 
O que te digo: 

Já andei de braço dado, 
Em braços desconhecidos, 
Só para ter a ilusão 
Que caminhava a teu lado 
De braço dado contigo... 

Autor : Manuela Amaral 
in "Hino Proibido"
Imagem : Tyler Raiburn

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Portas


coração, que da minha mão não tem forma nem razão
de continuar a esperar
por quem a porta não quis franquear.

despe-te coração
que há quem te veja
vestido desta tristeza.

e se não tiveres batimento
e’ porque meu mal e’ sofrimento.

Autor : LuisM Castanheira 2020-10-19
Foto: Katerina Plotrikova

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

não sei de quem a mão


não sei de quem a mão
fantasma que esfuma
o meu rosto o meu tempo o reflexo
que me habituei
a confirmar aqui
não sei quem plantou
na minha cara uma outra
biografia

não sei ao certo
mas desconfio que essa neblina
no espelho
seja eu. 

Autor : Adriana Lisboa
Imagem : Monia Merlo

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Chegada

Parece-me irreal que tenhas vindo,
quase irreconhecível: onde estava
o impossível
eco de vida, íngreme, o passado
tornado mais passado?

Parece-me real que tenhas ido
ser outro ser, distante desta praia
Reconheci-te?
A lua minguante
de agosto iluminou tua chegada.

Autor: Gastão Cruz
in “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
Imagem: Cristina Coral

domingo, 18 de outubro de 2020

Portas



A porta sempre esteve escancarada,
por vezes fazia frio,
outras vezes um calor insuportável,
suportei ventos,
canículas,
pânicos,
sentires,
e no entanto,
tu nunca franqueaste sequer a ombreira.

Tanto tempo passou, desde então.
Hoje só meu coração te espera.
A porta já não existe,
o tempo já há muito que a danificou

Autor : BeatriceM 2013-10-06
Imagem: Sina Domke

sábado, 17 de outubro de 2020

Através da Nudez

Este garoto é fácil compará-lo a um campo de relâmpagos 
encarcerando um touro. Através da nudez vêem-se os astros. 
É onde o poema interioriza 
a sua própria hipérbole, a paisagem. 

Movem-se os tigres como câmaras na areia, prontos eles 
também a deflagrarem. A manhã 
espanca a praia, é impossível descrevê-la sem falar 
dos fios deste poema 
que a cosem com a paisagem 

Autor :Luís Miguel Nava 
Imagem : Tyler Rayburn

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Só me restam

 

e agora só me restam
os poetas gregos.

O silêncio diz – esquece.
E o espinho da rosa enterrado no peito
é meu.

Os deuses não assistiram a isto. 

Autor : Maria Alexandre Dáskalos
Imagem : Mónia Merlo

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Elegia ao Poente

Tão ténue a luz 
deste sol macerado 
que em nossos olhos 
poisa, canta e morre… 
Entreguemos os corpos 
à sombra que o envolve. 
E talvez sejamos os rios 
que a lua prometeu chorar.

Autor : Pedro Belo Clara.
Imagem: Ruslan Bolgov

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Entre os lagos


Esperei-te do nascer ao pôr do sol
e não vinhas, amado.
Mudaram de cor as tranças do meu cabelo
e não vinhas, amado.
limpei a casa, o cercado
fui enchendo de milho o silo maior do terreiro
balancei ao vento a cabaça da manteiga
e não vinhas, amado.
Chamei os bois pelo nome
todos me responderam, amado.
Só tua voz se perdeu, amado,
para lá da curva do rio
depois da montanha sagrada
entre os lagos. 

Autor : Ana Paula Ribeiro Tavares
Imagem : Viktoria Haack

terça-feira, 13 de outubro de 2020

O que faz um poema

O maior dilema

É saber se é um poema.

Rima, compasso, sentido,

Palavras libertas do dicionário…

Um conjunto de requisitos bem envolvido

Será obrigatório ou arbitrário?


O poema prescinde reconhecimentos,

Porque é composto pela ausência de pretensão,

Em que apenas as palavras são filamentos

Despontantes de uma própria dimensão.


Não sei se percebo

Como o poema se move e espalha,

Por entre as linhas da realidade,

Mas agora aqui estou eu,

A sondar cada grão da sua existência,

E é bom...


Autor : Rúben Marques
In: Navegaçoes pelo Tempo
Imagem : Alex Stoddard


domingo, 11 de outubro de 2020

Final do dia

E eu sei que quando abro a porta
agora nada existe para além dela 
senão, móveis silenciosos 
por vezes com réstias de pó.

E eu não oiço a tua voz rouca 
a perguntar: 
-Miúda és tu? 

A chuva introduziu-se na janela 
que deixei entreaberta 
e eu olho que o chão está molhado 
e respondo alto para mim mesma. 

-Sim, sou eu! 
Já cheguei! 

E não penso em mais nada, 
excepto que tenho mais uma noite pela frente 
e a noite é longa, tão longa 
com seus fantasmas e memórias. 

Estendo o meu corpo esgotado sobre a cama 
e estendo a saudade da tua presença. 

Autor : BeatriceM 2020-10-04 
Imagem :Ruslan Bolgov

sábado, 10 de outubro de 2020

O nome parece a infância

O nome parece a infância.
Quando na velhice é termos vindo
Sem pressa

Para dentro
Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai
É um fruto.

O nome é ainda
O modo como chamas.

O nome é a arma contra mim. O maior perigo.
Com os teus lábios podes destruir-me.

Autor :Daniel Faria
in Explicação das Árvores e Outros Animais

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Palavras



As palavras que te dou
são o que sou ,
são o que sinto,
e como me sinto,
essas são as minhas palavras: EU. 

Autora: Sónia Sultuane
Imagem: Laura Makabresku

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Gota de Água

Eu, quando choro,
não choro eu.
Chora aquilo que os homens
em todo tempo sofreu.
As lágrimas são as minhas
mas o choro não é meu. 

Autor : António Gedeão
Imagem : Ulrich Struck

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Posse Intemporal

Fazer amor contigo 
não é espelhar teu corpo nu 
no vítreo do meu espaço 
não é sentir-me possuída 
ou possuir-te 

É ir buscar-te 
ao abismo de milénios de existência 
e trazer-te livre. 

Autor : Manuela Amaral 
In “Amor no feminino”
Imagem : Victor Hamke

terça-feira, 6 de outubro de 2020

A LISTA


Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora
Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber
Quantas mentiras você condenava
Quantas você teve que cometer
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você
Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você
Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você


Fonte: LyricFind
Compositores: Oswaldo Montenegro
Letras de A lista © Warner Chappell Music, Inc

domingo, 4 de outubro de 2020

Outono

Hoje choveu!

O Outono traz-me cores de sépia e cheiros a terra molhada. A  água da chuva são lágrimas das nuvens  que caem sentidas sobre a terra seca. 

Sei de mim. Sei da estação que já nem é, sei dos trilhos que quero ir e nem sei se irei.

Sei de mim, deste desejo inequívoco de me ser, assim, mulher em corpo de criança.

Um dia o pintor, pintou-me com traços que lembravam uma boneca de porcelana.

Foi a melhor tela que ele alguma vez ousou pintar.

Talvez por isso o Outono traz-me pinceladas de memórias com sussurros de ternura.


BeatriceM  2012-09-30



sábado, 3 de outubro de 2020

Fiz a minha casa aqui

 

Fiz a minha casa aqui,
tu sabes porquê...
Escolhi construí-la sobre um rochedo,
não para que perdure,
mas para que não desabe quando o vento soprar
e por aqui o vento sopra sempre...
Sabes que não te evito
trago os bolsos cheios dos teus poemas
quando era pequeno trazia nos bolsos
pedras que apanhava no caminho
os poemas são cheios de palavras por dentro
e as palavras que há nas pedras perduram ao vigor dos cinzéis
são como casas construídas sobre rochedos
falam de nós se na infância as levámos nos bolsos
falam de nós como se fossem poemas
e nós escutamos a sua voz
porque expomos as nossas mãos ao silêncio
as pedras estão cheias de silêncio por dentro
como se fossem poemas
as palavras habitam o coração do silêncio
e se eu não sei contar as palavras que há dentro dos teus poemas
como posso saber quantas habitam o coração do teu silêncio... 

Autor : José Rui Teixeira
Imagem : Joel Robison

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

........


Tão cheias as mãos de pedras
e de lama, de ruas sem saída,
de linhas que não são nem casas,
nem caminhos, nem janela,
nem telhado, nem paredes. 
Tão cheias as mãos de destinos
confusos que não se perdoam, que
se magoam nos declives imperfeitos
dos corações sem margens. Tão cheias
as mãos de pedras e de lama. De asas
sem corpo onde fechar a dor. 
E o peso. O peso dessa angústia
sem braços.
O peso. 

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem :Sabrina de Vries

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A sensação que tens

A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.

Autor : Albano Martins
Imagem: Laura Makabresku