terça-feira, 31 de agosto de 2021

Adormeces

 


Adormeces.
Algures,
na vastidão do mundo,
uma lágrima
faz-se rio.

Aqui,
no silêncio do sono,
todas as flores
são possíveis.

Autor : Pedro Belo Clara
Imagem :RUSLAN BOLGOV

domingo, 29 de agosto de 2021

Amar-te

RUSLAN BOLGOV
 
retorno à memória do tempo
procuro em mim resquícios de ti
a busca incessante de renascer tempos idos

moro no tempo em que te tive
e percorro os trilhos
que sei não mais te encontrar

mas não importa, tu viverás sempre
em mim e no aroma das tardes
carregadas de maresias
olhando o mar, ou quiçá olhando o Tejo

amar-te é isto
mesmo que tu não entendas.

Autor : BeatriceM 2021-08-28

sábado, 28 de agosto de 2021

Esta noite, outra noite

 


Esta noite, outra noite,
esta manhã que nasce pelas frinchas
da janela pequena entreaberta,
por planaltos e vales caprichosos,
lagos azuis, ravinas, e pinhais,
irei de vez em quando perguntando
onde existes? onde estás?
Talvez te enroles no lençol, ou seja
tua esta voz que canta em língua estranha,
ou por galáxias amplas de aventura
noutro quarto quebrado me procures
para existires em mim uma vez mais.
Que medo tenho de ir perdendo a sorte
em armários de gente contrafeita,
e ser, quando voltares, imunda fera
morta, sem dentes, numa esquina ou poço,
o último exemplar da sua espécie;
eu que seria jovem para sempre
em cada pensamento, em cada gesto,
em cada rima obscura do teu verso.

Autor : António Franco Alexandre
Imagem : Mariesol Fummy

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Esperança



Manhãs e poentes atravessam os meus
olhos e os horizontes permanecem à distância
de um sopro infinito. Há veios de ternura no
tecido baço das folhas, mas a palma das minhas
mãos é um trilho desfeito pela tempestade
que me levou o tecto e me deixou para ser ruína.
E agora sou uma casa abandonada. Tão frágeis
as paredes do coração, que tremem. Tão finas
que transparece tudo o que já passou.
A minha alma é um poema verde manchado
de sangue rompendo as fissuras envenenadas
das minhas paredes doídas.
E não sei porquê, resisto de pé.
À espera de ser ruína.
Ou outra sombra qualquer.

Autor : Virgínia do Carmo

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

É verdade que sinto

É verdade que sinto um imenso desprezo
pelos poetas. Por todos os poetas.
Esses seres ignóbeis que escrevem
a palavra «estrela» e uma estrela, de súbito,
nos queima os dedos distraídos. Uma
vez esteve aqui um poeta. Escreveu
a palavra «labareda». E ainda hoje as manchas
do fogo sujam as paredes e os
mosaicos vidrados da sala de reuniões
do Conselho de Administração.

Autor : José Carlos Barros
Imagem :Cristóbal Saavedra

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Partir com os barcos

Partir com os barcos
e ferir os dedos
ao puxar das redes.
Mas o sangue, que se confundirá nas malhas, não será
ainda tão significativo como aquele que verterá o peixe
ao cair nelas.

Autor : Ana Paula Inácio

terça-feira, 24 de agosto de 2021

A Rua em Silêncio


A rua em silêncio,
alguns passos solitários,
as paredes dobradas
e a calçada desnuda
a sangrar madrugadas.
A rua em silêncio,
alguns passos indiferentes
a bailar com a dor da alma
e as bocas que jazem nuas
na mesma corda diagonal.
A rua em silêncio,
o fio-de-prumo a dobrar
a curva das palavras submissas.
E a rua toda ainda assim

Autor : António Carlos Santos 
imagem : Ildiko Neer

domingo, 22 de agosto de 2021

Em estado puro

 

Desfolhada sem filtros
Despida
Mensageira
Frágil
Por vezes dura
Melancólica
Sofrida
Graciosa
Em estado puro
A (minha) poesia

Autor : BeatriceM 2021-08-21

sábado, 21 de agosto de 2021

parecia


parecia que estava tudo bem, mas não estava, não estava mesmo. havia uma falsa tranquilidade em seu olhar. tranquilidade não, cansaço. havia um cansaço tão forte que o silêncio era uma consequência. aquele silêncio que existe no intervalo entre uma catástrofe e outra. e ele sabia, ele estava habituado a desfrutar ao máximo dos silêncios, pois a qualquer momento uma nova catástrofe apareceria. estava sempre à espreita. calmo, quieto, atento. parecia que estava tudo bem, mas não estava, não estava mesmo.

Autor : @kaiobrunodias
imagem : Deen Amir

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

até o próprio vento

Mas o que é a cidade? Que é? Tudo, até o próprio vento.
Note-se que o vento e outras coisas que nos parecem do campo, dos espaços livres, são extraordinariamente citadinos.
Passa gente a gritar na rua, a soltar aqueles apelos tão entrados na nossa vida doméstica, e é o vento, afinal, que também tem um timbre usual e que é de toda a parte, que se ouve com mais delícia. Nesta cidade de sons, o do vento é muitíssimo antigo e poético, muito particular.

Autor : Irene Lisboa
Imagem : Kyli Sparre

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

como a água meu amor

 

 

como a água
meu amor
também as asas nos sacodem
no final do beijo

quantas páginas faltam?

se a fronteira é a das águas quem reprime a espuma
onde começa a praia?

no meu espelho o que via
era um homem de rosto voltado
de rosto voltado
para sempre
e uma linha de ombros onde as águas
e os teus lábios de espuma meu amor
me embaciavam

também ouvi chamar a isso
entardecer
idade
inclinação do sol

mas também cicatrizes ou sulcos como preferires
essa teia onde os dias marcam os seus signos
como as águas no solo meu amor
até furarem

Autor : Carlos Nogueira Fino
Imagem : Saul Landell

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

......


cheguei às portas secretas
atravessei as passagens interditas
e
no labirinto que negou os meus passos
vi tesouros que não eram meus

Autor : Maria Alexandre Dáskalos

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Estas coisas

estas coisas que muitas vezes aguentamos
nada têm a ver connosco,
e lidamos com elas devido ao tédio
ao medo ou devido ao dinheiro
ou falta de inteligência;
o nosso espaço e a nossa luz
demasiado pequenos,
tão pequenos que não os suportamos,
por isso erguemos a Ideia
e perdemos o Centro:
muita parra e pouca uva,
e vemos nomes que outrora eram sinónimo de sabedoria
como placas a indicar cidades fantasma,
onde só as sepulturas são reais.

Autor : Charles Bukowski
Imagem : Kyle Thompson

domingo, 8 de agosto de 2021

hoje, desenhei um barco


hoje, desenhei um barco
em estilhaços de cores vivas e alegres
que sempre vagueiam na retina do olhar
(do meu)
eu, nunca te disse que em todos
os portos, há um barco que chama por mim.

BeatriceM 03-08-2014

domingo, 1 de agosto de 2021

é apenas saudade

não existe vestígios de mágoa
nem tão pouco culpas
(ou simplesmente desapego)

é saudade
das reminiscências envelhecidas
(de (outro) tempo só nosso)

saudade irrefreável da nossa paixão
da união e partilha dos corpos
(na noite e no dia)

acredito.
acredita!
(é apenas saudade.)

Autor : BeatriceM 2021-08-01
Imagem: Liu Yuan-Shou