sábado, 30 de abril de 2016

A noite trocou-me os sonhos e as mãos

Karen Hollingsworth

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita

estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal
                                                                             [em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu
                                                                              [dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.


Autor : António Ramos Rosa

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Tela


Oleg Oprisco

Hoje sou eu que poso para o teu poema
Como uma modelo numa cama de flores
Que estaria
A vida inteira diante dos teus olhos
Até ser só ossos, ouro, palavras, rebentação.

Autor: Ana Salomé

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Amar por amar não posso



Amar por amar não posso.
Amar por amar não sei.
Amar por amar não posso.
Amo aquilo só que é nosso
Amando à margem da lei.

Amar por amar não posso
Amar por amar não sei.

Ninguém me faça perguntas!
Trago o coração já frio…
Ninguém me faça perguntas,
Que as minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!

As minhas lágrimas juntas
Davam para encher um rio!

Autor : Pedro Homem de Mello

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Sempre amei por palavras muito mais

Steve Hanks

Sempre amei por palavras muito mais
do que devia
são um perigo
as palavras
quando as soltamos já não há
regresso possível
ninguém pode não dizer o que já disse
apenas esquecer e o esquecimento acredita
é a mais lenta das feridas mortais
espalha-se insidiosamente pelo nosso corpo
e vai cortando a pele como se um barco
nos atravessasse de madrugada
e de repente acordamos um dia
desprevenidos e completamente
indefesos
um perigo
as palavras
mesmo agora
aparentemente tão tranquilas
neste claro momento em que as deixo em desalinho
sacudindo o pó dos velhos dias
sobre a cama em que te espero

Autor : Alice Vieira
in O QUE DOI AS AVES (Caminho, 2009)

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Navego canela e marfim


Navego canela e marfim
E em meu sal marinheiro...

Solto os mares.
Que porto abandonado é fogo ardido...

Corsário de um corpo indefinido
Em cada remo me fundeio. A bruma é lua.
E o rosto indefinido vaga cheia...

Cartografia dos sentidos
Rebentando as veias...

Não mais bandeiras. Outras.
Apenas o convés engalanado
E o mastro altivo...

Tão grávida de Índias
Minha galera de glórias passageiras...

Autor : Manuel Veiga
"Do Esplendor das Coisas Possíveis" - pág 89
Poética Edições - Lisboa

domingo, 24 de abril de 2016

a eclosão das manhãs

Eric Zener

houve uma noite
em que todas as manhãs eclodiram

a lua dançou as quatro fases
o mar subiu e desceu um peito arfante de marés
as árvores despiram-se vestiram-se e floriram
e a terra rodopiou pelo tempo inexistente

e eu
não saí do meu lugar
recolhida encolhida numa concha
sem saída
reclinei-me na janela das ilusões
a ver passar os sonhos
como se fossem rebanhos em transumância

e
se agora digo que houve uma noite
é para não ter de contar
as noites todas
até aqui

Autor : Rosário Ferreira Alves

sábado, 23 de abril de 2016

Trago-te ao espaço da janela.

Karen Hollingsworth

Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.

«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.

Autor : João Miguel Fernandes Jorge
in "Meridional"

sexta-feira, 22 de abril de 2016

O Uivo

Quando um cão uiva é como se o fizesse do interior dos nossos ossos e os pusesse à mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo então o nosso esqueleto integra o pátio, a roupa branca pendurada, a pilha de tijolos, há entre tudo isso e os nossos ossos uma afinidade a que somente o cão, como se o mar todo lhe pesasse na garganta, empresta nitidez. 

Autor : Luís Miguel Nava
in 'Rebentação'

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Um leve

Steve Hanks


Um leve gotejar, acorda a manhã
Que teima em não querer acordar.

As águas liquidas. As mãos. Enregeladas
A dor no peito a latejar.

A manhã vestida de silêncio
O frio a cortar os segredos, a chuva
A lavar as sombras.

A fragrância da mágoa
Colorida de névoa laminada
A porta!  Labirinto de horizontes.


Empoleirada no tempo
A manhã totalmente desperta
Respira destinos.




E vou no ribombar dum trovão
Esquecendo a dor, num raio de luz
Deambulo às cegas com destino certo
E alma totalmente vazia!



Autor ©Piedade Araújo Sol 

http://olharemtonsdemaresia.blogspot.pt/2009_12_01_archive.html

terça-feira, 19 de abril de 2016

No adormecer do teu olhar

Danielle Richard

No adormecer dos teus olhos azuis
Escondo as minhas noites luar
Céus perdidos de marés livres
Quebranto de sonhos por querer
Adornos de leituras por escrever
Arejos de fruta doce rendida
E um favo de sementes meladas.

Na calma fugaz…encontro-te
No meio de palavras brandidas
Por entre traços de pontes carentes
Vejo-te névoa tangente de sobressalto
Destino esvoaçante a manejar
Entrega ao romanceiro da saga dormente
No caviloso som da denúncia.

Meu querer…meu amor…meu compasso
Julgo-te força estranha suave
Colírio sussurrante cristalino
Deusa, epíteto meigo e penetrante
Carisma solto e pautado costume
Derrame de essências marcantes
Brisa queixosa de saudades.

Grito-te, vida de falas junta
Vícios meigos de abraçares redutos
narrativas inundantes de lágrimas seda
Porção de soros turvos amendoados
Espiral de linhas de fulgor correntes
Montanhas de aromas sólidos fortes
Arco-íris vivo de cores beleza.

Fonte nobre, clareira ávida
No espaço do teu couto verdejante
Anexo a minha credencial isenta
Remeto-te o meu dote infinito
na troca do teu indelével merecimento
Convite testemunha sem predicado
Porque vaidade, é o orgulho de te receber.

Autor : José Luís Outono

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Quando eu morrer


Peter Brownz Braunschmid

Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

Autor: Maria do Rosário Pedreira

domingo, 17 de abril de 2016

...

Nicole Pietts

Por motivos de saúde este espaço esteve temporariamente inactivo
Espero poder continuar.
Obrigada a todos os leitores e seguidores


quarta-feira, 13 de abril de 2016

Do esplendor das coisas possíveis

"Do Esplendor das Coisas Possíveis" - Convite.


Há nesta vibração um prenúncio
Uma espera que germina
Uma fala inesperada...

Um murmúrio, uma corrente.
Há um rio que se advinha.
Há um rosto. E em cada linha
Uma vontade de Mar
Desatada...

Uma palavra em cada esquina.
Uma promessa. Uma viola.
Uma canção que se afina.
Uma mão – clandestina!
E uma nova luta pegada.

Há um barco que se anuncia.
Há uma ousadia sonhada...

Há um poema sem rima. Uma viagem.
Uma flor. Uma arma.
Uma fronteira vencida.
Há uma Festa que se acarinha
Ou uma dor aziaga...

Há este gesto insubmisso
E esta paixão tão gritada...

Autor : Manuel Veiga

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Morrer de amor é assim

Jack Vettriano

Quem morre de tempo certo
ao cabo de um certo tempo
é a rosa do deserto
que tem raízes no vento.

Qual a medida de um verso
que fale do meu amor?
Não me chega o universo
porque o meu verso é maior.

Morrer de amor é assim
como uma causa perdida.
Eu sei, e falo por mim,
vou morrer cheio de vida.

Digo-te adeus, vou-me embora,
que os versos que eu te escrever
nunca os lerás, sei agora
que nunca aprendeste a ler.

Neste dia que se enquadra
no tempo que vai passar,
termino mais esta quadra
feita ao gosto popular.

Autor : Joaquim Pessoa
in "Ano Comum"



terça-feira, 5 de abril de 2016

Sei lá



O relógio marca
 quarenta e oito horas sem te ver
 sei lá quantas para te esquecer.

Autor : Alice Ruiz

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Chuva



"as coisas vulgares que há na vida
não deixam saudade
só as lembranças que doem
ou fazem sorrir
há gente que fica na história
na história da gente
e outras de quem nem o nome
lembramos ouvir
são emoções que dão vida
à saudade que trago
aquelas que tive contigo
e acabei por perder
há dias que marcam a alma
e a vida da gente
e aquele em que tu me deixaste
não posso esquecer

a chuva molhava-me o rosto
gelado e cansado
as ruas que a cidade tinha
já eu percorrera
ai... o meu choro de moça perdida
gritava à cidade
que o fogo do amor sob a chuva
há instantes morrera
a chuva ouviu e calou
o meu segredo à cidade
e eis que ela bate no vidro
trazendo a saudade"


Autor : Jorge Fernando