sábado, 29 de novembro de 2008

Neste outono

Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de ch
egar.
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Autor :Maria do Rosário Pedreira
Foto:Introit

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sensação musical para embalo de almas


Onde a vida foi, fugitiva,
a forma inatingível,
a pura música cativa
e livre, como um sensível
alheio a nós, e sendo-nos,
há só o puro longe, o pólen
em suspensão e estige
de ausência - pétalas cismantes
recortando a sua origem
não em nós, na morte de instantes.

Autor:António de Navarro
Foto:miszkaa

domingo, 16 de novembro de 2008

....

Agarro em pincel e deslizo-o, a ouvi-lo segredar, murmúrios de cores que riem sozinhas.Traço risco leve, não leve o vento o vento, o segredo do rabisco…É saltimbanco, o risco colorido , palhaço-saltitante, vagabundo, navegante…Procura ilha perdida, de menina que sonha versos de fantasia.Rabisco tonto!Desvalido de sorte!Anda perdido sem norte, que a menina sonha coisas outras, de fadas e rainhas, não coisas tolas, coloridas por rabisco de Quixote…
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@ almaro — July 13, 2005

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Lãmina, o Punhal

Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
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Autor:Albano Martins
Foto:Ricardo

sábado, 8 de novembro de 2008

As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa.
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Autor:José Tolentino Mendonça
foto:Yust

sábado, 1 de novembro de 2008

30

Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.


Autor:António Franco Alexandre
In:Duende
Foto:jimij