domingo, 30 de agosto de 2020

Paixão

Se me chamas em silêncio,
não sei se sou eu que engendro a ária,
que me percorre o corpo,
se me extasio se me desfaço,
em flocos de algodão,
ou em cheiros de nós.

Não sei
e nem me importo!
.
Autor : BeatriceM 10-08-2014
Imagem : Magdalena Russocka

sábado, 29 de agosto de 2020

O verão

Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.

Autor : José Agostinho Batista

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Palavras graves

Tão difícil colocar a voz no chão e andar.
Descer às sílabas simples das coisas, à plana
brancura dos significados claros. Crescem as
razões do peito que não quer ser casa, crescem
loucas, inventadas à pressa na pressa
da fala: tecto danificado, paredes frágeis,
buracos no soalho. Palavras, nada
mais. Palavras graves e provas inúteis.
Um dicionário de obstáculos a cobrir-se
de pó na parte mais funda da vida.

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem: Willie Kers

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Amor e Medo

Estou te amando e não percebo, 
porque, certo, tenho medo. 
Estou te amando, sim, concedo, 
mas te amando tanto 
que nem a mim mesmo 
revelo este segredo.

Autor : Affonso Romano de Sant’Anna
Imagem : Jordi Puig

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

O beijo

Vela-me o sono
desde o teu sonho acordado
deita o teu beijo
no leito do vento
e empresta-lhe um sopro cálido

faz dele estrela cadente
luz que deslumbre as trevas da noite
desejo ou promessa
a rasgar os céus do não crente

sabes que o espero
ainda que adormecida
a noite não passa sem que ele chegue
sabes que o espero em espirais de vontade

neste
ou no outro lado da vida
não há medo maior
que morrer desta sede

Autor : Sónia M 22-08-2013
Imagem : Bree Rivers

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Rezar o Vazio


Ensina-nos, Senhor, a rezar este vazio.
O vazio trazido por um medo que não conhecíamos e que parece agora um inquilino da nossa alma.
O vazio dos espaços confinados.
O vazio da vida, de repente, em suspenso.
O vazio das horas que quem está sozinho conta de forma diferente.
O vazio das incertezas que se amontoam e das quais ainda não falámos.
O vazio dos olhos dos que vemos sofrer e o vazio dos muitos que sofrem sem que nós o vejamos.
O vazio dos cuidadores ao final de turnos extenuantes.
O vazio dos que tiveram de continuar expostos, dia a dia, para que outros ficassem a salvo.
O vazio de tudo aquilo que, de um momento para o outro, ficou adiado.
O vazio daquela mulher idosa que passa o dia com o rosto encostado à janela.
O vazio das ruas donde nos chega um silêncio que não é um silêncio, mas uma espécie de ação de despejo da vida quotidiana. O vazio dos encontros e das conversas.
O vazio que os amigos pressentem.
O vazio das risadas.
O vazio de todos os abraços não dados.
O vazio da espontaneidade dos gestos.
O vazio da proximidade interditada.
O vazio deste verão que está a passar sem que notemos.
O vazio do sacerdote que celebra diariamente na igreja vazia.
O vazio das nossas igrejas onde Tu, Senhor, continuas presente, e dali nos ensinas a transformar os vazios.

 Autor : Cardeal José Tolentino de Mendonça  20.06.2020

domingo, 23 de agosto de 2020

Escrevi

Imagem : Mónia Melro
Escrevi um olhar numa flor. Um olhar apenas. As palavras ficaram asfixiadas e sem sentido. E a flor sorriu e devolveu-me o olhar, agradecida.
.

Autor : BeatriceM 2012-08-19 (Reeditado)

sábado, 22 de agosto de 2020

...


Só existem dois dias no ano que nada pode ser feito. Um se chama ontem e o outro se chama amanhã, portanto hoje é o dia certo para amar, acreditar, fazer e principalmente viver. 


Autor : Dalai Lama
Imagem : Adam Bird

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Mulher-Poesia

Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de poema 

Mulher-Criança
que desce à minha infância
e me traz adulta 

Mulher-Inteira
repartida no meu ser 

Mulher-Absoluta
Fonte da minha origem 

Autor : Manuela Amaral
In “Amor no Feminino”
Editora Fora do Texto– 1997 
Imagem : Monia Merlo

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Junto â Água

Os homens temem as longas viagens 
os ladrões da estrada, as hospedarias, 
e temem morrer em frios leitos 
e ter sepultura em terra estranha. 

Por isso os seus passos os levam 
de regresso a casa, às vontades da infância, 
ao velho portão em ruínas, à poeira 
das primeiras, das únicas lágrimas. 

Quantas vezes em 
desolados quartos de hotel 
esperei em vão que me batesses à porta, 
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse! 

E perdi-vos para sempre entre prédios altos, 
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis, 
e no meio das multidões dos aeroportos. 
Agora só quero dormir um sono sem olhos 

e sem escuridão, sob um telhado por fim. 
À minha volta estilhaça-se 
o meu rosto em infinitos espelhos 
e desmoronam-se os meus retratos na moldura. 

Só quero um sítio onde pousar a cabeça. 
Anoitece em todas as cidades do mundo, 
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos 
onde o meu coração, falando, vagueia. 

Autor : Manuel António Pina 
(Um Sítio Onde Pousar a Cabeça) 
In “Todas as palavras” 
Poesia reunida 
Imagem : Tyler Rayburn

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A Propósito de Estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz 
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar 
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas 
penso no rapaz como me parece
que me vou ocupar com as estrelas 
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz 
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas 
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro 
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz 
se quando vi o rapaz vi as estrelas

Autor :Adília Lopes
In “Quem Quer Casar Com a Poetisa?”
Quasi Edições 
Imagem: Ali Jardine

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Poema à boca fechada

Não direi: 
Que o silêncio me sufoca e amordaça. 

Calado estou, calado ficarei, 
Pois que a língua que falo é de outra raça. 

Palavras consumidas se acumulam, 
Se represam, cisterna de águas mortas, 
Ácidas mágoas em limos transformadas, 
Vaza de fundo em que há raízes tortas. 

Não direi: 

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem, 
Palavras que não digam quanto sei 
Neste retiro em que me não conhecem. 

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas, 
Nem só animais bóiam, mortos, medos, 
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam 
No negro poço de onde sobem dedos. 

Só direi, 

Crispadamente recolhido e mudo, 
Que quem se cala quando me calei 
Não poderá morrer sem dizer tudo. 

Autor : José Saramago
In “Os Poemas Possíveis” 
Editorial Caminho 
Imagem : Alex Stoddard

domingo, 16 de agosto de 2020

Fiquei de pé


 Fiquei de pé (as árvores morrem de pé) (dizem) a ver-te partir. A olhar o carro que conduzias em marcha lenta, a dobrar a praça, a circundar a rotunda, e a desaparecer, no fim da marginal.    No ar esvoaçava o pólen dos plátanos.   Nesse dia, morri um pouco.   E acho que tu também.

Autor . BeatriceM 12-08-2012
Imagem : Tyler Raybur

sábado, 15 de agosto de 2020

Há noites em que se tem saudades de tudo

Imagem : Netanel Morhan 

Há noites em que se tem saudades de tudo. 
Essas saudades insinuam-se nos nossos sonhos 
e tanto sonhamos com a aflição de alguém em fuga
ou com o desgosto de uma traição, como sonhamos 
com uma felicidade desconhecida que não sabemos 
de onde vem. Neste caso, quando acordamos, 
ainda sentimos no ar o perfume de quem passou pelo nosso sono.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

A Tristeza que eu sinto


A tristeza que eu sinto! 

É um consciente, inconsciente, 
conjunto de nadas, de gente, 
salpicos de madrugadas 
nunca nunca chegadas. 

A tristeza que eu sinto! 

É um estar presente ausente. 
É um afastar aproximar 
que de tão diferentes 
forçosamente se vão tocar. 

A tristeza que eu sinto! 

É um estar triste conteste 
tão profunda, tão triste, 
ultrapassa-me não é minha 
é tristeza de muita gente. 

Autor : Ana Bela Pita da Silva
In ”Fala a Meus Amigos”
Edição da Autora – 1977
Imagem : Magdalena Russo

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Quanto vale um amigo?


Amizade não se compra,
não se vende em prateleira.
Não tem promoção de amigo
no shopping, nem lá na feira.
Um amigo é um presente
de graça, mas faz a gente
ser rico pra vida inteira.

Autor : Bráulio Bessa
Imagem : Ralph Gibson

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

O Amor sem Rosto



I
O amor sem rosto
o amor sem casa
pássaro pequeno
de asa tão leve
.
de asa tão leve
pra onde me levas
o amor sem casa
o amor sem tréguas
.
o amor sem tréguas
o amor sem guerras
asa sem destino
pra onde me levas
.
pra onde me levas
deixai-me levar
não quero amanhã
hora de chegar
.
hora de chegar
a lugar nenhum
deixai-me ficar
deixai-me partir
.
deixai-me partir
não sei por que estou
não sei por que vim
não sei por que vou
.
não sei por que vou
que vento me leva
o amor sem rosto
o amor sem tréguas
.
não sei onde vou
que sopro me arrasta
o amor sem rosto
o amor sem casa

Autor : Teresa Rita Lopes,
primeiro de "Os Dedos Os Dias As Palavras" (Figueirinhas, 1987) pertencente à trilogia chamada AMOR SEM CASA, que inicia o livro.
Imagem : Ricardo Fernandez Ortega

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Ode à Mentira




Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,

como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

Autor : Jorge de Sena,
in 'Pedra Filosofal'

domingo, 9 de agosto de 2020

Uniformidade



Tentei compor um poema
Em tarde cinzenta, com a humidade do ar no cúmulo
Em brisa inexistente

Não sei porque em dias assim
Lembro,  que me disseste bruscamente,
(Tem já muito tempo)

Não me venhas com sermões
Não é o que queremos que predomina
Mas apenas o que tem que ser

E o que tem que ser, nunca ou raramente
É o que queremos, respondi.
Não deste resposta, e o dia ficou ainda mais cinzento

Nunca consegui compor ,um poema
Em dias assim.

BeatriceM 2020-08-02
Imagem : Katerina Plotrikova

sábado, 8 de agosto de 2020

nada os meus olhos deixarão na cinza


nada os meus olhos deixarão na cinza
das vastas folhas envidraçadas: nem
o astrológico número das horas
autorizadas pela autoridade e a sua penumbra.
a «penumbra da autoridade» vem vestida
de muitos horizontes com, aqui ou além, um barco
de velas estilhaçadas, ou a capa de um livro
de viagens na vitrina.
então o amor mistura-se com as coisas breves,
os pássaros, o rumor dos alicates na gaveta branca.
foi esta a sua história? esta canção pertence-lhe?
a «greve» alourou-lhe as sobrancelhas? este olhos
têm o plástico ao contrário. e o ruído
das torneiras no balde, mesmo
à beira do precipício,
é um inconveniente que convém manter
sob vigilância

Autor :António Franco Alexandre
em Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 83.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Angústia


Ensaiamos os dias em trapézios
instáveis. Na superfície movediça
de construções humanas em suspensão.
Segurando na fragilidade do equilíbrio
o prumo da justiça.
Sempre que caímos, por mais que tentemos
evitar a vertigem da ordem, todos os factos
se perdem na dispersão dos elementos.

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem : Jenna Martin

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

crisálida


dissolver o cansaço na aspirina o açúcar a angústia
a lembrança no sono o tropeço os falhanços, ligar
com cimento, construir

chorar de vez em quando às escuras para a febre descer

polir palavras com escova colocá-las com pinça
no interior, derramá-las num jarro sem vinho sobre o papel,
deixar secar, recortar, recompor, calar gritos, escrever

sonhar os poemas que não se escreve, escrever os poemas que não.
podar as plantas nos filhos, mostrar os frutos, o caroço,
o saco do lixo, a hora de ponta, suor. depois lavar. levar
o peito à rua, receber os outros, perdê-los, trocá-los,
devolver este par de mãos àquele mar, afogar em esforço
a carótida torcida do tempo, parar sempre noutra esquina,
fugir à vertigem com o prazer das alturas, perder,

permanecer sentado até à dor nos ossos, cronometrar paciências,
aprender na lentidão a única saída,
rápida

e envelhecer.
acreditar?

Autor:Manuel Cintra
Imagem: Ali Jardine

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Resgate


sou refém da lua cheia
ela entra pelo quarto
conhece-me os beijos
os cheiros guardados
as sombras e crateras
do meu cativeiro
sou refém da meia-lua
ela me sabe os pedaços
as tristezas os segredos
invade-me à madrugada
assiste o amor arder
sem endereço
sou refém de mim
a lua é pretexto

Autor : Líria Porto
Imagem Frank Melech

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Murmurios do mar

«Paga-me um café e conto-te
a minha vida»

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu não, tu nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
e temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

«Pago-te um café se me contares
o teu amor»

Autor : José Tolentino Mendonça
Imagem:Vladimir Volegov

domingo, 2 de agosto de 2020

Estados de Alma


Tenho em mim um oceano de afetos.
Por vezes sinto-me estrangulada de solidão.
Desdobro-me em mutismos.
E sou apenas mais um autómato.
No meio da multidão.
.
Autor: BeatriceMar 28-07-2013 (reeditado)
Imagem : Monia Merlo

sábado, 1 de agosto de 2020

Confluência


Ter-te amado, a fantasia exata se cumprindo
sem distância.
Ter-te amado convertendo em mel
o que era ânsia.
Ter-te amado a boca, o tato, o cheiro:
intumescente encontro de reentrâncias.
Ter-te amado
fez-me sentir:
no corpo teu, o meu desejo
– é ancorada errância.

Autor : Affonso Romano de Sant'Anna
Imagem : Diggie Vitt