sábado, 17 de maio de 2008

A noite na Ilha

Dormi contigo a noite inteira junto ao mar, na ilha. Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono, entre o fogo e a água. Talvez bem tarde os nossos sonos se uniram na altura e no fundo,em cima como ramos que um mesmo vento move,em baixo como raízes vermelhas que se tocam. Talvez o teu sono se separou do meu e pelo mar escurome procurava como antes, quando nem existias,quando sem te enxergar naveguei a teu lado e teus olhos buscavam o que agora - pão, vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos, porque tu és a taça que só esperava os dons da minha vida.Dormi junto contigo a noite inteira, enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos, de repente desperto e no meio da sombra o meu braçorodeava a tua cintura. Nem a noite nem o sonho puderam nos separar.Dormi contigo, amor, despertei, e a tua boca saída do teu sono deu-me o sabor da terra,de água-marinha, de algas, de tua íntima vida, e recebi o teu beijo molhado pela aurora como se me chegasse do mar que nos rodeia.


Autor:Pablo Neruda

Foto:autor/a desconhecido

domingo, 11 de maio de 2008

A carta da Paixao



Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os recessos negros

onde

se formam

as estações até ao cimo,nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.Os dedos.A montanha desloca-se sobre o coração que se

alumia: a língua

alumia-se. O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, a lua

tece as ramas de um sangue mais salgadoe profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-senum braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.Queima-te a espaçosa

desarrumação das imagens. E trabalha em tio suspiro do sangue curvo, um alimento

violento cheio

da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força

desde a raiz

dos braços, a força

manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda

fechada, a límpida

ferida que me atravessa desde essa tua leveza

sombria como uma dança até

ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma

estação é lenta quando te acrescentas ne desordem,nenhum

astroé tão feroz agarrando toda a cama. Os poros

do teu vestido.As palavras que escrevo correndo

entre a limalha. A tua boca como um buraco

luminoso,arterial.E o grande lugar anatómico em que pulsas como

um lençol lavrado.A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-sefixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda

no cometa que te envolve as ancas como um beijo.Os dias côncavos, os quartos
alagados, as noites que
crescem

nos quartos.É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel

relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta

pelo meio

o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras

um pouco loucas

engolfadas, entre as mãos sumptuosas.A doçura mata.A luz salta às golfadas.A terra é
alta.Tu és o nó de sangue que me sufoca.Dormes na minha insónia como o aroma entre
os tendões

da madeira fria. És uma faca cravada na minha

vida secreta. E como estrelas

duplas

consanguíneas, luzimos de um para o outro

nas trevas.


Autor:Herberto Helder

terça-feira, 6 de maio de 2008

Porque o fim de um caminho...



Porque o fim de um caminho...
Porque o fim de um caminho sempre me entregou
o limiar de outro caminho,
o verde de um campo ou de um corpo adolescente,
espero que regresse à minha voz
a luz que no primeiro dia a fecundou
e a terra que é contorno dessa luz.
Porque espero ver crescer minhas mãos dessa terra
e de minhas mãos a água necessária à minha sede,
ergo de mim a noite residual do que vivi
e canto,
canto provocando a madrugada.
Porque outros entoarão meu requiem e outros cerrarão
minhas pálpebras para defender meus olhos de suas lágrimas,
deixo essa glória aos outros
- e exalto o meu nascimento
e cada dia em que renasço e procuro
a boca ou o fruto onde se reflitam os meus lábios.
Porque, harmonizando-se no sangue o fogo e a água,
eu sou o fogo e a água:
por mim os cadáveres e quanto é feito da matéria dos cadáveres
libertar-se-ão em chamas, serão claridade
e chegarão a pão pela dádiva das cinzas,
a última dádiva, a total.


Autor:José Bento

Foto:Elgorka

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Recado



ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
.
Al Berto, Horto de Incêndio
Foto:Lady33