quinta-feira, 30 de setembro de 2021

E eu sou Eu


Aqui estou eu
Mestiço de negro e branco
Severo e brando
Obstinado e ocioso
Modesto e orgulhoso
Obsessivo e sereno
Manso e prudente
Agradável e egocêntrico
Talvez a lei dos contrários
Impere em mim
Ou talvez haja apenas
Uma simbiose de antíteses
O que faz de mim indivíduo
Pois é…
Eu sou eu.

Autor : Delmar Maia Gonçalves

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

NOSTALGHIA



Ouvia-te falar e sentia
as chamas retomarem
as paredes do teu coração
de igreja abandonada.
O céu, nessa tarde,
era um leque de lantejoulas
ao rés do teu sorriso
e dos meus olhos encadeados.
Doía-me esse excesso de luz
que te fazia toda sombra,
o crepitar morno da pele
antes do incêndio consumado.

Sempre que dizias o seu nome,
riscavas outro fósforo –
ele avançava dentro de ti,
nas mãos uma vela prestes a cair.
Amo demasiado o fogo
para a suster. Prefiro
redesenhar as nossas cicatrizes,
ser depois a memória da pedra
fria em pleno Verão.

Autor : Inês Dias
Imagem : Matthew Scherfenberg

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Coisas que não há que há

 


Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...

Autor : Manuel António Pina

domingo, 26 de setembro de 2021

O Livro



O livro foi arrumado,para ser esquecido
na prateleira mais alta da estante,
da biblioteca.

Inacessível, assim ficou
olvidado à espera de ser lido,
e deslindado.

E assim ficou anos e anos,
à mercê,
das gerações que se sucederam.

Muito tempo depois,
recebi-o como herança,
e só hoje eu o descobri.

O livro é meu,
e foi escrito por mim,
há muitos, muitos anos, atrás.

BeatriceM 21-09-2014.
Imagem : Garry Gay

sábado, 25 de setembro de 2021

Os noticiários da manhã

Os noticiários da manhã abriram com essa imagem
fabulosa: dois poetas construíam um edifício.
Não era um edifício abstracto. Não
era o utópico edifício do coração das obras.
Era um edifício verdadeiro: alicerces,
paredes, telhado; pedra, tijolos,
cimento. Em vez do exercício habitual
de poetas procurando destruir os edifícios
todos da cidade, um a um, disparando canhões
de pólen, estes dois poetas erguiam
um edifício verdadeiro, concreto,
tangível. E isto é de uma humanidade
comovente. E isto chego a pensar
que quase merecia um poema.

Autor : José Carlos Barros
Imagem : Nathan Wright

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Neste dia Cinzento

 
Neste dia cinzento
procuro um verso
e não encontro
não tem importância

Autor : Adilia Lopes
Imagem : Sandy Wijaya

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

das paixões



das paixões só conheci as mais pequenas
aquelas que nasciam na palma das mãos e desapareciam
com a água do mar. mas não eram paixões por barcos
ou pássaros ou cabelos teus: só uma fenda no céu
verde e azul e uma casa desabitada

das paixões só conheci as mais pequenas
como se no minuto imediato eu tivesse de esperar a morte
ou as aves no seu regresso do norte
de resto, implorei aos deuses uma morada branca
onde nenhum peixe chegasse antes do alvorocer
onde nenhum nome coubesse, onde nenhum olhar entrasse
implorei aos deuses o seu encantamento
não o seu dó. foi então que, das paixões, das mais pequenas
surgiram os teus olhos tão verdes e tão brancos
que só eu neles poderia poisar como um pescador
sem mar onde navegar ou lavar o rosto.

Autor : Francisco José Viegas
Imagem : Saúl Landell

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

..

 

A melhor impressão que a poesia nos pode dar é esta: ficar de coração vagabundo, deixando a vareja estalar na janela as asas grossas, e não dar por isso, como um cão surdo.

Autor : Agustina Bessa-Luís
Imagem : Ruslan Bolgov

terça-feira, 21 de setembro de 2021

...

 hoje tive um sonho
que não era meu

(talvez seja teu).

que queres que faça com ele?

talvez deixá-lo
pousado no travesseiro
a adornar-te o rosto
num beijo como o primeiro.

Autor : LuísM Castanheira
https://barcaarmada.blogspot.com/
Imagem : Monika Luniak

domingo, 19 de setembro de 2021

Perseguição

Olhei-a
E estremeci
Ignorei-a

Mas ela segue-me
Dançando como uma bailarina
Que me enlaça cândida

Não a oiço
Mas intimidada
Paro e enfrento-a

Afinal não é nada, neste trilho
É noite cerrada e constato
É apenas a minha sombra na calçada

Autor : BeatriceM 19-09-2021
Imagem : Neil Kryszak

sábado, 18 de setembro de 2021

pensar é uma palavra


pensar é uma palavra
primogénita
onde o ardor decanta das insígnias
os íntimos sinais
e o olhar é um silêncio enorme
e rumoroso

o delicado musgo
da memória
é a matéria-prima
do teu rosto

Autor : Carlos Nogueira Fino
Imagem :Jenna Martin

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Epitáfio


Na véspera de minha morte
naufraguei nas
abissais ondas do Letes.

Subornei oráculos para saber meu fim,
mas os vates discretos
resistiram,
assediaram-me com seu séquito
de sacerdotisas sensuais.

Eles sabiam da minha fadiga
e trouxeram asas,
como as de Ícaro.

Foi assim que caí feliz
no abismo.

Autor : Solange Firmino(No livro “Geometria do abismo)
Imagem : Mariesol Fummy

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

As manhãs


 

Das manhãs
apenas levarei a tua voz
Despovoada


Sem promessas
sem barcos
E sem casas

Não levarei o orvalho das ameias
Não levarei o pulso das ramadas

Da tua voz
levarei os sítios das mimosas
Apenas os sítios das mimosas

As pedras
As nuvens
O teu canto

Levarei manhãs
E madrugadas

Autor : Daniel Faria

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Olores

Os lábios da manhã trouxeram o teu beijo alvo,
Como alvas são as pétalas das rosas
Que caem sobre mim, todas as noites.
Levam-me a ti, no olor do silêncio
Onde escrevo das formas, o teu corpo
do toque, as tuas mãos.
Sou-te íntima, nestes cândidos recantos
Respiro-te nas rosas brancas que adornam o meu sonho
Visto-me do teu sorriso, nos lençóis vagos do tempo
Ilumino a minha nudez com o brilho dos teus olhos…

Autor : Cecília Vilas Boas
Imagem : Lara Zankoul

terça-feira, 14 de setembro de 2021

eu queria entender


eu queria entender essa sua dor, queria que fosse possível que você olhasse a si mesma com os mesmos olhos que os meus, para que só por alguns instantes percebesse o quão maravilhosa é a sua existência. mas eu não sabia ao certo o que dizer. gostaria de poder me sentar ao seu lado, então, a gente ficaria em silêncio. acho que por hoje o silêncio nos bastaria. pois realmente não sei o que dizer, é tudo mais complexo do que meus pensamentos conseguem imaginar. enfim, eu só queria que você percebesse que apesar de tudo, que apesar de todo o caos, eu estava ali, por/pra você.

@kaiobrunodias
Imagem : Lara Zankoul

domingo, 12 de setembro de 2021

Enigma

Não sei se és vulcão em erupção
ou um véu de lava
que escorre pela montanha
num aglomerado de contradição
onde se desatam todas as impurezas
que trazemos em nós.

Não sei, ou finjo que não sei
também não interessa
apenas fica, para sempre
a ilusão de ser uma fracção que
eu arquivo recatadamente em mim
e nas minhas memórias.

Autor : BeatriceM 2021-09-05
Imagem : Kyle Thompson

sábado, 11 de setembro de 2021

És linda

 

És linda. E nem sabes quantos pedaços de beleza tive de juntar para chegar a esta conclusão. Para te construir, tive de misturar a conspiração das searas com a tristeza do choupo, a inquietação da cotovia com o cheiro lavado do vento do ocidente. E a firmeza repartida dos livros, com a alegria explosiva dos miosótis e a luz escura das violetas. Juntei depois um pouco de ansiedade das estrelas, a paciência das casas à beira da falésia, a espuma da terra, o respirar do sul, as perguntas de gesso que se fazem à lua. Acrescentei-lhe a canção das margens e pequenos pedaços da angústia do olhar. Não esqueci a intimidade do frio nem a dor branca que habita o coração dos muros. Por fim, deitei na tua pele o sono dos alperces, aos teus músculos prometi a violência das cascatas, no teu sexo acordei a memória do universo.
A tua beleza está no meu desejo, nos meus olhos, na minha desigual maneira de te amar. És linda, repito. Mas tenta não encarar o que te digo como um elogio.

Autor : Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'
Imagem : Xénia Lau

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Não era a minha alma que queria ter


 
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimentoe de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma altura nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!

Autor : Irene Lisboa
Imagem : Aykeit Aydogdu

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

quando eu morrer

Quando eu morrer
não me dêem rosas
mas ventos.

Quero as ânsias do mar
quero beber a espuma branca
duma onda a quebrar
e vogar.

Ah, a rosa dos ventos
a correrem na ponta dos meus dedos
a correrem, a correrem sem parar.
Onda sobre onda infinita como o mar
como o mar inquieto
num jeito
de nunca mais parar.

Por isso eu quero o mar.
Morrer, ficar quieto,
não.
Oh, sentir sempre no peito
o tumulto do mundo
da vida e de mim.

E eu e o mundo.
E a vida. Oh mar,
o meu coração
fica para ti.
Para ter a ilusão
de nunca mais parar.

Autor : Alexandre Dáskalos
Imagem : David Baron

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Janela

 

Dias depois, ainda na cama,
não conseguia escolher a melhor saída,
que chão frio podia suportar os meus pés.
O peso das tuas costas, que estavam só
do outro lado, desceu até se somar
ao meu próprio peso sobre os meus pés descalços -
e eu sem saber a que parte da casa podia ligá-los.

Uma janela surpreendente, esquadria perfeita
agora à minha direita
e ar que entrou: talvez pudéssemos
de facto ser respiráveis.

A amanhecer ao longe um azul lento e claro.
Demasiado mais claro
em muito pouco tempo,
atrás da escola, não chegaria a cegar ninguém:
as nuvens mais leves, como os pesadelos,
resgataram antes as possíveis vítimas,
inocentes não declarados que circulam sem saberem
da sua condição ou destino.

Autor: Margarida Ferra
Imagem : Omar Ortiz

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Todos sabemos acender um fósforo

 

Todos sabemos acender um fósforo
a quem nos pede lume.

Talvez fosse uma conversa
possível até ao fim. Mas o mais vulgar
é ficarmos onde estamos
com o fósforo aceso à beira do rosto

— e antes de haver tempo
a chama queima os dedos.

Autor : Carlos Poças Falcão

domingo, 5 de setembro de 2021

Fim de tarde


Deixo-me acorrentar, neste fim de tarde,
a um fio ténue de esperança,
preso aos limites que impus,
nesta minha mania,
de esboçar horizontes.

A tarde encanta-me,
com as suas performances,
e eu insisto qual timoneiro,
sem experiência,
a conduzir este barco coberto de luz,
num mar que não conheço.
.
Autor : BeatriceM 31-08-2014
Imagem : Hornyik Zoltán

sábado, 4 de setembro de 2021

Melancolia

Como se morre diante de uma palavra? Tantas que passaram pelos meus dedos – cardumes, nuvens, revoada de pombos. Areia. Já foram os calções e as sandálias da minha infância. Eu sei: trago-te hoje tão pouco! Mas é impenetrável a neblina dos montes no coração de um homem. O poema nem sempre é o deserto que fulgura diante dos olhos, a tarde de oiro que se levanta em Setembro sobre o cântico da tribo. Às vezes é esta palavra frágil e cansada entre outras palavras e que cega voa em direcção às dunas onde a noite se cala, de tão triste, no fim desta viagem pelo dia.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
Imagem : Ron Gess

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Motivo

Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.

Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.

O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.

Autor : Glória de Sant'Anna In Amaranto

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Sai de Casa

 

Rasga este poema depois de o leres
E depois espalha os bocados
Pelo vasto mundo
Ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,
Atira-o ao mar, deita-o ao lixo,
Para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,
Acabar com ele de vez.
Passado um dia,
Sai de casa e procura
Encontrá-lo de novo.

Autor : Manuel Resende
Imagem : Brian Oldham

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

O Avesso dos Olhos

 


A Luís Miguel Nava in memoriam

A janela da noite abre-se aos sonhos
com desejos de manhã e não de morte.
Um poema traz consigo um colar de vieiras
como nas lendas nocturnas.
O poeta entra no espelho
como quem entra em si.
Estagna, retrocede, chora
e abriga-se dos temores.
Emudece e pousa na moldura
o que lhe sobrou do adolescente rosto.
O caos corre como água
no avesso dos seus olhos.
As aves que lhe saem pelo coração.

Autor Lília Tavares
Imagem : Brian Oldham