quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O Pecado da Gula

paolo barzman
Ontem à tarde saí.
Queria passear as lembranças
que um dia de chuva faz crescer em nós.
Há dias que o vento rondava a casa
cheio de segredos incompletos
a roçar-me a orelha. E eu não resisto
ao sabor do vento
e a uma boa história para enganar o frio.

É fácil perdermo-nos nas ruas.
Nunca se regressa pelos mesmos caminhos
mas todos parecem iguais
com o cheiro da chuva a deixar o alcatrão
e a subir na memória
de outras ruas.
Mas há só um caminho que trilhamos. O corpo
é uma bússola fiel que segue pela estrada
enquanto o pó se levanta
muito para além dos nossos passos.

Autor : Rosa Alice Branco
in'Animal Volátil'

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Como se Morre de Velhice

Ionut Caras

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Autor : Cecília Meireles
in 'Poemas (1957)'


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Labirinto

By Trini Schultz


Perco-me em mim
labirinto sem fim.
Nada o que parece
foi ou é.
Onde estarão as memórias
fieis às origens?
O Tempo adulterou-as!
Hoje estão sublimadas
mudadas, momento a momento.
Até... ao esquecimento.
.
Autor:LuisM Castanheira
https://poesiaaremar.blogspot.pt/

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Não deixeis um grande amor

Ionut Caras

Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa

assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava

assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor

chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro

não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha

não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidencias negava

por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo

Autor : José Tolentino Mendonça
in 'Longe não Sabia'

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Elegia em Chamas

Tommy Ingberg

Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:

Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.

Autor : Carlos de Oliveira
in 'Terra de Harmonia'

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pessoas Estranhas

Rachel Baran
As pessoas são estranhas. Algumas pessoas são. Elas serão conduzidas a descobrir coisas, mesmo que as mais triviais. Eles começarão a relacioná-las, sabendo contudo que podem estar enganadas. Você vê essas pessoas com blocos de notas, a raspar a sujidade das lápides, a lerem microfilmes, apenas pela esperança de encontrarem o fio à meada, fazendo ligações, resgatando qualquer coisa do lixo. 

Autor : Alice Munro, entrevista

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Leonard Cohen

21 de setembro de 1934, 
10 de novembro de 2016,

A neve cai. Há uma mulher nua no meu quarto. Os olhos pousados na carpete cor de vinho. Tem dezoito anos. E os seus cabelos são lisos. Não fala o idioma de Montreal. Não se quer sentar. Não parece ter a pele arrepiada. Ficamos os dois a ouvir a tempestade.
Autor : Leonard Cohen

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Amei-te sem Saberes



No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos nocturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio


Autor : Mia Couto
in 'Raiz de Orvalho'

domingo, 6 de novembro de 2016

Apetece-me parar

Ionut Caras

Apetece-me parar, já não me apetece escrever
Escrever-te
Não me motiva e o pensamento é levado
Apenas no vento
E no momento
Tenho medo
Medo
Muito medo
De que tu desapareças numa nuvem

E nunca mais te possa escrever
Mas!
Será que parar
Limitará a minha sede
De ti?
Não sei
Nem me parece
Que seja solução
Nem para mim
Nem para nós

Autor : BeatriceMar

sábado, 5 de novembro de 2016

Tenho fome da tua boca

Trini Schutz

Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.

Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratue.

Autor : Pablo Neruda
in "Cem Sonetos de Amor"

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De que são feitos os dias?

Cole Risi
De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...

Autor : Cecília Meireles
in 'Canções'

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Soneto do Amor e da Morte

Ionut Caras

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.

quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.

Autor:-Vasco Graça Moura
in Antologia dos Sessenta Anos(ed. Asa, 2002)

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

No meu olhar

Kylli Sparre
No meu olhar, voam pássaros inventados
Contos lendários, de príncipes e princesas
Centelhas de ventos sobranceiros
Violetas que perfumam o meu travesseiro.

Vejo névoas que encobrem castelos
Manhãs de bruma em dias soalheiros
Ondas oceânicas, que rebentam nas estrelas
Tudo cabe ali, na fantasia do meu olhar...

Nos meus sonhos perco-me em melancolia
Ainda lembro as brisas aladas do fim da tarde
E as as magnólias do meu jardim...
Onde estão as magnólias do meu jardim?!

Autor : Cecília Vilas Boas
in o Eco do Silêncio (Esfera do Caos,2012

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Para Ser Lido Mais Tarde

Saul Landell

Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantar

quando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quando

já não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveres

quando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalho

para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara


Autor : Mário Dionísio
 in 'O Silêncio Voluntário'