quarta-feira, 30 de junho de 2021

Quase desisiti



Quase desisti
De germinar

Na infância
Do meu corpo
Intocado
Quase me esqueci
De florescer

... Quase não fui...

... Quase não quis...

Mas eis que em mim
Caiu
A água dos teus olhos

E na ressonância do teu nome
Me refiz

Autor:Virginia do Carmo
imagem : Jovana Rikalo

terça-feira, 29 de junho de 2021

Aventura

No longe,
a dimensão
da tentação
era a tortura.

E o sonho
voou, menino...
Era o destino
ganhando altura!

Autor :José Augusto de Carvalho 
In Do Mar e de Nós

domingo, 27 de junho de 2021

Canto



Hoje reinventei-me numa palavra que nasceu nos teus lábios, palavra segredo, que me emprestou, aromas e essências de palavra-poema, que me queria dizer, palavra-sorriso, manhãs plenas de mistérios.

Reinventei-me numa canção que ainda nem escrevi a letra.

Sei-me apenas canção-poema-palavras e canto!

Canto!

Autor - BeatriceM 24-06-2012
Imagem :Dimitra Milan

sábado, 26 de junho de 2021

Porque Nasci

 

sou poeta porque nasci só no orvalho das manhãs
e descobri nas palavras que explorei no silêncio
a explicação das coisas a razão da brancura
a vontade inexplicável de estar aqui
onde caí com as mãos presas e os olhos vendados
o corpo negro e nu descoberto ao longo dos montes.
sou poeta. gritei-o longe com a força da minha voz
e as valas fecharam-se e deixaram-me passar.
mantos azuis ventos fortes mares estranhos
céus límpidos tomaram conta de mim. sou poeta.
nasci só, no orvalho das manhãs, protegido
por flores
por bombas, por maldições e o meu corpo é uma haste
ou harpa ou arma, pedaço de pão, fogo, fome ou lanterna
brinquedo rodando nas mãos de jugos. sou poeta.
dêem-me o vosso arado. deixai-me cultivar vossas terras
áridas, vossos desertos secos. deixai-me soçobrar
nos vossos barcos náufragos. deixai-me criar epitáfios
fogueiras, lendas. deixai-me com os vossos filhos vagando pelas
montanhas, pela lã das ovelhas. pelas
ventanias. deixai-me construir um ruído mudo de silêncio
uma voz calada, mais vibrante que esta branda fala
para dizer-vos um poema sou poeta nasci rosa
no orvalho transparente das manhãs.

 Autor :José António Gonçalves
Imagem: Victor Bauer 
(in «Vinte Textos Para Falar de Mim», Col. Cadernos Ilha, Nº. 1, 1988)

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Conclusão


Fui amante da morte
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres.

Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.

Autor  : Isabel de Sá in “Repetir o Poema”, 
Imagem : Magdalena Russocka

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Perdi-me por amor

Perdi-me por amor,
fui aquele que procurava a casa do coração e
a luz, mas agora,
prisioneiro da bruma, junto ao altar,
penso
nas manhãs em que voava para longe,
ao lado dos irmãos.

Penso em quase todas as flores que vi nos
canteiros do céu,
penso nas mãos que estendiam as formas do
centeio e do trigo
para a minha boca.

E os meus olhos que viram os deslumbrantes
cristais do mundo
baixaram as suas pálpebras sobre a noite da
terra,
sobre os sepulcros abertos.

Não sei onde sepultarão os meus ossos,
onde soltarão ao vento as minhas cinzas.
Sei apenas que perdurarei no murmúrio dos
teus lábios
e nas pedras onde me sentei e chorei.

Pouco tempo me resta para contar aos filhos
que não tive
o fulminante desejo das viagens.
E hoje,
entre estas quatro paredes de cal mutilada,
quando chove por dentro, para sempre,
só te posso dizer adeus.

Autor : José Agostinho Baptista
In: Esta voz é quase o vento
Imagem : Moritz Aust

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Insónia


a boca escancarada da noite
os urros do silêncio
as teclas mudas

não tilintam os cristais
não estilhaçam a vidraça
os amantes não sussurram
não há sinos de igreja
o mundo acabou
o relógio dorme
o tempo não passa

onde estão os latidos
os galos os gritos
os olhos do sol?

na cama imensa
o corpo exausto
o vazio da tua ausência
e os mil anos dessa noite
que me engole
que me vomita

Autor : Líria Porto
Imagem : Monika Lumiak

terça-feira, 22 de junho de 2021

...

É preciso arrancar as árvores,
impedir que a noite suba,
descalça, pelos seus ramos.
É preciso, e já.
Antes que a sombra se farte
e nos vomite nos olhos.

Autor : Albano Martins
Imagem : Viktoria Haack

domingo, 20 de junho de 2021

A lágrima

 


A lágrima que viste
não era lágrima
foi um erro de óptica.

Esquece
foi um cisco trazido
pelo vento.

Ou quiçá
apenas um acidente de percurso
que por vezes acontece.


(nunca me irás ver chorar.
jamais!)


Autor : BeatriceM 2021-06-19
Imagem : Marta Bevacqua

sábado, 19 de junho de 2021

A Demora

 


O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.

Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.

Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Autor : Mia Couto, in " idades cidades divindades
Imagem : Kristina Makeeva

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Em todos os jardins

 

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Autor : Sophia de Mello Breyner
Imagem : Kindra Nikole

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Agora não te escrevo


Agora, não te escrevo nada.
Fecho todas as páginas deste livro onde
não voltarás.
Fecho todas as cancelas que um dia abriste,
numa estação de palavras ternas.

Agora, não te abro a porta deste quarto com
jarras sem água,
com alucinantes paredes sem luz.

Digo apenas que ainda conheço os teus passos,
o teu vulto que empalidece sobre as quatro luas,
digo ao ver os anéis de âmbar e
prata
é como se nos teus dedos sem febre tudo se
parecesse ao terror das águias aprisionadas.

Não cantas,
não moves os lábios,
não me falas junto às fontes,
não te ergues como o sol que ainda bate
neste rosto inclinado, pouco a pouco mais
triste, a olhar para longe.
A alma, oh,
a alma vive na floresta branca, ao lado do anjo.

Emudeceste,
E no teu silêncio de pedra emudeceram as
paisagens do céu.
Nunca mais foi Verão.

Ainda me lembro dos cães que nunca vias
e não tinham nome,
e eram como se pensassem, como se amassem,
e, por amor perdidos,
procurassem as algas que secavam.

Assim é a minha vida.
Hoje, só os desertos me conhecem. Nada mais.

Autor : José Agostinho Baptista
In Esta voz é quase o vento

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Despertar

 

 

É preciso transgredir a distração da flor em gestação,
tocá-la infinitamente,
sorver-lhe o perfume,
soprar a gota de orvalho pousada em cada cor,
inventar um arco-íris
pelas arestas do vento,
abrir caminhos para a primavera.

A sombra se faz luz,
o inverno se desfolha.
Como se existisse um tempo das estações,
a primavera dá sinais,
despida das névoas,
como se fosse a primeira vez.

Autor : Solange Firmino

terça-feira, 15 de junho de 2021

Para ti


Para ti sou segredo,
que esteve:
em muitos sonhos,
em muitos braços,
em muitos corações.

Sou
Ilusão,
Utopia,
Miragem,
que viaja em tempos
eternos
de eternos amores,
de variado sabor
que partem a alma
e sustentam a dor.

Sou
o suspiro
que te devolve
a esperança,
quando te sentes
perdida e de alma
dilacerada.
….
Mas tu,
para mim,
és muito mais.
És tudo,
pois sem ti,
não sou nada.

Autor : Silvestre Raposo
Imagem : Andre Kohn

domingo, 13 de junho de 2021

Contradição

Muitas vezes desejou que ele fosse o outro,
o outro que sulcava as ondas do mar,
em cima de uma prancha de surf,
com o sol a escorrer por entre os dedos esguios.

Muitas vezes te beijou com os olhos fechados,
pensando que beijava o outro,
o outro que lhe sabia encaminhar beijos,
com o olhar cor de avelã,
não com a boca.

Muitas vezes olhava os teus olhos,
e via os olhos do outro,
que lhe sabia sorrir com o olhar,
estático no seu, disfarçadamente.

Muitas vezes desejou que fosses o outro,
e tantas, tantas vezes, desejou,
que o outro fosses tu,
e que tu fosses o outro.

Autor : BeatriceM 2021-06-13
Imagem: Sarah Fecteau

sábado, 12 de junho de 2021

Diplomacia



Evite vocabulário
truculento

seja doce
cordial

a melhor arma
contra o inimigo
é a educação.

Autor : Rui Esteves

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Um dia quando eu morrer

  


Um dia quando eu morrer
isto é um dia quando eu estiver debaixo da terra
não quero que me vão levar flores
mas que as vão lá buscar
Gostava que por cima da minha cova não pusessem
laje nenhuma
só terra por mim estrumada
e aí plantassem as flores que amei em vida
açucenas rosas Palminhas de Santa Teresa (ditas Frésias)
ervilhas-de-cheiro goivos cravos jasmins
tudo flores com perfume
que é a alma das plantas
Sempre gostei mais de dar do que de receber
por isso ficarei feliz se forem à minha beira
buscar flores
os que me quiserem bem
Que as levem para casa e as ponham numa jarrinha com água
à cabeceira ou em cima da mesa de escrever
ou de comer
onde possam sentir minha presença viva
e trocar comigo olhares e sorrisos
e quem sabe talvez palavras
essas as mais importantes que em vida
nos não soubemos dizer

Autor : Teresa Rita Lopes

quinta-feira, 10 de junho de 2021

se

se partisses este verão
deixando desabitado
quem à tua semelhança
interior se construiu

por que poros respiraria ainda
tua pele de granito
por que artérias
se conduziria o sangue antigo
até ao cerne deste coração
de ameias e vento coroado?

aqui me tens portanto e como tu
também estou cercado
de silêncio de memórias

e de incêndios...

Autor : António Gil
Foto :Parvana 

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Sala Provisória

    

Nunca se sabe
quando estamos num lugar
pela última vez. Numa casa
que vai ser demolida, numa sala
provisória que vai encerrar, num velho
café que mudará de ramo, como
página virada jamais reaberta, como
canção demasiado gasta, como
abraço tornado irrepetível, numa
porta a que não voltaremos.

Autor :Inês Lourenço 
Imagem : Magdalena Russocka 

terça-feira, 8 de junho de 2021

O Livro Fechado



Quebrada a vara, fechei o livro
e não será por incúria ou descuido
que algumas páginas se reabram
e os mesmos fantasmas me visitem.
Fechei o livro, Senhor, fechei-o,

mas os mortos e a sua memória,
os vivos e sua presença podem mais
que o álcool de todos os esquecimentos.
Abjurado, recusei-o e cumpro,
na gangrena do corpo que me coube,

em lugar que lhe não compete,
o dia a dia de um destino tolerado.
Na raça de estranhos em que mudei,
é entre estranhos da mesma raça
que, dissimulado e obediente, o sofro.

Aventureiro, ou não, servidor apenas
de qualquer missão remota ao sol poente,
em amanuense me tornei do horizonte
severo e restrito que me não pertence,
lavrador vergado sobre solo alheio

onde não cai, nem vinga, desmobilizada,
a sombra elíptica do guerreiro.
Fechei o livro, calei todas as vozes,
contas de longe cobradas em nada.
Fale, somente, o silêncio que lhes sucede.

Autor : Rui Knopfli, in "O Corpo de Atena"

domingo, 6 de junho de 2021

outros tempos


outros tempos - nasceram
sem mágoas
apenas memórias ficaram
na retina dos meus olhos
e nas minhas mãos
por vezes ainda acaricio
os teu corpo de querubim
e ainda navego no mar
dos teus olhos
e
no veludo dos teus cabelos
ainda sei - de mim
mas já nada sei de nós.
.
Autor:BeatriceM 03-04-2011
Imagem : Jovana Rikalo

sábado, 5 de junho de 2021

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

 

Tenho uma praia branca
de areia doce
na cabeça.
Raramente me esqueço
do mar e acordo sempre
com um cavalo amarelo correndo
sobre as ondas mansas
em direcção ao infinito
com um peixe preso na boca.
Nesses dias deito-me e imagino
montanhas à distância dos horizontes
vestidas com os verdes dos quotidianos
e as flores dos altares
e depois recolho-me ao sal
das bibliotecas fechadas.

Autor : José António Gonçalves
(in «Aventura na Casa dos Livros», Col. Cadernos Ilha, Nº. 10, 2000)

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Fio de Olhar

E aquele olhar seguiu-me.
Era curto o caminho, um corredor, uma porta.
Olhar curioso.
Vale uma parábola?
Uma mulher andando, um homem olhando.
Mais nada?
Mais nada.

E lá ficou o corredor e a porta.
E a mulher...
Sou eu.
Não valia mais que um olhar, embora curioso e
gracioso.
O homem...
Lá está, estará, interrogativo a olhar uma e outra
que passam.

Aquele olhar, aquele olhar!
Queria-o... como uma coisa que se agarra e que
se possui.
Mas para quê e como?
Fio de olhar, pura curiosidade.
Não é disparate lembrá-lo e tê-lo até notado?
.
 Autor : Irene Lisboa Volume I, Poesia I: um dia e outro dia.../ outono havias de vir. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p 304 (Organização: Profª Paula Morão).
Imagem : Xénia Lau

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Companheira


Deixei pousar minha boca em tua fronte
toquei-te a pele como se fosses harpa
escorreguei em teu ventre como o vento
e atravessei-te em mim como se fosse farpa

Deixei crescer uma vontade devagar
deixei crescer no peito um infinito
morri da morte lenta do desejo
e em cada beijo abafei um grito

Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira

Inventei mil paisagens no teu peito
rebentei de loucura e fantasia
quando me olhavas devagar com esse jeito
e eu descobri tanta coisa que não vias

Havia em ti uma forma grande de incerteza
que conseguias converter em alegria
havia em ti um mar salgado de beleza
que me faz sentir saudades em cada dia

Quando desfolho o livro velho da memória
sinto que o tempo passado à tua beira
é um espaço bom que há na minha história
e foi bonito ter dito companheira

Autor : Pedro Barroso

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Refracção

 

A manhã abriu
sobre o mar
uma nesga de céu ferido.

Alguém nele verteu
o sinal cor de sangue dum poder
que fala
do desgosto de Deus
ou da sua imponderável nostalgia.

Que sinal de dores
ou de amores
acendeu o vermelho
neste dia ?

Autor :Irene Lucília Andrade

terça-feira, 1 de junho de 2021

Poemas do Dia Mundial da Criança



Depus a máscara e vi-me ao espelho.
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.

Autor : Álvaro de Campos