sábado, 30 de novembro de 2024

Eterno Outono

by Artem Rhads Cheboha

Estou com a idade pousada nas mãos.
Explico-me com dedicação aos berços fundos
onde cada coisa dorme o seu medo de morrer.

Há na tristeza um perigo de terminar:
o eterno outono parece belo
a quem perdeu todas as sementes.

Pergunta-se um nome e ninguém responde.
Onde fica essa ilha a que só chegamos por naufrágio?

Autor : Vasco Gato
in "IMO"/ Edições Quasi)

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Não me perguntes nada!


Não me perguntes nada...
Não quero que saibas...
Das lágrimas e dos gritos
Sufocados que na noite lancei
Perdida sem ti.
De outros braços que me envolveram
Quando desesperada desisti.
Do teu nome sussurrado por engano
Rasgando cruelmente o momento
Em que outro sorri.

Não me perguntes nada…
Não quero que saibas...
Agora que estás aqui
Só existe o presente
Porque amanhã...
Amanhã
Vou viver o que já vivi!

Autor Maria Sousa

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Eu sei, não te conheço, mas existes


Eu sei, não te conheço, mas existes.
Por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas nada, deixa-me inventar-te.
Não é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos sobre a tua
nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
Tenho feito amor de muitas maneiras
docemente,
lentamente,
desesperadamente,
à tua procura, sempre à tua procura
até me dar conta que estás em mim, que é em mim que devo
procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti
que eu amo.

Autor : Joaquim Pessoa
125 Poemas Litexa Editora, 1990
Foto: Cristina Coral

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Escreve-me muitas vezes


Escreve-me muitas vezes
como os percursos ininterruptos das formigas
o ritmo dos girassóis devolvidos à condição de flor
e o reflexo das nuvens no lado interior dos rios
guardados nas minhas mãos

Escreve-me tantas vezes
quantos os nocturnos quase-vazios entre as estrelas
os quebrantos de mar aos pés prateados da lua
e as intuições anunciadas na respiração dos dedos dos amantes

Nunca deixes de me escrever
como se o tempo das palavras fosse o dos regressos

confirmado na existência e docilidade das pedras

Nunca deixes de me sentir

Autor : Sandra Costa
Imagem : Pinterest

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Revolta

 


Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só.

Não trouxe mensagem
e nem deram senha…

Disseram-se que não iria perder nada,
porque não há mais céu.

E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora…

Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha pátria é a minha memória.

Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória…

Autor :João Guimarães Rosa
In “Magma”
Imagem:Martin Stranka

domingo, 24 de novembro de 2024

Chove


Chove neste recanto
De mundo
Onde estou

Olho a chuva
Que cai furiosamente
Sobre a terra seca

E fico magnetizada
A olhar e respirar serenamente
Este aroma de terra molhada

Autor : BeatriceM 2024-11-23
Imagem : TJ Drysdale

sábado, 23 de novembro de 2024

Ausência


Boyana Petkova


Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Autor : Daniel Faria
in "Oxálida"

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Eu te prometo

Liu Yuanshou


Eu te prometo meu corpo vivo
Eu te prometo minha centelha
minha candura meu paraíso
minha loucura meu mel de abelha
eu te prometo meu corpo vivo

Eu te prometo meu corpo branco
meu corpo brando meu corpo louco
minha inventiva meu grito rouco
tudo o que é muito tudo o que é pouco
meu corpo casto meu corpo santo

Eu te prometo meu corpo lasso
mar de aventura mar de sargaço
vaga de náufrago onda de espanto
orla de espuma do meu cansaço
eu te prometo meu doce pranto

Eu te prometo todo o meu corpo
ardendo eterno na nossa cama
como um abraço como um conforto

P´ra que me lembres além da chama
eu te prometo meu corpo morto

Autor : Rosa Lobato de Faria,
In a noite inteira já não chega

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

E nisso haver. E nisso persistir.

Frederico Erra

E nisso haver. E nisso persistir.
Pensar perder-me em nada diluído
pela bola de neve que me desses
instantânea mas branca. Conseguir
amores de bruma e de estampido
num espaço que não sei e onde teces
a tua tempestade.

Correr a mão
pelo corpo que tens em tempos quedos,
deixá-la ir pelos agostos fartos
pelas horas de ceifas e de verão.
Deixar que a tua pele me guie os dedos
para chegar aos olhos e fechar-tos.

Autor : Pedro Tamen

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Neste outono




Neste Outono, as pedras agasalham-se no no cobertor,
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.
.
Autor :Maria do Rosário Pedreira
Foto:Introit

terça-feira, 19 de novembro de 2024

As cidades Invisíveis


É o início das chuvas, o amor.

Encontramo-nos de acesos lábios,
mãos feridas de ruína,
e tremente solidão.

Passam fantasmas travestidos
de gente, – sombras, ilhas,
um breve par adolescente.

E todo o tempo é feito de cinza,
Outubro de um só dia
no céu da nossa vida.

São invisíveis, as cidades,
e até o anjo na hora de ponta
guarda seus olhos de nós:

Ninguém sabe, meu amor,
que só teu nome é uma ave
no final da minha voz.

Autor :João de Mancelos
In O Labor das Marés, Aveiro, Estante Editora, 1994.
Imagem : Saul Leiter

domingo, 17 de novembro de 2024

Naquele outro tempo

Eu não sabia
Que tudo tem um preço
Tudo se vende
Tudo se troca e tudo se perde um dia

Naquele outro tempo.

Hoje, neste outro tempo
Tudo deixou de ter preço
Nada se troca
Nada se vende

Tudo é demasiado fútil.


Autor : BeatriceM 2024-11-16
Imagem : Natália Drepina

sábado, 16 de novembro de 2024

Ergo uma Rosa


Ergo uma rosa, e tudo se ilumina
Como a lua não faz nem o sol pode:
Cobra de luz ardente e enroscada
Ou ventos de cabelos que sacode.
Ergo uma rosa, e grito a quantas aves
O céu pontua de ninhos e de cantos,
Bato no chão a ordem que decide
A união dos demos e dos santos.
Ergo uma rosa, um corpo e um destino
Contra o frio da noite que se atreve,
E da seiva da rosa e do meu sangue
Construo perenidade em vida breve.
Ergo uma rosa, e deixo, e abandono
Quanto me dói de mágoas e assombros.
Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida
Neste cantar das aves nos meus ombros.

Autor : José Saramago
Imagem :Pinterest

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Alegria



De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura...

De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...

De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.

Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.


Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
um vício.

Alegria!
Alegria!

Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Autor : Fernanda de Castro

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Silêncio



Cerca-te como a sombra
de coisas
em forma,
livro fechado
entre o vago pó
do tempo.

Carrega nos braços
a voz da água
e um breve fio
de lume.

Desfolha-se.
Não é outono,
mas traz nos pulsos
a música dos frutos.

E dói
como uma ferida aberta
nos olhos
da melancolia.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto
 Cântico Sobre Uma Gota de Água
Imagem : Anna Heimkreiter

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Ruído

 


A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.

Isabel Allende

terça-feira, 12 de novembro de 2024

Regresso

Há muito que parti.
Abandonei as searas onde nunca vi os
desígnios de deus.
Abandonei a fé.
Caminhei sem destino,
procurei a árvores secreta dos irmãos,
e, com saudade e desvario, abandonei as casas.

Escondi-me.
Escondi o último verso numa noite sem fim.
E hoje escrevo para ti que às vezes me escreves,
do outro lado das terras.
Conhecerei um dia as falésias onde o garajau
paira,
quando chegar, pelas madrugada,
às portas do teu sonho?

De pé, sobre o promontório,
olhas para longe, para os meus barcos que
naufragaram.

Autor : José Agostinho Baptista
quatro luas
Imagem : Jerome Berbigier

domingo, 10 de novembro de 2024

Partidas imprevistas



Um dia, tudo deixará de existir
Nem recordações existirá
Nem sons, nem júbilo
Apenas vacuidade e tudo
Se transformará em pó e apenas pó

Autor : BeatriceM 2024-11-09
Imagem : Michelle Ellis

sábado, 9 de novembro de 2024

Aniversário

Salva-me agora, não desta morte ou de outra
mas de ir vivendo assim seguramente
sem música nem arte, e com o amigo ausente.

No escuro ainda levantei-me e vi
a antiga madrugada que nascia
leve e primeira com a luz macia.

E quem me ouvia, se não os mortos mansos
e generosos sob a lousa fria?
É certo que sonhei que me deixavas
amar e ser amado, como quem
sem mérito nem rosto me fizeste;
mas era de cantor que me mandavas
às portas da cidade ver arder o dia.
  
Autor : António Franco Alexandre
Imagem:Laura Zalenga

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Afirmação

Mara Light
A essência das coisas é senti-las 
tão densas e tão claras, 
que não possam conter-se por completo 
nas palavras. 

A essência das coisas é nutri-las 
tão de alegria e mágoa, 
que o silêncio se ajuste à sua forma 
sem mais nada. 

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Um Denso Azul Silêncio'

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Cântico da Esperança

Não peça eu nunca
para me ver livre de perigos,
mas coragem para afrontá-los.

Não queira eu
que se apaguem as minhas dores,
mas que saiba dominá-las
no meu coração.

Não procure eu amigos
no campo da batalha da vida,
mas ter forças dentro de mim.

Não deseje eu ansiosamente
ser salvo,
mas ter esperança
para conquistar pacientemente
a minha liberdade.

Não seja eu tão cobarde, Senhor,
que deseje a tua misericórdia
no meu triunfo,
mas apertar a tua mão
no meu fracasso

Autor : Rabindranath Tagore
in "O Coração da Primavera"
Tradução de Manuel Simões
Imagem : Caras Lonut

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Poema ao amigo que perdi

Era uma manhã nutrida quase fúlgida
Quando te visitei no ermo
E te vi com as pedras os braços e as âncoras
Enquanto enunciavas palavras sem eira nem beira
alcalinas e demoradas
Eras todo tu um mundo que já não existe
Um apelo ao terrunho às saudades de enxadas e alguidares
Eras um viajante dos sonos silentes
Eras caligrafia e gestos dissidentes
Eras uma flor sem água com a ampulheta e o passar das horas
Elegi-te o meu maior amigo
O que desvelava a minha espera o meu grito
Eras o refrão do meu cansaço da minha inquietação do meu ser aflito
Eras as consoantes de uma chávena de um pão de um atrito
Quando te partiste de mim
Amareleci e pendi para as cicatrizes de um marejar maldito
Reuni as dálias e os escaravelhos e aí por ora me agito

Autor : Cecília Barreira July 31, 2022
Imagem : Trini Schultz

terça-feira, 5 de novembro de 2024

A noite tem tudo

 

A noite tem tudo
o silêncio nobre
sobre todos os silêncios
uma silhueta breve
que vemos de olhos fechados
o remorso como um punho
dentro da nossa boca
a noite tem tudo.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Michal Zahornacky

domingo, 3 de novembro de 2024

Vidas de Papel

Por momentos, somos apenas marionetas de cores
por vezes berrantes, por vezes suaves, conforme o instante
com cordelinhos a nos manipularem sem clemência nem dores

Autor : BeatriceM 2024-11-02
Imagem : Marcin Łaskarzewski

sábado, 2 de novembro de 2024

Visita



no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo

Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e saiu
soluçando

Autor : Ferreira Gullar
Imagem : Pinterest

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Um Céu e Nada Mais

Um céu e nada mais — que só um temos,
como neste sistema: só um sol.

Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu número tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tão de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.

Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a âncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovão que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caído.

Mas, de verdade: natural fenómeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tão frágil como álcool, tão de
potente e liso como álcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abóbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que não seja esta angústia de
mortais (e a maldição da rima,
já agora, a invadir poema em alto
risco), e a dança no trapézio
proibido, sem rede, deus, ou lei,
nem música de dança, nem sequer
inocência de criança, amor,

nem inocência. Um céu e nada mais.

Autor : Ana Luísa Amaral
 in “Às Vezes o Paraíso”
Imagem : Andrea Peipe