sábado, 3 de novembro de 2018

Retrato

irina mastalyarchuk

Fui só eu que estraguei as alvoradas
- presas suaves nos plúmbeos céus!,
e dei água aos ribeiros da minha alma
e fiz preces de amor e sangue, a Deus...

Fui só eu que, sabendo da tormenta
que o vento da nortada me dizia,
puz meus lábios no sonho incompleto
e rasguei o meu corpo na poesia.

Vieram dar-me abraços e contentes
viram que me afundava sem remédio
- nem um grito subia do horizonte
há mil anos deitado sobre o tédio!

Quando chamaram por mim do imenso rio
que a noite veste para se entreter
vi que os barcos andavam cheios de almas
buscando sonhos para não sofrer.

Cantavam doidas como a dor e a morte
parando, a espaços, para ver montanhas
e eram luzes mordidas pelas sombras,
corajosas, infelizes - mas tamanhas!

Eu fugi de as ouvir (que ardentes vozes...)
de navegar nas mesmas ansiedades
e fui sozinho semear as luas
e a natureza inculta das idades.

Parti, negando à vida o seu direito,
recalcando os meus sonhos e os meus medos...
sei agora que matei o meu destino
e quebrei o futuro nos meus dedos.

Autor : Vasco de Lima Couto, in Os Olhos e o Silêncio - 
1952

1 comentário:

Larissa Santos disse...

Belíssimo poema. Parabéns ao Autor:))

Hoje:- "Sofrendo de saudade". {Poetizando e Encantando}

Bjos
Votos de um óptimo Sábado.