quinta-feira, 22 de julho de 2021

Porto Santo, Verão de 1973


oiço a música forjada e quente do sol e do mar
embravecido, num cântico azul, sem manhãs, nem
pureza, nem casas. os barcos, brancos e vermelhos
brilham e baloiçam, baloiçam e brilham afogados
pela água fria e irritada. as palavras flamejam
e soltam-me gritos amorfanhados enquanto as construo
na areia da praia em chama, onde o mar despeja
a sua ira da cor do céu. a hora, esta hora, é aquela
do beijo, da fervura, da comida, do sono, ou então
a do amor. é um castelo, uma cara, no chão molhado
o tempo. uma mão. cinco dedos num esconderijo profundo
do gesto, do vómito sem cor nem corpo. é o sol e as
formigas, o vento e a música procurando um porto, um
cais, ou um navio, um braço queimado correndo a pele
e o suor do sonho. oiço as vozes, a música, e congemino
um silêncio cavalgando o ruído enquanto o calor cai
nos olhos, devorando a carne e o pensamento. ao meu
pé, algumas crianças jogam lama no meio-dia e procuram
a mãe. encontram-na na água morna do porto, perdida
e embrenhada na alma dum santo sem auréola, primitivo,
no coração dum homem só e húmido, embriagado, dizendo
versos com as rimas colorindo as pálpebras inchadas.
e toda a gente fala, ao mesmo tempo. a tarde desprende-me
o lugar da mão assustada. e ela, solta, é o rosto fornicado
da esperança, a água bebida com sal, bebida com sol, sem
saber a nada. é uma carta, um diário, ou um postal. é o
porto santo moldado na pedra negra, escavada ao alcance
da música e do poema. sem loucura, nem amor.

Autor : José António Gonçalves
(in «Vinte Textos Para Falar de Mim», Col. Cadernos Ilha, Nº. 1, 1988)

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