quarta-feira, 7 de julho de 2021

......


-aprendi nas pequenas gares de província a esperar comboios que não chegavam nunca
(ou chegavam tão atrasados que
no momento em que se avistavam
já eu tinha desistido deles)
e sempre invejei o velho Tolstoi
fugido de casa aos oitenta anos
a deixar-se morrer numa delas
no meio de toda a brancura do mundo

um dia entre Belver e Gavião
(possivelmente nem sabes onde
isso fica)
uma velha pediu-me que lhe segurasse as mãos
porque de repente sentira muito medo de
morrer sozinha
(coisa que nunca deve ter passado pela
cabeça do velho russo
para quem a morte só podia ser um
brando ajuste de contas sem testemunhas)

então entre curvas e desvios contei-lhe
todas as curvas e desvios das minhas vidas
e ela sossegou um pouco e disse que
eu ia ser muito feliz porque sabia
distinguir entre todos o comboio certo

aquele explicou já na saída
que se afasta no exato momento em que
o sol desenha a nossa sombra no olhar de
quem nos deixou

Autor : Alice Vieira
Imagem : Moreira Lopes

1 comentário:

Cidália Ferreira disse...

Um poema e imagem maravilhosa!! :))
Vestida, numa sensualidade vertiginosa
-
Beijos, e um excelente dia ;)