domingo, 1 de novembro de 2020

Memórias


Às vezes a minha mente relembra coisas do passado. Por vezes não sei se foram do meu passado, ou do futuro, porque há certas cenas que não me lembro com exatidão. 


Eu gostava de sentar-me no cais a ver os barcos e a desenhar, quieta sem conversar com ninguém, gostava de estar só com os momentos que me eram sagrados e só meus. 

Mas. Todos os dias ou quase todos, eu cheirava um perfume bom que se esvaia no ar mas que invadia as minhas narinas como um toque de chegada. Era trazido pela presença de um homem. 

Ele era alto, trazia a delicadeza na pele morena, penso de quem apanha muito sol. 

Sentia que me espiava, ou pelo menos me acompanhava, e o seu perfume era a certeza da sua presença, e não uma utopia. 

Cansei-me. Ficava irritada, pela presença que me apoquentava. 

Deixei de ir para o cais, uma ou duas semanas. 

Só que um dia pensei, que era dona dos meus passos e dos meus pensamentos e voltei novamente para os meus momentos de relax. 

Era outono. Um dia com cores de cinza. Quando as narinas detetaram o perfume, fiquei sobressaltada. O perfume era outro, era novo com certeza. Levantei o olhar discretamente e vi-o. Ele aproximou-se de mim. Fiquei em pânico. Falou devagar em português correcto mas com um sotaque que não soube esclarecer. 

-Já não vem cá faz duas semanas, mas ainda bem que veio hoje! Vou embora, e acho que não voltarei, e, queria ver como estava. 

Olhei-o atónita e quase a gaguejar, perguntei que tinha ele a ver com isso. 

Sorriu tristemente e disse: 

-Eu sei que é estranho, mas, eu sempre vinha aqui com a esperança de encontra-la. A minha vida é estranha, vim visitar a minha filha, mas ela desapareceu num acidente no dia em que me foi buscar ao aeroporto. 

E a dor é insuportável.Eu só vinha aqui porque você é fisicamente muito parecida com ela.Era uma maneira de utópica de a rever. Até sempre e seja feliz. 

E em passos largos foi embora, entrando num táxi que o esperava. 

Não tive sequer tempo de dizer algo, fiquei ali parada a olhar o carro que avançava ao longo da estrada. 

Já se passaram tantos anos. Hoje sem querer lembrei-me . 

Autor : BeatriceM 2010-10-31

4 comentários:

brancas nuvens negras disse...

Uma história dolorida.
Boa Noite, descansada.

LuísM Castanheira disse...

Por vezes veem-nos à memória rostos
apagados pelo tempo.
Uma estória muito bem escrita, onde
nem sempre a primeira impressão é a melhor. Por detrás dum perfume havia
um sentimento de magoada recordação.
Muito belo.
Boa semana, B.,e um beijo

sinuosa disse...

Como é que podia tudo ter acontecido de outra maneira?
:)

Mar Arável disse...

Estamos sempre a partir
mas há dias em que nunca mais acabamos de chegar