quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Adeus

Pintura de Ana Paula Lopes


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Autor : Eugénio de Andrade
in “Poesia e Prosa”

Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas foi um poeta português. Tem uma biblioteca com o seu nome no Fundão.

Nascimento : 19 de janeiro de 1923,Fundão
Falecimento: 13 de junho de 2005, Porto
Fonte Wikipédia

2 comentários:

Mar Arável disse...

O nosso Eugénio

Sempre

LuísM Castanheira disse...

Ler aqui Eugénio de Andrade, no poema Adeus, na data do seu nascimento, é a melhor homenagem que poderia ter feito, Beatrice.
É assim, lendo-o, que a sua memória
É perpectuada.
Embora tão triste, este é deveras o poema mais intenso nas palavras que nunca se gastarão.
Abraço.