terça-feira, 3 de novembro de 2020

Félix

Foto Jenna Martim

Félix tinha dezanove anos quando morreu. Era um velho.

Ao entrar, dei com a fotografia dele na mesa dos obituários. Uma nota, escrita com o abalo de quem sofrera uma perda irreparável, sublinhava a sua rara estirpe. Félix tinha sido uma cintilação. Um anjo sem asas.

Caía a noite. Alguns vultos, dispersos na sala, alimentavam sombras esquálidas.

Bob, com as mãos nos bolsos, passeava numa rua imaginada.

Era uma figura grande. Atravessou a imagem com a placidez de um ser que levita num permanente estado de ausência. Não sabia quem era: O seu próprio nome volteava, sem poiso, num rumor perdido no vazio. Tudo o que porventura tinha na cabeça, eventos, pessoas, lugares, datas, parecia confundi-lo numa desordem permanente. Não falava, balbuciava. A sua memória, fragmentada, voava como uma pomba num palácio desabitado.

Cumprimentei-o. Reparou em mim como se eu fosse um dia de chuva.

Félix, o gato, compreendera estas vidas no fim e amara-as. Conhecia-as pelo rumor da solidão e pelo cheiro da melancolia, sentadas em cadeiras de rodas, as mãos repousadas no inútil mecanismo das horas sem propósito. Então, acudia-as com o calor do seu corpo deixando-se afagar, dormindo com elas, saltando-lhes para o colo.

Durante o dia tomava posse de todos os espaços públicos e privados. Estava em casa. Deixava-se afagar pelas mãos mais sequiosas, mais tristes, trémulas e frágeis. O calor do seu corpo simulava um grande e alto dia de Verão.

Até que ficara órfão dos donos. Ele primeiro. Depois ela.

As empregadas questionaram-se. Que fazer de Félix, agora velho, sozinho, o pelo a perder o fulgor de outrora? Dera tudo o que tinha. Não podia ser preterido como algo inútil à mercê de quem, eventualmente, o adoptasse.

Arranjaram-lhe um cantinho na sala. Puseram a cama, o caixote com areia e o prato. Félix continuou como sempre, meigo, disponível, e a deixar o calor do seu corpo no inverno sem regresso dos anciãos.

Na manhã em que não acordou, o crepúsculo de Novembro caía com as folhas das árvores e iluminava o ar e o chão numa dança doirada. Fechou-se um ciclo.

Félix, o gato, animava agora o colo das estrelas.

Autor :Eduardo Bettencourt Pinto 2015-11-15
Lugar dos Áceres, British Columbia

3 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Quem tem animais de estimação e os ama sofre sempre muito quando a sua vida termina. Mas é assim a lei da vivência. Há que saber entendê-la.
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Saudação amiga
Abraço

Cidália Ferreira disse...

Os animais são muito fieis. Lindo texto!
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"É preciso acreditar em bons ventos"
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Beijo, e uma boa noite!

Mário Margaride disse...

Olá minha amiga!
Os animais de estimação são muito importantes para nós. Ligamo-nos emocionalmente muito a eles. E é doloroso quando os perdemos...
Mas infelizmente a vida é assim...
Continuação de ótima semana!
Beijinhos!

Mário Margaride