sábado, 24 de janeiro de 2009

Fuga

Alto estou a teu lado
no verão deitado

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Alto no esplendor de possuir-te
e trocarmos silenciosamente
os frutos mais fundos da morte

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Como se navegasse um rio
por dentro
e na tua fragilidade encontrasse
a minha força

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Um caminho rigoroso de silêncio

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Autor: Casimiro de Brito
Foto:Anikot

domingo, 18 de janeiro de 2009

Amor



o teu rosto à minha espera, o teu rosto

a sorrir para os meus olhos,

existe um trovão de céu sobre a montanha.

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as tuas mãos são finas e claras, vês-me

sorrir, brisas incendeiam o mundo,

respiro a luz sobre as folhas da olaia.

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entro nos corredores de outubro para

encontrar um abraço nos teus olhos,

este dia será sempre hoje na memória.

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hoje compreendo os rios. a idade das

rochas diz-me palavras profundas,

hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

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Autor:José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"

Foto: promenade 5

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Cronica do pescador da marginal

Que história é essa de quereres ser feliz comigo, ninguém é feliz comigo, sou um chato. Não gosto de conviver, não gosto de sair, não gosto de cinema, não gosto de praia, nem sequer gosto de jantar fora, gosto de estar no meu canto e que não falem comigo. Que raio de felicidade te podia dar? Ficares num canto também, a aborreceres-te? Além disso não reparo nas datas: nos teus anos, nos meus, no dia em que nos conhecemos e portanto não ofereço flores, não dou beijinhos, não abraço, não comemoro, não te deixo de lágrima no olho, comovida, a pôr rosas nas jarras. Gosto de pescar. À sexta-feira à noite saio com a tralha para a marginal e fico ali até de madrugada. E ao sábado. E ao domingo. Não dou pelos faróis dos carros. Não dou pelo cheiro do rio. Acho que não dou pelos peixes. Calculando bem talvez nem goste de pescar: gosto de me sentar na muralha e ver as luzes de Almada reflectidas na água preta, a tremerem. Isto sem pensar em nada. Apenas sentado na muralha a ver as luzes de Almada a tremerem. Como podiam interessar-te as luzes de Almada a tremerem? Fazem-me lembrar olhos exactamente no instante das lágrimas, que vacilam. Se calhar as luzes interessam-me porque nunca choro. E não percebo que história é essa de quereres ser feliz comigo. Trabalhamos no mesmo sítio. Vês-me todos os dias. Almoçamos com os colegas na cantina. Quase nunca falo. Digo:-Pois éde vez em quando para que não julguem que sou mal-criado. O jantar é em casa com o meu pai. O meu pai também quase nunca fala: se o silêncio se prolonga demasiado tempo dizemos:-Pois éum ao outro e continuamos a descascar a fruta. O meu pai não tira o cachimbo mesmo quando mastiga: mete a comida pelo outro canto da boca, soltando argolinhas de tabaco. Se por acaso faleceu aposto que não conseguem arrancar aquela coisa do queixo. Disse-lhe:-Não há quem feche a urna com você assimele achou que um buraquito na tampa, ao pé do crucifixo, resolvia a questão, e de tempos a tempos uma argolinha de tabaco subiria da lápide. Só tenho que lhe deixar dois ou três pacotes nos bolsos para quando o fornilho não tiver mais que cinza dentro. De qualquer maneira, na data em que isso acontecer o reflexo das luzes de Almada vai tremer na água.
Para ser sincero acho que é por causa do reflexo que não quero ser feliz contigo. Imagina, se tu te fores embora, eu sentado na muralha com os olhos exactamente no instante das lágrimas, a vacilarem: mil vezes estar num canto e que não falem comigo, mil vezes o cachimbo do meu pai
-Pois é
e eu
-Pois é
de volta. Há coisas que a partir de uma certa idade a gente não aguenta e fiz quarenta e três anos em Março. Quarenta e três, mesmo que a gente o negue, é uma porção deles. Foi-se a minha mãe, foi-se a minha tia do lado da minha mãe que morava connosco, o meu irmão na semana seguinte à esposa deixá-lo, abraçou-se a um comboio em Algés: sobrou um sapato, um bocadinho de calça, a camisola com sangue a vinte metros da linha, uma das hastes dos óculos. (Era míope, esbarrava na mobília sem querer.) Ter-se-á abraçado de propósito ao comboio? Durante semanas, depois disso, o cachimbo do meu pai mais rápido e nenhum de nós
-Pois é
a descascarmos a fruta mudos, com a maldita da faca a falhar, a falhar. Demorou a conseguir cortar o pêssego de novo. Temos a haste dos óculos na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas, que serviam ignoro em que portas. Talvez que se pudesse abrir o
-Pois é
com elas e dentro
-Pois é
o meu irmão a sair para o comboio explicando
-Já venho
e veio em pedaços (alguns pedaços) como um modeo de armar a que faltavam metade das peças, á medida que o cachimbo ia soltando argolinhas. Foi o único momento em que me apeteceu fumar. A minha cunhada refez a vida, desapareceu. Mora em Espanha, contaram-me, com um caixa de banco. Ao regressar da pesca não trago peixe na cesta, deito-o de regresso ao Tejo. Isto antes da manhã, minutos antes da manhã, no receio que as luzes de Almada se apaguem. Não me abraço ao comboio para Lisboa, venho dentro dele com a tralha ao meu lado. Nem um cão na rua excepto um desses cachorros vadios que se não interessam por mim, de focinho rente ao passeio, a murmurar. Percebo que o meu pai se volta na cama. Que a torneira de um primeiro vizinho principia a verter, o que acorda mais cedo para correr no parque numa expressão á beira do enfarte ou do orgasmo. Ao ver-me no espelho a minha expressão muda num estalinho como os números dos relógios digitais onde sou um monte de zeros. Não acredito que tu feliz com um monte de zeros, a aborreceres-te num canto também. Se me perguntares se gosto de ti digo que sim. Ou seja diria que sim no caso de a haste dos óculos não estar na gaveta das lâmpadas fundidas e das chaves antigas. Mas está. Portanto o mais que posso é declarar
-Pois é
e pensar noutra coisa. Tenho pena. Palavra de honra que tenho imensa pena e a faca volta a falhar o pêssego, desajeitada. Apetece-me, calcula, oferecer-te flores. Não ofereço. Abraçar-te. Não abraço. Reparar nas datas. Não reparo. Fico para aqui de mãos nos joelhos. E, como não gosto de sair, se me convidares para o teu casamento desculpa mas não vou. Contribuo para a prenda dos colegas de trabalho
-Falta você, ó Guedes
e fico reflectido no tampo de água preta da secretária, a tremer.

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Autor:António Lobo Antunes, Crónica, "Visão", 26/10/06, pag. 21

Foto:António Viegas

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Estou vivo e escrevo sol



Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram as suas faces
e na minha língua o sol trepida

melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde.
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Autor:António Ramos Rosa
Foto:Dodano



domingo, 28 de dezembro de 2008

Sobre o chão descalço, construo mundos que destruo na minha cabeça.


Foto:Introit

domingo, 14 de dezembro de 2008

Amei a mulher amei a terra amei o mar
amei muitas coisas que hoje me é difícil enumerar
De muitas delas de resto falei
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Autor:Ruy Belo
Foto:derianek

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

De mãos a arder. risco uma cruz

De mãos a arder, risco uma cruz
na lisura da areia, para confessar
o remoto exercício da tristeza.
Já não sei, se são de asas ou de velas,
os sons que aportam meus ouvidos
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Autor:Graça Pires
Foto:wostass

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Sensação musical para embalo de almas


Onde a vida foi, fugitiva,
a forma inatingível,
a pura música cativa
e livre, como um sensível
alheio a nós, e sendo-nos,
há só o puro longe, o pólen
em suspensão e estige
de ausência - pétalas cismantes
recortando a sua origem
não em nós, na morte de instantes.

Autor:António de Navarro
Foto:miszkaa

domingo, 16 de novembro de 2008

....

Agarro em pincel e deslizo-o, a ouvi-lo segredar, murmúrios de cores que riem sozinhas.Traço risco leve, não leve o vento o vento, o segredo do rabisco…É saltimbanco, o risco colorido , palhaço-saltitante, vagabundo, navegante…Procura ilha perdida, de menina que sonha versos de fantasia.Rabisco tonto!Desvalido de sorte!Anda perdido sem norte, que a menina sonha coisas outras, de fadas e rainhas, não coisas tolas, coloridas por rabisco de Quixote…
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@ almaro — July 13, 2005

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Lãmina, o Punhal

Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
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Autor:Albano Martins
Foto:Ricardo

sábado, 8 de novembro de 2008

As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa.
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Autor:José Tolentino Mendonça
foto:Yust

sábado, 1 de novembro de 2008

30

Já a luz se apagou do chão do mundo,
deixei de ser mortal a noite inteira;
ofensa grave a minha, que tentei
misturar-me aos duendes na floresta.
De máscara perfeita, e corpo ausente,
a todos enganei, e ninguém nunca
saberia que ainda permaneço
deste lado do tempo onde sou gente.
Não fora o gesto humano de querer-te
como quem, tendo sede, vê na água
o reflexo da mão que a oferece,
seria folha de árvore ou sério gnomo
absorto no silêncio de uma rima
onde a morte cessasse para sempre.


Autor:António Franco Alexandre
In:Duende
Foto:jimij

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Quero-te



Quero-te
no secreto segredo de dizer-te
na asa da brisa repousada
no fulgor deste sol
no arrepio da água na levada
no sobressalto da pedra na falésia
no silêncio dos cumes
na claridade das madrugadas brancas
no respirar nocturno das ruelas
no calor do vinho a perfumar a boca
na solidão das mãos
na fímbria do desejo
(quero-te assim
longínquo e doce
terno e ausente)
só posso desejar-te nas palavras.
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Autor:Maria Aurora Carvalho Homem
Foto:Antropina

domingo, 26 de outubro de 2008

Pergunta-me


Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Autor:Mia Couto

Foto:KxxG


sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Para ti...


"Tu e não eu, se encarregará da tarefa de destruir tudo o que vivemos, de acordo com a lei do excesso que é a única que compreendes: tudo ou nada, verdade ou mentira, amor ou ódio.
Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém.
Assim vou vivedo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer."
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Autor :Miguel Sousa Tavares, Não te deixarei morrer David Crockett
Foto:_-_Eau_-_