sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Fantasmas

Rebekah W

Erguem-se os fantasmas lá na rua
com suas vestes brancas a adejar...
Deslizam mudas à ténue luz da lua
como chamas de vela a tremular...

Autor : Maria Helena Amaro

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Estranho é o sono que não te devolve

ildiko neer

Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.

Autor : Daniel Faria
in "Explicação das Árvores e de Outros Animais"

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Outro medo

Vimos também da varanda do cerro
o raio que riscou a fronteira
entre os que escolheram um novo
nome e todos os outros
mulher e crianças primeiro
testemunho do que foi sendo contado.

A água que ouvimos passar
- depois das casas contar agora de cima -
cobre e revela as pedras do leito
olhadas por quem esteve aqui antes.

Apoiados no ferro longe da linha
estamos a salvo das imagens
que nos despem e fazem de nós
mães filhos tios
desses cuja morte tapam e nos mostram
juntando nós
deitados depois
os pontos que faltam.

Autor : Margarida Ferra
In-Poesia, Um Dia (2012-2017), 2014
Imagem :Pintereste

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Com Palavras


Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...

Autor : Egito Gonçalves
 in 'Antologia Poética'

domingo, 26 de janeiro de 2025

Memórias em arquivo

 

Na noite busco a pausa essencial,
para arquivar memórias do dia,
agora concluído,
silente em sua despedida.

Extingo o que trouxe melancolia,
revivo o que me trouxe paz,
qual sinfonia nos meus ouvidos,
enquanto a boca murmura baixinho.

Não redijo o amanhã,
mas guardo o ontem e o hoje,
tudo o que foi bom
é meu legado, meu porto seguro.

Que a memória não me atraiçoe;
na ribalta do tempo,
que eu sempre componha o presente
com ecos vivos de saudade.

Autor : Beatrice M
Imagem : Jonas Hafner

sábado, 25 de janeiro de 2025

Sol de Janeiro


Nunca tanto como hoje reparei com atenção
na
luz do sol de Janeiro. Forte
mas delicada. Furtiva
mas
demorada. Não arde nem faz tremer.
Não é densa nem clara. A
luz
do sol em Janeiro:
assim é o nosso amor
oculto pela tinta dos dias apenas
espreita uma aberta
(uma distracção das nuvens)
para
luzir e irromper
(nunca antes como hoje precisei)
tanto que o vento lhe desse oportunidade).

O nosso amor
é Janeiro:
mesmo se o julgo esquecido
sei que
está sempre lá.

Autor : João Luís Barreto Guimarães
Imagem : Sanya Khomenko

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

O único maremoto de que há memória

aconteceu nos teus cabelos que hoje são lisos
e deixam a água pelos tornozelos
até ser de manhã.

Agora até a terra passou.
Cruzam-se valsas e expedições na curva do seio
a música não cabe na boca das aves

e nós, meninas, bailaremos..

Autor : Catarina Nunes de Almeida
Imagem : Svetlana Belyaeva

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Nunca regresso ao ponto de partida

Nunca regresso ao ponto de partida,
quando me leva como eremita
a solidão do dia em que viajo,
quando nem horizontes desordenam
com seus fechados véus
a vontade afincada de transpor
as linhas clandestinas.

E porque voltaria? Trabalhoso
seria descobrir
de novo a senda aberta ao retornar,
com poeiras e pedras, sobressaltos,
em toda a dimensão da revoada.

O ponto de partida
diluiu-se aliás no pesadelo
de noites infindáveis, sem contorno,
sem astros pelo céu a tilintarem
e sem segurança do romper
da manhã desejada.

Companheira leal, a solidão
parte sempre comigo
até onde a distância não existe.

Autor : António Salvado
Imagem : Martin
 Marcisovsky

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Poema Agreste


Não sei por que buscas palavras longas 
para as coisas breves que nos assombram. 

Não sei por que teces teias enormes 
para as incertezas que nos envolvem. 

Não sei por que insistes. Não sei porque insistes 
em prender meus passos nesse limite. 

Autor : Glória de Sant'Anna
in 'Poemas do Tempo Agreste' 
Imagem : Pintereste

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

É a prata da minha amada


É a prata da minha amada.
Dir-lhe-ei docemente adeus,
e que não arranque os espinhos da primeira rosa,
subindo pela vida.

E quando eu caminhar pelo vale da sombra,
ela descerá ao pequeno porto, descalçando as sandálias,
mergulhando no mar,
repetindo os nomes de todos os que partiram,
de todos os que a amaram,
hesitando à entrada da taberna,
vendo o meu lugar vazio, o violino sobre a mesa, um
silêncio maior que a lentidão das praias,
e pensará em tudo, em cada som, em cada lágrima, em
nada.

Ela voltará as costas.

Nunca fomos deste mundo, dir-lhe-ei por fim, ao fechar
a última porta.

Autor : José Agostinho Baptista
Imagem : Evan Atwood

domingo, 19 de janeiro de 2025

Tempo Esgotado


Leva a mensagem que deixei no olhar,
decifra-a na penumbra de um dia de chuva.
Percorre as sílabas que se derramam,
quebradas,
à espera de serem compreendidas.

No reflexo que te enviei,
traduz a mensagem, ou o sentir.
Talvez hesites...

Mas quase jurava
que entendeste e escolheste ignorar.

Já não há tempo para enigmas,
dirás,
perdemos tudo nos jogos
que não nos levaram a parte alguma.

E o tempo, no destempo,
se esvaiu.

Autor : BeatriceM 2025-01-19
Imagem : Anya Anti

sábado, 18 de janeiro de 2025

Flores

MIra Nedyalkova

Ninguém
oferece flores.

A flor,
em sua fugaz existência,
já é oferenda.

Talvez, alguém,
de amor,
se ofereça em flor.

Mas só a semente
oferece flores.

Autor : Mia Couto

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Chamamento

Da margem do sonho
e do outro lado do mar
alguém me estremece
sem me alcançar.

Um bafo de desejo
chega, vago, até mim.
Perfume delido
de impossivel jasmim.


É ele que me sonha?
Sou eu a sonhar?
Sabê-lo seria
desfazer, no vento,
tranças de luar.

Nuvens,
barcos,
espumas
desmancham-se na noite.

E a vida lateja, longe,
num outro lugar.

Autor : Luísa Dacosta
Imagem: Vladimir Volegov

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Roma


Roma
é como as ruínas
de uma relação amorosa
restos de
beleza
a céu aberto

Autor : Daniel Jonas
Imagem :Pinterest 

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Sonho

Pintei-te vento
guitarra
à janela alcandorada
de matizes loiros.

Castelo ou fragmento
de nuvem?

És o meu sonho
doçura de uma pétala
de lua
a desfazer-se em poalha
de versos.

Aonde te guardarei
Amor
longe de uivos
de matilhas
do som cavo
da morte ?

Claro
dentro de mim
nas profundezas
elevadas
de uma gota de seiva
a fluir na transparência
do afecto.

Autor : Maria Helena Ventura
In Quando o Silêncio Falar
Imagem : Pinterest

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Para os Amigos


De entre todos, apenas vós
tendes direito a ver-me
fracassar. Onde caio
entre a vossa irónica
doçura implacável, convosco
partilho o pão e o espaço
e a rapidez dos olhos
sobre o que fica (sempre)
para dar ou dizer.

E de vós me levanto
e vos levo pesando
e ardendo até onde
me ajudais a ser
melhor ou talvez
menos só.

Autor : Vítor Matos e Sá,
in 'Companhia Violenta'

domingo, 12 de janeiro de 2025

Luar no Limiar


Luar, lindo e luminoso,
único, ufano, urbano,
imenso, intenso, infinito,
simples, subtil, sereno.

Absorver-te no olhar,
uma vez na vida.
Escapar-se da realidade,
ainda que por um suspiro.

Clamar ao alto
a ternura do momento,
tão breve — e no entanto,
um aluvião de ondas suave.

Autor : BeatriceM 2025-01-12

sábado, 11 de janeiro de 2025

Não há motivo ...


Não há motivo para te importunar a meio da noite,
como não há leite no frigorífico, nem um limite
traçado para a solidão doméstica.Tudo desaparece. Nada desaparece. Tudo desaparece
antes de ser dito e tu queres dormir descansada. Tens
direito a um subsídio de paz.Se eu escrever um poema, esse não é motivo para te
importunar. Eu escrevo muitos poemas e tu trabalhas
de manhã cedo.Toda a gente sabe que a noite é longa. Não tenho o
direito de telefonar para te dizer isso, apesar dessa evidência me matar agora.E morro, mas não morro. Se morresse, perguntavas:porque não me telefonaste? Se telefonasse, perguntavas:sabes que horas são?Ou não atendias. E eu ficava aqui. Com a noite ainda
mais comprida, com a insónia, com as palavrasa despegarem-se dos pesadelos.

Autor:José Lúis Peixoto
Foto:Sordyl

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Luar

Estamos cumprindo o nosso tempo precioso na Terra. Alguns de nós partirão mais cedo; outros, mais tarde. Todos seguiremos um dia. E eu acredito que, lá na frente, grande parte daquilo que nos adoece, rouba o sono e encolhe o riso já não terá importância. Acredito que, de fato, importará se expressamos o nosso amor. Se nos tornamos nós mesmos. Se ficamos confortáveis dentro da nossa própria vida. Se, de algum modo, facilitamos a existência de outros seres ao passarmos por aqui.

______Ana Jácomo
Imagem :Korinne Bising

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Como é Belo Seu Rosto Matutino


Como é belo seu rosto matutino
Sua plácida sombra quando anda

Lembra florestas e lembra o mar
O mar o sol a pique sobre o mar

Não tive amigo assim na minha infância
Não é isso que busco quando o vejo

Alheio como a brisa
Não busco nada

Sei apenas que passa quando passa
Seu rosto matutino
Um som de queda de água
Uma promessa inumana
Uma ilha uma ilha
Que só vento habita
E os pássaros azuis


Autor  : Alberto de Lacerda, in 'Exílio'
Imagem :Sanya Khomenko

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.

Autor : Cora Coralina
Imagem :Klaudia Rataj 

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

As ondas que se encontram


As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.

Autor : Luís Miguel Nava
Poemas, Porto: Limiar, 1987, p.59.
Imagem Anton Gorlin

domingo, 5 de janeiro de 2025

O voo da vida

Carrego nos olhos o verde da esperança,
o ânimo resiliente,
a força exaurida nas lutas da vida.

Adejo, plena e enjeitada,
no impulso solar,
a marear no sono dos meus sonhos.

Autor : BeatriceM 2025-01-05
Imagem : Gina Vasquez

sábado, 4 de janeiro de 2025

A Tonalidade das Palavras

aynur Guçlu

As palavras também têm sábados e dores de cabeça e uma história real na construção do mundo.
As palavras entristecem com a nossa fala. E nós enlouquecemos sem elas. Porque o mundo são palavras.
As cores são palavras. A palavra primavera floresce em nossa boca. E a palavra mar faz de quem a pronuncia, uma ilha encantada.
Quando parto sem palavras, uma tristeza vai comigo a doer-me no sangue, na raiz da fala e do afecto.
Só elas podem explicar o mistério do amor.
Delas retiro o ouro, o trigo, a fala e a esperança. Nelas vive o tigre e a esmeralda. Delas sopra o vento.
São curandeiras. Feiticeiras. Mensageiras. Deusas.
São o canto da alma e a voz que falta às andorinhas.
E o sorriso do anjo. E a única coisa que Deus não inventou.
São essas palavras que ficam mudas no coração da gente para que os beijos possam dizer o que elas não dizem.


Autor : Joaquim Pessoa,
in “Guardar o Fogo”

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Ao Longe Escutava

Ao longe escutava
O vazio intacto
Um vulcão
Os jogos do azar
Escapulindo lágrimas
Ao longe um sátiro sem audição nem olfato
Os dias felizes
Ao longe
A mordidela de rochas e o avental
aquele que puseste no Natal

Ao longe eu escutava
A tua voz em tanques
Nos cucos
O vazio intacto
Os dias felizes
As areias que éramos, tristes
Os pomos os pélagos os gerúndios
(tu de paixão em riste)

Autor : Cecília Barreira

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Elegia


Teu sorriso se abriu como uma anêmona
entre as covinhas do rosto infantil.
Estavas de pijama verde,
nas almofadas verdes,
os pezinhos nus, as pernas cruzadas,
pequenina,
como um ídolo de jade
que teve por modelo uma princesa anamita.
Tuas mãos sorriam,
teus olhos sorriam,
o liso dos teus cabelos pretos sorria,
e mesmo me sorriste,
e foi a única vez…

Não pude calçar, com beijos os teus pezinhos,
e não pudeste caminhar para mim…
Mas é bem assim que os meus sonhos se possuem.

Autor : João Guimarães Rosa
Imagem : Lisa Holloway

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Sou imprudente


Adília Lopes,
Pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira,
Lisboa , 20 de Abril de 1960
Lisboa,30 de Desembro de 2024
.
Sou imprudente
como os pombos
que morrem atropelados
e complicada
como as serpentes
que se enroscam
nas árvores

Autor : Adília Lopes
Imagem : Desconheço o Autor