domingo, 3 de novembro de 2019

...


Tu vais ter sempre o teu mundo tão próprio, tão pessoal, tão secreto e intransponível que mesmo por ser tão misterioso, nunca mais me vai atrair.

 Posso mudar de cidade, de rotinas até de país, e, não será por isso que vou compreender a tua filosofia de vida.

Não vou!

 Mas, também já nem me afecta muito.

 Cansei de viver uma vida que não era a minha, mas a tua, e mesmo assim saber que não valeu a pena. Eu era uma actriz que apenas contracenava para um espectador.

Por vezes ainda choro e quero acreditar que foi apenas uma fase que passou.

 Um dia vou voltar para um lugar onde o mar seja mais azul e a praia mais amarela.

 Por vezes, ainda me doem os ossos e por vezes ainda sinto o meu corpo em chamas.

 E talvez em algum lugar alguém me espere, mesmo que não seja tu.

Autor : BeatriceM 2012/10/28 (reeditado)
Imagem :Matthew Scherfenberg

sábado, 2 de novembro de 2019

Aurora



A poesia não é voz - é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:

voo sem pássaro dentro.

Adolfo Casais Monteiro,
in 'Voo Sem Pássaro Dentro'
Imagem : Katharina Jung

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

..


é uma tarde de outono a pique
a luz vertida do inverno
na ladeira fria
onde o gato se espraia
no despojos fúnebres
um róseo vítreo de celofane murcho
como as flores que o menino descalço pisa
os pés carregados de chagas
os pés vermelhos de lume

Autor: Ana Paula Inácio
em As Vinhas de Meu Pai, V.N. Famalicão: Quasi Edições, 1ª edição, 2000, p. 10.
Imagem : lindsey kustusch

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

a gente se mata todos os dias


a gente se mata todos os dias
em doses conta-gotas
de suicídios não violentos

morremos um pouco
quando deixamos de ser quem gostaríamos
quando silenciamos as nossas verdades
quando amamos e não somos amados
quando os vícios se tornam nossos melhores momentos
quando fazemos coisas por obrigação e não por vontade

morremos.

Autor : kaio bruno dias
Imagem : Joel Robinson

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Outra margem de mim


É muito tempo a desejar o tempo
De mudar ventos, levantar marés
É muita vida a desejar o alento
Que faz saber ao certo quem és

É funda a toca onde te escondes tanto
Tem a distância entre o silêncio e a voz
A vida rasga bocadinhos gastos do mundo
Vai descascando até chegar a nós

E tu que sabes tanto de mim
Tu que sentes quem eu sou
Dá-me o teu corpo como ponte que me salva
Do que o medo fechou

São muitos dias a perder em vão
Sem nunca entrar dentro do labirinto
É muita vida a não ser o que tu sentes
A planar sobre o que eu sinto

É quase noite, não te escondas mais
Vai desatando até entrar o ar
Dá-me um gesto que me diga o teu fundo
Uma palavra para te tocar

Tu que sabes tanto de mim
Tu que sentes quem eu sou
Dá-me o teu corpo como ponte que me salve
Do que o medo fechou

Tu que sabes tanto do sol
És uma espécie de outra margem de mim
Olha-me dentro como chão que me agarre

Pode ser esta noite quente
A estrada aberta mesmo à nossa frente
E tu e eu a descobrir o ar
Não é preciso correr
Não é urgente chegar
O que é preciso é viver

Autor : Mafalda Veiga

terça-feira, 29 de outubro de 2019

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O mais terrível dos sentimentos é o sentimento de ter a esperança perdida.

Autor : Federico García Lorca
Imagem : Brooke Shaden's

domingo, 27 de outubro de 2019

Recuo no tempo


Recuo no tempo e no espaço
E sei que ando à deriva
Como barco em tormenta
Sem bússola
Águas amotinadas impedem
A minha chegada
A algum porto de abrigo
Estou completamente só
Aqui
Agora
E para sempre

A escuridão tomou conta de mim
E nem o azul do céu me sorri
Mas
Deixo-me ir ao sabor do vento
E se calhar
Algum porto haverá
À minha espera

Autor : BeatriceM  2012-10-07
Imagem : shawrus

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

[As gaivotas desta tarde…]



As gaivotas desta tarde
cravaram dentes
repetindo o sinal da cruz

de tanta tristeza,
não andam mais juntas
em busca do sol:
guardam a dureza
de quem surfa a morte como os abutres.

Autor : Clarissa Macedo

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Por vezes


"Por vezes sentado sozinho na sala, apenas com o cão por companhia, pensava que, contrariamente ao que ele supunha, não eram precisas palavras para entendermos o essencial: que tudo é uma breve passagem e que não há outra eternidade senão a da solidão partilhada.
Ou no amor, ou na camaradagem das grandes batalhas, ou no silêncio de uma sala entre um leitor e um cão. Talvez estivéssemos a ficar parecidos e até nos imitássemos um ao outro."
Autor : Manuel Alegre
In 'Cão como Nós'
Imagem: Mãrcio Camargo

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Mãe, agora que guardaste na arca


Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que

já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te

porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda

te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos

do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão

negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão

azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam

no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai?

Autor : Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Para ser feliz


Leva-me para onde os dias florescem
semeando maresia
e as noites se entretecem
de mistério e poesia.

Diz-me as palavras que tens no olhar
e nem precisas de me dizer
porque as sei adivinhar
mesmo sem querer.

Deixa-me desvendar o paraíso
no teu corpo. Algo me diz
que de nada mais preciso
para ser feliz.

Autor : Torquato da Luz
Imagem: antoine renault

domingo, 20 de outubro de 2019

Crepúsculo

Uma lágrima insolente
Teimou em cair
Soprei-a para longe
Cansada do seu  sabor a sal
.
Caiu desprotegida
E perdeu-se na suavidade
Da pele sem maquilhagem
.
Transformei-a num sorriso
E abraçei a saudade de ti
Na tarde incandescente de sangue
.
Autor : BeatriceM 2012-09-09 (reeditado)
Foto: anna o. photography

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

O que não escrevi,calou-me.

O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.

Autor : Affonso Romano de Sant'Anna
Imagem: Logan Zilmer

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Memória é Medo


                                                           memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre

Autor : Vera Lúcia de Oliveira

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Pedras

Eu canto estas pedras de fio,
Este areal de aves esquecidas.
Passo por ti sem ver as rosas, a flor que pelos olho esvoaça.

Eu canto como se aqui fosse uma praça,
Uma praça coberta de cadáveres
E o teu rasgado pelo ventre
Fosse um cadáver mais por entre os dedos.

Por isso é que esta dor não pode ser poema.
Por isso é que não pode ser uma palavra.

Autor : Mário Contumélias
In Sou deste mar Lisboa, Litexa, 1983
Imagem: Jaroslaw Datta