sábado, 29 de julho de 2017

Poema Involuntário


Achraf Baznani,

Decididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.

Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.

Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.

Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.

Autor : Natália Correia
in "O Vinho e a Lira"

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Tempo

Victor Bauer
O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.

Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbedo de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde.

Autor : Carlos de Oliveira
in 'Colheita Perdida'

quinta-feira, 27 de julho de 2017

O tempo seca o amor

Nadja Berberovic

O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Autor : Cecília Meireles

in 'Retrato Natural'

terça-feira, 25 de julho de 2017

Um dia

Laura Lee Zanghett

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Autor :Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 24 de julho de 2017

ínfima partícula

Laura Makabresku

sou um rio no desejo
do teu olhar
e nos teus lábios
perco o chão
de tanto mar.

Autor : LuísM Castanheira
https://poesiaaremar.blogspot.pt/

domingo, 23 de julho de 2017

domingo, 9 de julho de 2017

com a minha mão na tua


Que hoje , os espelhos não sejam o reflexo,
da minha alegria,
porque o reflexo não pode,
ser,
apenas o reflexo dum sentir,
mas apenas o âmago do porvir.

Hoje não dou conta de coisa nenhuma,
e não assumo responsabilidades,
sobre nada,
nem sequer sobre mim.

BeatriceMar 2014-07-10
(reeditado)

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Das palavras

Pawel Kuczynski

Das palavras
de algumas palavras
temos de conhecer mais
que seu significado,
temos de lhes sentir o tacto
o gosto, ouvir a voz,
temos de as provar
beber, comer, saborear
mastigar suavemente
e depois com ternura,
as engolir para que permaneçam
guardadas em nós.
Amor! O que é amor
se não for vivido!

Autor : Alice Queiroz
In Jardim de Afectos

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Para atravessar contigo o deserto do mundo

Agnieska Motyka


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Autor : Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Livro Sexto'

terça-feira, 27 de junho de 2017

Poesia Depois da Chuva

       Laura Lee Zanghetti
 A Maria Guiomar 
Depois da chuva o Sol - a graça. 
Oh! a terra molhada iluminada! 
E os regos de água atravessando a praça 
- luz a fluir, num fluir imperceptível quase.

Canta, contente, um pássaro qualquer. 
Logo a seguir, nos ramos nus, esvoaça. 
O fundo é branco - cal fresquinha no casario da praça. 

Guizos, rodas rodando, vozes claras no ar. 

Tão alegre este Sol! Há Deus. (Tivera-O eu negado 
antes do Sol, não duvidava agora.) 
Ó Tarde virgem, Senhora Aparecida! Ó Tarde igual 
às manhãs do princípio!

E tu passaste, flor dos olhos pretos que eu admiro. 
Grácil, tão grácil!... Pura imagem da Tarde... 
Flor levada nas águas, mansamente...

(Fluía a luz, num fluir imperceptível quase...) 

Autor : Sebastião da Gama
in 'Pelo Sonho é que Vamos'

domingo, 25 de junho de 2017

...

josephine cardin

ninguém precisa ver  as minhas lágrimas, são espontâneas e derrapam
desgovernadas como um rio sem foz
assim,como a minha tristeza, a raiva a aflição
a dor mesmo que exposta é e será sempre anónima...

Autor : BeatriceM 2017-06-25

sexta-feira, 23 de junho de 2017

São horas de voltar

São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera
gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar
trará um corpo incerto dentro do nevoeiro,
mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto

à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo
os livros, escondo as cartas, viro os retratos
para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,
sei que não voltas, e ouço dizer que as aves
partem sempre assim, subitamente. Outras virão

em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.


Autor: Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 22 de junho de 2017

O silêncio só raramente é vazio

Neil Driver

O silêncio só raramente é vazio
diz alguma coisa
diz o que não é

Autor : José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 21 de junho de 2017

...

Liat Aharoni


Um anjo vem todas as noites:
senta-se ao pé de mim, e passa
sobre meu coração a asa mansa,
como se fosse meu melhor amigo.
Esse fantasma que chega e me abraça
(asas cobrindo a ferida do flanco)
é todo o amor que resta
entre ti e mim, e está comigo.

Autor : Lya Luft

terça-feira, 20 de junho de 2017

um dia

Victor Bauer Art

um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo

lá fora o meu desejo assassina o mundo
a noite não existe porque a deixaste
no movimento de pedra dos meus braços

daqui onde estou quem te era
não se vê nada do amor

Autor:Pedro Sena-Lino
zona de perda livro de albas
objecto cardíaco, 2006