quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Esta Noite Morrerás


Ana Hatherly 
Porto  08 de Maio de 1929
Lisboa  05 de Agosto de 2015



Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus
passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito
é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos,
a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço
um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca
dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de
noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe
o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão
mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos
teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.

Ana Hatherly
in “Poesia 1958-1978”

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Mesmo que o rosto



Mesmo que o rosto
seja outro encanto no teu canto

Mesmo que os pássaros
sejam só aves
cautelosas nesta mão

Mesmo sendo já folha
ou ninho de verão

serei continuamente tua
como tão nenhuma
há-de ser para Ti!…

Ana Maria Domingues
in Cartas a Romeu (Ed. de Autor, 2013)

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Como podemos esperar

Kyio Murakami
Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.

Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».

Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aqui

como podemos esperar uma noite de lua e vento?

Autor : João Miguel Fernandes Jorge
in "Direito de Mentir"

domingo, 2 de agosto de 2015

Nomeei-te no meio dos meus sonhos


Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor

Autor  : Ruy Belo

sábado, 1 de agosto de 2015

SÁBADO



Um sábado como qualquer outro. E único. Belo azul frio no céu--tecto do mundo e dos dias--saio da concha de mim e vejo o mar das ruas. Sei que estão diferentes, que alguma coisa se perdeu ou acrescentou, mas não distingo. Por essa nuvem de não saber, entra o chumbo liquefeito do tédio. Estarei com os meus companheiros que velam pela beleza do mundo. Encontrarei argumentos, debates, entoarei em voz... clara as vitórias que enaltecem e os perigos que estimulam; esforços onde o fogo se acalme e gaste e nada será suficiente, nada será absoluto. Sei que é um dia de fevereiras emergências. Os caminhos são estes, fui eu que os desenhei sem ao menos uma lição de pintura. Entra o gelo pelo coração acima, por vezes, as veias destravam, ignição desesperada na procura. O Nada sempre triunfa, até o velho jacarandá toma as dores de uma dignidade magoada, uma pose de madeiras gastas, mas de pé. Assume, vegetal, a transcendente banalidade do aprumo e da coragem. Contra ele o vento já nada pode e nada quer. Nada vence.

No meio de grandes decisões e rasgos, de alterosas fúrias, de afirmativos propósitos, escondido procuro a periferia de tudo, uma só hora que brilhe, encanto, inocência pristina, talvez um sorriso, um aceno de ternura ao longe com o sol posto rindo-se da ousadia, ou olhos impossíveis, na neblina do passado ou na pálida cinematografia de um sonho a cores. Nada é real, Nada fica.

Um sábado como nenhum mais.

Autor:Bernardino Guimarães

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Janela Corporal


Zin Limit

Abro a janela do teu corpo
Afasto as vestes dos teus cabelos
Acaricio os degraus do teu seio
E digo-te…
Vem murmúrio doce
A manhã é eterna quando se ama!

Autor : José Luís Outono
in Mar de Sentidos (Ed. Vieira da Silva, 2012)

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Coisas Tuas


Levo coisas tuas
para poder estar contigo
na distância.
Para nunca te perder a companhia,
mesmo não estando.
Levo gravado o teu gesto,
o pranto, o riso, e,
(ora inocente, ora picante),
o teu sorriso,
que é a tua expressão,
o teu maior encanto.
E levo um objecto,
teu pertence,
como se o espaço tivesse autoridade
e o tempo nos afastasse.

Como se fosse preciso...

Autor: Margarida Faro
In 44 Poemas (Fonte da Palavra 2011)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Quero o teu corpo

Nishe

Vejo o teu corpo
deitado no ar que respiro
humedecido de estrelas.

Sinto o teu corpo
de luar que me incendeia
no frio da insónia.

Ouço o teu corpo
Ao sol e à chuva, que afago baixinho
Com mãos de guitarra.

Cheiro o teu corpo
tépido e branco, que me inebria
com pérolas vivas.

Provo o teu corpo
oásis de mim, que ocupo sedento
cheio de água da paz.

Quero o teu corpo
da alma trajado, que anseio ditoso
e arrebatado.

Autor : Jaime Portela
http://riosemmargenspoesia.blogspot.pt/

domingo, 26 de julho de 2015

....



Dissolvi o tempo em pedaços de ilusões,
desdobrei-me em utopias.

E o dia pachorrento seguiu seu curso
Ignorando a minha sede de  aventura.

Deixem-me só, com os olhos cerrados
eu encontrarei o (meu) caminho.
.
BeatriceMar 2013-05-12
Reeditado
foto GNP


sábado, 25 de julho de 2015

...

julie de waroquier

entro pela primeira vez no quarto onde
fechaste a porta devagarinho e foste
morrer de mim como se morre
de doença que ninguém espera
e por momentos ainda acredito que
o nosso tempo é este que o relógio guarda
embora saiba que nunca
há relógios certos para o tempo
de quem nos abandona
e as sombras que as persianas desenham nas paredes

servem apenas para tentar salvar a vida de quem
vai regressar em teu lugar

e nem entende por que o chamaram

Autor : Alice Vieira
in OS Armários da Noite(Caminho 2014)

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Pecado Original


Corsino António Fortes 
 Mindelo, 14 de Fevereiro de 1933
Mindelo, 24 de Julho de 2015

Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.

Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...

Autor :Corsino Fortes
(Claridade, 1960

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Pequeno Poema

Gustav Klimt
quando eu nasci
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...


Autor: Sebastião da Gama
in Antologia Poética(edição póstuma)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

MIra Nedyalkova

há qualquer coisa que me faz desejar-te,
ser qualquer coisa num qualquer lugar teu;
que me faz regressar de qualquer parte.

há qualquer coisa em ti que produz qualquer coisa em mim,
uma qualquer coisa que não encontra um simples fim;
qualquer coisa que simplesmente me ilumina o escuro,
me preenche de qualquer forma, em coisas de alheado,
e que me faz lembrar qualquer coisa sobre o futuro,
qualquer coisa como: ter um qualquer mais cuidado....

Autor: Henrique Caldeira dos Santos

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Estamos tão sós


Laura Makabresku


O que nos afasta
uns dos outros
é o que nos aproxima
uns dos outros. Este
ser ao mesmo tempo
um e outro. Este ser
ao mesmo tempo
todo e parte desse
todo. Estamos tão
sós quando nos
bastaria apenas ser.

Autor : luís ene

sábado, 11 de julho de 2015

Dor


Seu nome esqueci sim
Só dói quando chamo
Por mim

Autor : Alice Ruiz