sexta-feira, 2 de abril de 2021

...



 Sinto-me subitamente ferida, agastada. Não seria assim tão subitamente... Mas, enfim, uma bagatela, uma pinga a mais no vaso cheio fá-lo transbordar: dá corpo e força às minhas velhas fantasias de revolta...

  Mas a minha revolta é calma, calada, fica só comigo. Entretenho-me com pensamentos mais crus e concretos que os meus habituais, quase sempre flutuantes e desinteressados. Mais nada. Mas aos poucos sereno.

  Não, ninguém me quis molestar! Todo o meu mal é apenas de situação, um mal de acaso. É um mal sem consciência, o mal da miséria; absolutamente incerto, inocente e irresponsável. E por tudo isto vou readquirindo o meu ar distraído e indiferente. Filosófico.

  Mas a minha indiferença, fruto de uma vida anormal, desaproveitada, não consegue amortecer de todo uma certa curiosidade, um distractivo apetite de me confundir com os que me cercam, e de os julgar. Não consegue!

  E assim, vegetando tranquilamente quase a um canto, pressinto ou noto que todas as criaturas se encobrem e se defendem das suas próximas! Que nós, afinal, somos como as coisas ou como os detritos do mar: chocamo-nos e apartamo-nos continuamente, vivemos num puro, permanente jogo de escondias...

  Cada ser que vive é um mistério! A sua rota é obscura e sinuosa, sempre complicada...

Autor: Irene Lisboa 
In Obras de Irene Lisboa, Volume II - Solidão. 
Imagem : Katie Eleonor

3 comentários:

LuísM Castanheira disse...

Uma Mulher, professora, pedagoga e escritora que foi Maior.
Tem em placas, no jardim de Arruda dos Vinhos, belos poemas inscritos.
Isto, muito antes do agora novo jardim dos Poetas, em Oeiras.
Um BJ, B

" R y k @ r d o " disse...


Texto poético. Sublime de ler.
.
Votos de uma Páscoa muito feliz … Cumprimentos
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.

brancas nuvens negras disse...

Uma escritora importante pouco divulgada. Associo-me à homenagem que lhe faz com esta publicação.