quinta-feira, 24 de julho de 2008

escrevo contra o medo

o quarto é branco e tem uma reprodução de Las Meninas pendurada na parede em frente à cama, por cima da cómoda. na outra parede, à direita de quem entra, o espelho onde nunca me encontro devolve-me a imagem desfocada doutro quarto, roupa espalhada pelo chão, livros, cadeiras, uma jarra com flores murchas…
não consigo dormir embora já tenha engolido uma dose dupla de soníferos. tenho o caderno onde escrevo assente numa prancheta de madeira. espera-me uma infindável noite, escrevo contra o medo.
o metal da lua nova perfura-me a memória com as suas claridades. uma aranha cinzenta, minúscula, tece argênteas teias de sombra ao canto do espelho redondo da cómoda. são quatro e meia da manhã, pelo menos aqui dentro do quarto. lá fora, é possível que ainda não seja tão tarde, ou não tenha dado hora nenhuma, ou ainda seja cedo lá fora e aqui dentro o tempo não exista.
por isso sonho com uma velhice silenciosa e melancólica, a mão esquecida sobre a cabeça de um cão. o olhar preso ao cíclico fascínio das águas e dos jardins. sonho com uma velhice onde a solidão não doa. solidão superpovoada de amigos, de silhuetas andróginas para o amor, de rostos belos como sensações de sorrisos, de mãos que aprenderam a falar.
uma ave liquefaz-se na luminosidade e escorre para os olhos, desce voando sobre a boca. a noite magoa nesta água esvoaçante. de mim me depeço, como um barco que solta as velas e zarpa ao entardecer, tacteio o caminho do horizonte ao encontro da manhã. a noite corrói, quando descubro que ainda sou capaz de amar.
que claridade explode dentro de mim?
que incertezas me devolve este navegar?
quase me esqueci de que não estou sozinho. toco ao de leve no rosto de M., o coração deixa de sangrar. olho-o dormir a meu lado, longe da minha insónia. ergo-me para o vácuo que nos envolve e chamo por mim. pouco me interessa o que possa acontecer quando acordares, vi os dragões da minha infância flutuarem no vento da alba. olho-te, e isso basta.
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Al Berto, in O Medo
Foto:JP.SOUSA

domingo, 22 de junho de 2008

A poesia



A poesia é uma espécie de revolta das palavras que se insurgem no sentir. Percorrem-nos o corpo e sem querermos lá estão a espalhar-se no dizer , no pensar ou no agir. Confundo, vezes muitas, poesia com cor ou com desenho, e até com gestos, quando estes se transformam no verbo dar. Ando à procura do mecanismo que transmuta a palavra em algo vivo, com vontade própria que se precipita pela alma e pela pele. A poesia não se guarda, é um grito que nos acompanha nos caminhos. Vai de mão dada, à escuta, è espreita. A poesia não se escreve, nem se diz, nem se vê. Empurra-nos na vida e desenha-nos o sentir…
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Autor: @ almaro
August 31,2005
Foto Zaba-Ewa

sábado, 21 de junho de 2008



...pergunto se posso dizer o teu nome a uma flor

flor o teu nome sussurrado pétala a pétala

letra a letra uma flor desfolhada na terra...

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Autor:José Luís Peixoto

Foto: bilo

terça-feira, 10 de junho de 2008

II



Gosto de ti desesperadamente: dos teus cabelos de tarde onde mergulho o rosto, dos teus olhos de remanso onde me morro e descanso; dos teus seios de ambrósias, brancos manjares trementes com dois vermelhos morangos para as minhas alegrias;
de teu ventre - uma enseada - porto sem cais e sem mar - branca areia à espera da onda que em vaivém vai se espraiar; de teu quadris, instrumento de tantas curvas, convexo, de tuas coxas que lembram as brancas asas do sexo;
- do teu corpo só de alvuras - das infinitas ternuras de tuas mãos, que são ninhos de aconchegos e carinhos, mãos angorás, que parecem que só de carícias tecem esses desejos da gente...
Gosto de ti desesperadamente;
gosto de ti, toda, inteira nua, nua, bela, bela, dos teus cabelos de tarde aos teus pés de Cinderela, (há dois pássaros inquietos em teus pequeninos pés) - gosto de ti, feiticeira, tal como tu és...
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Autor:J.G.Araújo Jorge

domingo, 8 de junho de 2008

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Dois amantes felizes não têm fim nem morte,nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,são eternos como é a natureza.

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Autor:Pablo Neruda

sábado, 17 de maio de 2008

A noite na Ilha

Dormi contigo a noite inteira junto ao mar, na ilha. Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono, entre o fogo e a água. Talvez bem tarde os nossos sonos se uniram na altura e no fundo,em cima como ramos que um mesmo vento move,em baixo como raízes vermelhas que se tocam. Talvez o teu sono se separou do meu e pelo mar escurome procurava como antes, quando nem existias,quando sem te enxergar naveguei a teu lado e teus olhos buscavam o que agora - pão, vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos, porque tu és a taça que só esperava os dons da minha vida.Dormi junto contigo a noite inteira, enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos, de repente desperto e no meio da sombra o meu braçorodeava a tua cintura. Nem a noite nem o sonho puderam nos separar.Dormi contigo, amor, despertei, e a tua boca saída do teu sono deu-me o sabor da terra,de água-marinha, de algas, de tua íntima vida, e recebi o teu beijo molhado pela aurora como se me chegasse do mar que nos rodeia.


Autor:Pablo Neruda

Foto:autor/a desconhecido

domingo, 11 de maio de 2008

A carta da Paixao



Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os recessos negros

onde

se formam

as estações até ao cimo,nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.Os dedos.A montanha desloca-se sobre o coração que se

alumia: a língua

alumia-se. O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, a lua

tece as ramas de um sangue mais salgadoe profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-senum braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.Queima-te a espaçosa

desarrumação das imagens. E trabalha em tio suspiro do sangue curvo, um alimento

violento cheio

da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força

desde a raiz

dos braços, a força

manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda

fechada, a límpida

ferida que me atravessa desde essa tua leveza

sombria como uma dança até

ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma

estação é lenta quando te acrescentas ne desordem,nenhum

astroé tão feroz agarrando toda a cama. Os poros

do teu vestido.As palavras que escrevo correndo

entre a limalha. A tua boca como um buraco

luminoso,arterial.E o grande lugar anatómico em que pulsas como

um lençol lavrado.A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-sefixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda

no cometa que te envolve as ancas como um beijo.Os dias côncavos, os quartos
alagados, as noites que
crescem

nos quartos.É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel

relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta

pelo meio

o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras

um pouco loucas

engolfadas, entre as mãos sumptuosas.A doçura mata.A luz salta às golfadas.A terra é
alta.Tu és o nó de sangue que me sufoca.Dormes na minha insónia como o aroma entre
os tendões

da madeira fria. És uma faca cravada na minha

vida secreta. E como estrelas

duplas

consanguíneas, luzimos de um para o outro

nas trevas.


Autor:Herberto Helder

terça-feira, 6 de maio de 2008

Porque o fim de um caminho...



Porque o fim de um caminho...
Porque o fim de um caminho sempre me entregou
o limiar de outro caminho,
o verde de um campo ou de um corpo adolescente,
espero que regresse à minha voz
a luz que no primeiro dia a fecundou
e a terra que é contorno dessa luz.
Porque espero ver crescer minhas mãos dessa terra
e de minhas mãos a água necessária à minha sede,
ergo de mim a noite residual do que vivi
e canto,
canto provocando a madrugada.
Porque outros entoarão meu requiem e outros cerrarão
minhas pálpebras para defender meus olhos de suas lágrimas,
deixo essa glória aos outros
- e exalto o meu nascimento
e cada dia em que renasço e procuro
a boca ou o fruto onde se reflitam os meus lábios.
Porque, harmonizando-se no sangue o fogo e a água,
eu sou o fogo e a água:
por mim os cadáveres e quanto é feito da matéria dos cadáveres
libertar-se-ão em chamas, serão claridade
e chegarão a pão pela dádiva das cinzas,
a última dádiva, a total.


Autor:José Bento

Foto:Elgorka

sexta-feira, 18 de abril de 2008

podias estar aqui


podias estar aqui,
onde os meus lábios terminam
e começa o mar dos meus pedaços
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podias estar aqui,
na janela onde debruço a alma,
em gestos do meu rosto, a recordar-te
.
podias estar aqui,
só no teu rosto vi a aurora,
como nunca vi em mais algum
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autor:
antónio paiva
foto:ira bordo

quinta-feira, 17 de abril de 2008

cidades e rios

Fui falar sobre cidades e rios. Onde ambos se fundem, interpenetram e entrelaçam. Falei sobre cidades selvagens e rios domesticados.Terminada a aula (haja sapiência) percebi (assustado)que o homem é na certeza o maior equívoco da Natureza...
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francisco artur da silva
16 Outubro 2005

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Quando o amor morrer


Ao Manuel Torre do Valle

Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços,
A Deus e aos sonhos que gelaram.

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Ruy Cinatti

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Não fugir.Suster o peso da hora




Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim despojado, ser
abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.


Autor:Cristovam Pavia
Foto:Kamyk75

domingo, 13 de abril de 2008

fingir que está tudo bem:


fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingirque está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes:ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.
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Autor:José Luis Peixoto

sexta-feira, 11 de abril de 2008



Importa que não haja ilusões sobre este ponto: é

que todos podemos morrer de sede em pleno mar.


Autor:João Miguel Fernandes Jorge
Foto:Black Tool

domingo, 6 de abril de 2008

Faz-me o favor....



Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
.
É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
.
Tu és melhor -- muito melhor!
Do que tu.
Não digas nada.
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

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Autor:Mário Cesariny
Foto:Anna Maria Jamroz