sexta-feira, 5 de julho de 2019

Casa suspeita

talvez eu quisesse ser teu lado mais bonito
a parte da tua história mais repleta, plena
a coisa certa
de uma forma tão serena, tão doce
mas que ao mesmo tempo fosse
selvagem e obscena, violenta até.

que o ódio está sempre contido na paixão
e se eu tenho uma paz toda que me enfeita
trago uma casa suspeita dentro do coração

trago um crime que cometi ou que vou cometer
e jogo contra mim, jogo contra você
vivo do perigo de te fazer enlouquecer
no eterno dilema de ser e não ser
ando na beira do que pode acontecer
e morro de medo de te perder.

Autor: Bruna Lombardi

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Relógio

O mais feroz dos animais domésticos
é o relógio de parede:
conheço um que já devorou
três gerações da minha família.

Autor : Mário Quintana

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Egoísmo

Cyril Rolando..
.
Eu,
estudar apenas
o sentido estético da tarde.

Nem grandes sentimentos,
rolando
em alinhamentos compactos
das reminiscências
dos factos, ou não.

Nunca atitudes suspensas,
vindas de conhecimentos
vastos,
da grande multidão das coisas
com sequência.

Nada.

Apenas eu, estudando
através do gozo de estar ao sol
numa cadeira vermelha
já velha,
o sentido estético da tarde.

Autor_ Glória de Sant'Anna
em Amaranto: Poesia 1951-1983, Lisboa: INC

terça-feira, 2 de julho de 2019

O Medo de Magoar os Outros

John Lautermilch.
.
O medo de magoar os outros é uma invenção da nossa mente. É o pior dos dois mundos: nem tu vives em liberdade de expressão, nem os outros sabem o que te passa no coração e na cabeça acerca deles. Já pensaste que a verbalização daquilo que sentes pode ser tudo o que a outra pessoa também sente mas não é capaz de dizer? Já idealizaste que aquilo que sentes pode ser a tomada de consciência que o outro precisa para reforçar aquilo em que já acredita e mudar de comportamento? Já imaginaste que a materialização daquilo que sabes a teu respeito pode ser profundamente inspirador para quem te ouça ou tenha o privilégio de te ver em ação? Quem te diz a ti que empregar as palavras certas, as palavras que carregam a tua verdade, olhos nos olhos do outro não é algo de absolutamente vantajoso para ambas as partes? Quem? E sim, ainda que possa doer um pouco. A verdade dói quase sempre. O crescimento dos dentes também, certo? E no entanto é vital, não é? Assim se passa com a mente. A evolução da mente de mentirosa para potenciadora passa pela dor, por ouvir certas verdades a nosso respeito, aceitá-las se for o caso e depois treiná-la e orientá-la na direção que pretendemos. Agora, viver na ignorância de acreditar que os outros é que estão sempre certos é que é manifestamente ridículo. Somos pessoas, dependemos de nós mas precisamos sempre dos outros e ficar calado não ajuda nada. Matas-te e fazes o outro acreditar que é dono e senhor da razão. Não dá. Não pode ser. A ti foi-te concedida a oportunidade de viver e inspirar, portanto não vamos abdicar nem de uma coisa nem de outra. Vive e inspira. Apaixona-te e passa a palavra. Respeita-te e comunica. De que adianta viver num faz de conta? Faz de conta que o amo. Faz de conta que sou feliz. Faz de conta que gosto do que faço. Faz de conta que gosto dos meus pais. Faz de conta que não sei. Faz de conta que sim. Faz de conta que não. O que é isto? Sim, o que é isto? É ingrato, é sujo, degradante e desumano. É isto que é.

Autor: Gustavo Santos
in 'A Força das Palavras'

domingo, 30 de junho de 2019

Tumulto



Gostava de saber dizer-te o que me vai na alma, e endireitar a minha cabeça no teu corpo, assim, a sentir o cheiro que brota da tua pele, e sentir-me serena e sem medo. Mas o meu medo é só meu. Tu não tens medo. Não necessitas. Tudo para ti é relativo. É dia novo dia vivido com adrenalina e sempre no fio da linha. Sem reservas. Sem conjecturas. Sem correntes. Eu desejava ser como tu. E não sou. Nunca serei. Ainda penso em ti. Ainda sinto saudades de ti. E sei que neste exacto momento. Tu nem sabes nem te lembras mais de mim. E que se um dia adormeceste no meu corpo. Hoje outro corpo deve adormecer no teu. E eu estou a pensar que os pássaros vão e voltam, e que tu não vais voltar. Porque na ânsia de viver tu ainda não viveste e quiçá já morreste na planura de algum voo mais arriscado.


Autor : BeatriceM 30-06-2013
Foto :jenna martin photography

sábado, 29 de junho de 2019

Os Poemas


Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.

Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti…

Autor : Mário Quintana
Foto: anka zhuravleva

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Epitáfio

Brooke Shadenn.
.
Querida vida.
Pobre pó.
Tão pó a pó.
Após, a pó.

Autor : Luiza Neto Jorge
em Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2ª edição, 2001, p. 288.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Amar você é coisa de minutos…

Richard Blunt.
.
Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

Autor : Paulo Leminski

quarta-feira, 26 de junho de 2019

..

Saul Landell.
.
um deus que caminha
invisível, por dentro dos jacarandás
desenhando a orla da noite
o arrepio do mar.

os barcos esperam-no
quietos, guardando a luz,
os olhos do deus, o seu deslizar
entre as águas tranquilas.

Autor Maria João Cantinho
POEMAS

terça-feira, 25 de junho de 2019

Compasso para elegia

Adam Bird.
.
Não me venham dizer que há remédio:
nada substitui a presença das coisas,
a presença material das coisas.

Os dias da morte
gravitam no escuro,
enquanto acendo fósforos de sombra
à tua procura nas gavetas,
nos armários, nas cabines,
em todos os lugares
onde fatalmente
tu não estás.

Nenhum prodígio pode reconstituir
a tua voz, o sorriso interior da tua boca,
voz humana, acesa no peito,
cujas palavras eram como labaredas.

Só o silêncio comemora o facto
de teres vivido como o álcool,
possuindo possuída,
com as artérias cheias de vinho doce
- corpo de vaso e sangue de licor.

Autor : albano martins
assim são as algas
campo das letras 2000

domingo, 23 de junho de 2019

É domingo

Roberto  Liang.
.
É domingo,
e eu a sentir os raios
do sol que me entra pela janela do meu quarto. No entanto,
na cama em que me espreito silenciosa,
eu queria abraçar o sol a dormir,
como se fosse um corpo algures,
perdido nas areias quentes da praia.

Autor BeatriceM 17-06-2012

sábado, 22 de junho de 2019

Tentação

Eu não resistirei à tentação, 
não quero que de mim possas perder-te, 
que só na fonte fria da razão 
renasça a minha sede de beber-te. 

Eu não resistirei à tentação 
de quanto adivinhei nesta amargura: 
um sim que só assalta quem diz não, 
um corpo que entrevi na selva escura. 

Resistirei a te chamar paixão, 
a te perder nos versos, nas palavras: 
mas não resistirei à tentação 
de te dizer que o céu é o que rasa 

a luz que nos teus olhos eu perdi 
e que na terra toda não mais vi. 

Autor : Luis Filipe Castro Mendes
in "Os Amantes Obscuros"
Foto: Emerico Toth

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Fragmentos de mim

que me cobre e desnuda a essência,
são como um suculento fruto afrodisíaco
que degusto com ternura e paixão.

Nem sempre despertam o meu sorriso,
mas sempre aquecem o meu coração,
e só de as sentir vibrar dentro de mim
há uma infinita serenidade que me alcança.

As palavras são o meu Mundo, são fragmentos de emoções da alma
que entrego a quem as escuta,
intimamente as saboreia.

Ah! As palavras são as minhas confidentes,
diamantes preciosos que me deslumbram ,
são o grito, lágrima,fragrância e sorriso
que os meus dedos ousam moldar
como o oleiro docemente molda o barro.

As palavras ... são a minha genuína obra de arte,
porém, não se enganem
Eu não sou poeta ... apenas, amante das palavras.

Autor: Sofia Valadares

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Do amoroso esquecimento

Eu agora — que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Autor : Mário Quintana
Foto:Omar Ortiz

quarta-feira, 19 de junho de 2019

chove

Emerico Toth.
para esconder
os pássaros

e recolher
as crianças

Autor : Mariana Botelho