quinta-feira, 20 de abril de 2017

...

Achraf Baznani

Apenas nos iludimos, pensando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.

Autor : Miguel de Sousa Tavares

terça-feira, 18 de abril de 2017

Sono


eric zener

Dormir
mas o sonho
repassa
duma insistente dor
a lembrança
da vida
água outra vez bebida
na pobreza da noite: 
e assim perdido 
o sono 
o olvido 
bates, coração, repetes 
sem querer 
o dia.

Autor : Carlos de Oliveira
in 'Cantata'

domingo, 9 de abril de 2017

mentira

Neil Driver

há em mim, um medo do temporal
quando lá fora chove
e o vento agreste, bate nas persianas.

traz com ele um ruído, que me relembra
eternamente,
tu a bater na minha porta.

eu sei que não é
mas, isso não me afasta o medo.

e sempre que isso acontece
tapo a cabeça com o lençol
e finjo que gosto de dormir assim.

fico sempre com a sensação
da minha mentira
quando digo que já está tudo olvidado
e que não gosto, nem nunca gostei de ti …

Autor : BeatriceM

sábado, 8 de abril de 2017

ser...

Omar Ortiz


quero o silêncio pelo meio
entre o que foi e há-de ser

quero um outro amanhecer
com um sorriso em teu seio

quero também sentir o vento
e me deslumbrares em marés

e se não for pedir muito, o alento
de seres aquilo que és.

Autor: LuisM Castanheira
https://barcaarmada.blogspot.pt/

sexta-feira, 7 de abril de 2017

O Poema

Jenna Martin

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Autor : Sophia de Mello Breyner Andresen
De Livro Sexto (1962)

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Lembra-te

jenna martin

Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Autor: Mário Cesaruny



quarta-feira, 5 de abril de 2017

Tu tens um medo

Ben Zank

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Autor : Cecília Meireles

domingo, 2 de abril de 2017

sonhar-te...ainda

Fabrizia Milia

quis ser sonho, em ti
mas, qual quimera solta
deambulando em ecos
no vento, de que apenas
suspiram ruínas
dum sonho apenas,
e só meu.


Autor : BeatriceM

quinta-feira, 30 de março de 2017

Pernoitas em mim

Frederico Erra

pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Autor : Al Berto

quarta-feira, 29 de março de 2017

Predestinaçao

Steve Hanks

Longe no tempo
um homem lançou
no ventre
de uma mulher, uma semente
e eu nasci para ti.

Longo o caminho
Mais tempo que Jacob
servi Labão para cumprir a vida.
Da carne fiz chão pr'a caminhar
da vontade fiz ponte
para o sonho de ti
que trouxe da semente que me fez.

Chegou ao altar a oferenda
os deuses que cumpram a promessa.
Fechem-se todas as chagas
no abraço azul do teu amor.

Autor : Angela Leite

domingo, 26 de março de 2017

e na outra margem existe o mar


e todos os dias atravessas a ponte,
que te conduz à cidade grande
e ainda, e sempre
é o rio que te confunde o olhar,
quando procuras novos detalhes.

e consegues sempre,
edificar,
uma infinidade de pequenas coisas,
que se confundem nas roupas garridas,
que usas e abusas.

Autor: BeatriceM

sábado, 25 de março de 2017

Sonho

Samantha French

Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminho

umas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracol

quem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.

Autor : Agostinho da Silva
in 'Poemas'

sexta-feira, 24 de março de 2017

Apesar das Ruínas


Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Autor:Sophia de Mello Breyner Andresen
in 'Antologia Poética'

quinta-feira, 23 de março de 2017

115




Fosse o rio
abraçaria o mar.
Fosse mar
abraçaria o ar.
Fosse ar
abraçaria o fogo.
Seria então
todo.

Autor : Fernando Paixão
In De Fogo dos Rios (1989)

terça-feira, 21 de março de 2017

Pai




ionut caras

Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei. 

Autor : José Luís Peixoto 
in 'Morreste-me' página 13/14