domingo, 19 de março de 2017

Pai

Mikael Aldo

A chuva parou, e a lágrima já não cai.
Secou, quando tive a certeza
que a tua partida inevitável
fazia parte do mistério da vida
ou, se calhar da morte.

Sim, é mais assertiva.

Comigo transporto o teu nome,
ou parte dele.

E é uma bênção.

Autor : BeatriceM 2017-03-19

sábado, 18 de março de 2017

O pequeno sismo

mikael aldo

Há um pequeno sismo em qualquer parte
ao dizeres o meu nome.

Elevas-me à altura da tua boca
lentamente
para não me desfolhares.
Tremo como se tivera
quinze anos e toda a terra
fosse leve.
Ó indizível primavera!

Autor : Eugénio de Andrade

sexta-feira, 17 de março de 2017

De mim para mim com amor

Jantina Peperkamp

Desatei o laço
do ramo de rosas
que comprei
na florista
para mim
Abracei-as desatadas
soltas
rosas da cor do sol, do sangue, do fogo
resplandecentes
húmidas do orvalho
cúmplice
que a florista quis que tivessem
E rocei os lábios pelas pétalas
deleitada
evocando o prazer que terias
se fosses tu a dar-mas.

Autor:Ângela Leite
in Metáforas Sobre o Amor

quinta-feira, 16 de março de 2017

De novo a montanha

Diggie Vitt

De novo a montanha e um silêncio íntimo
Em que percorro veredas d´água. E o magma
E nesse fogo se condensam estalactites. Afectos agora
Evanescentes. Essências matriciais ainda.

Fecha-se o círculo. Em redor as brumas
E os rostos. E os cheiros. E esta pedra
Em que trôpego desfaleço. A febre quente.
E o suor frio. E o grito d´alma que voa
Qual corrente. Veleiro sem regresso
Nem destino certo...

A vida? Esquivas corsas que de tão lestas
Se pressentem e apenas no rasto se iluminam.
Fortuitas são as horas. Não o caçador negro
Nem o coração da pedra. Apenas a água
(E sal da lágrima) são lírios e são heras.

Guardo sôfrego este silêncio e me retiro.
O fogo é agora esta paixão de nada: o eco de calcário
E meus dedos brasa. Poeira e caliça.

E muros derrubados.
E esta centelha viva que na queda
Se derrama.

Fim de tarde
Que no declinar do sol
Se incendeia.

Autor : Manuel Veiga
 "Do Esplendor das Coisas Possíveis" - Poética Edições
Lisboa Abril  2016

quarta-feira, 15 de março de 2017

Um outro tanto

Metin Demiralay

Não sei como consigo
amar-te tanto
se querer-te assim na minha fantasia
é amar-te em mim
e não saber já quando
de querer-te mais eu vou morrer um dia
perseguir a paixão até ao fim é pouco
exijo tudo até perder-me
enquanto, e de um jeito tal que desconhecia
poder amar-te ainda
um outro tanto

Autor : Maria Teresa Horta

terça-feira, 14 de março de 2017

Apenas areia



Thomas Eakins

Sou o pó
E vou no vento
Através de rios
E montes
Vou no vento
E talvez eu pouse
Talvez encontre
O mel as areias
Do teu corpo
Trazidas pelo vento

Autor : António Ramos Rosa

domingo, 12 de março de 2017

Adeus



Despi-me do orgulho e de todos os subterfúgios
Que ainda sobreviviam em mim
Embora – desnuda
Afaguei palavras
Que te ofereci na limpidez
De um verbo –- apenas.


Era tarde
Disseste-me
E eu novamente parti
.
Autor : BeatriceM 16/09/2012
(reeditado)

sábado, 11 de março de 2017

Mais Beijos


Devagar...
outro beijo... outro ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!
Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!
Sim, amor...
deixa que se alongue mais
este momento breve!...
que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
e nos leve!

Autor: Judith Teixeira
Foto:Szara Reneta http://plfoto.com/zdjecie,ludzie,trzy-gwiazdki,2129815.html

quinta-feira, 9 de março de 2017

Fado


Que te ditam os meus versos
Quando me pedes para te escrever um poema?
Que pele reveste a tua alma
Quando na escrita me encontras?
Que sentimento é este que soa
Por entre as cordas da guitarra?
Um amor lento de final de tarde?
Um olhar quase cansado e caído
Por entre os véus da noite?
Uma lágrima que encontra
Conforto nos lábios que afagas?
Um grito de amor
Numa garganta muda?
Que alma é esta que te procura
No adiar dos dias
E que mata a sede
No teu corpo cevado?
Que pesar este o de te amar
Numa demora que não é a minha
Nesta folhagem de Outono
Quando é de azul-mar que te matizo?
Que sentimento é este
Vivido intensamente nestes dias partidos
Repletos de partidas e chegadas
De abraços e de confissões?
Que amor é este que de tanto se querer
Tudo tem para dar?
Que paixão é esta que não pesa na alma
E liberta o espírito
Sempre que de sorriso te revivo
Serás tu alma igual à minha

Que sente nas veias este fado?


Autor : Madalena Palma
Foto: Żaba-Ewa

quarta-feira, 8 de março de 2017

esplanadas

Eduard Gordeev


Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria

Autor: José Tolentino Mendonça

domingo, 5 de março de 2017

quero

Katia Chausheva

quero o teu abraço
não no destempo, do tempo
mas agora! enquanto ainda
há tempo.

Autor : BeatriceM

sábado, 4 de março de 2017

...

Achraf Baznani

"Se pudesse zangava-se. Sacudia o saco da tristeza. Se pudesse isolava-se. Passava a ser um nobre eremita, sem relações íntimas nem ambições. Qualquer ambição sugere-lhe logo a preguiça e a certeza da derrota merecida. Se pudesse tornava-se irascível, sarcástico e impossível de aturar. Em vez de não o convidarem por não se lembrarem dele, passavam a não o convidar por se lembrarem demasiado bem dele. Queria passar a sofrer da solidão de não querer.Este silêncio é que não."
.
Autor: Pedro Paixão“Café Instantâneo”
in Viver Todos os Dias Cansa

sexta-feira, 3 de março de 2017

Entregámo-nos

Neil Driver

Entregámo-nos
um ao outro
dentro dos lençóis
brancos
à tarde
e agora sabemos
e não sabemos
um do outro
escrevemo-nos
escrevemos

Autor : Adília Lopes

quinta-feira, 2 de março de 2017

...


Leszek Paradowski

Pobres cavalos que há em 'mim'
Tanto desejo chegar
Que acabo por ficar
Onde o princípio é o fim.

Autor: LuisM Castanheira

quarta-feira, 1 de março de 2017

4

Omar Ortiz

com que palavras irei escrever agora o nome
das horas que entram pela cama em que noutra vida
te ensinei o caminho do meu corpo
e da justeza dos gestos com que a alegria
se desenhava em mim quando dizias
agosto tu vais ver é a nossa pátria

nessa altura o verão vinha ainda muito longe
e por isso era possível acreditar em frases dessas
esperando que tudo acontecesse
como nos perdoáveis lugares-comuns dos filmes
que estreiam sempre no natal
e furiosamente desejei que a paixão se enredasse
entre os limos e sargaços das tuas pernas

mas agosto foi apenas um lugar de emboscadas
em todos os precipícios da nossa cama
e lentamente as águas definiram
com rigor implacável
o que sobrava de ti nas minhas mãos
e o silêncio baixou sobre as águas
como antes da invenção do mundo

e agora não sei onde acaba o teu nome

e começa o nome de deus

Autor : Alice Vieira
in DOIS CORPOS TOMBANDO NA ÁGUA
Pág 74 ( Editorial Caminho, 2007)