domingo, 30 de outubro de 2016

Mentiras

KatiaChausheva


Nunca uma mentira me soube tão mal, e tão bem, momentaneamente.
 Olhaste para mim e disseste:
-gosto de  ostras,
 e eu repliquei convicta e serena:
-adoro!
Olhaste-me desconfiado
E eu com um olhar ingénuo e seguro, fiquei calada
Sorrindo intimamente, completamente deliciada.
Eu nunca comi ostras!
Mas valeu a mentira pelo olhar incrédulo e belo que mostraste.

Autor : BeatriceMar

sábado, 29 de outubro de 2016

É tarde

Federico_Erra

É tarde
Não venhas buscar a tua ausência
Já passou
Mas se um dia regressares
Devolve a nossa música
Envolve-me no silêncio dos teus gritos
Amor
Se um dia regressares
Ternura-me
Abre o sono dos meus olhos
Como se os teus lábios fossem os ponteiros de um beijo
Se um dia regressares
Não venhas para buscar a tua ausência
Vem para devolver o primeiro beijo
Porque este é o último poema que te escrevo

Autor  - Heduardo Kiesse.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Retrato de Mulher Triste

Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Autor : Cecília Meireles
in 'Poemas (1942-1959)'

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pior que não Cantar

Trini Schutz

Pior que não cantar
é cantar sem saber o que se canta

Pior que não gritar
é gritar só porque um grito algures se levanta

Pior que não andar
é ir andando atrás de alguém que manda

Sem amor e sem raiva as bandeiras são pano
que só vento electriza
em ruidosa confusão
de engano

A Revolução
não se burocratiza


Autor : Mário Dionísio
in 'Terceira Idade' 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Arte Poética




Trini Schultz
Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Autor : Adília Lopes
in 'Um Jogo Bastante Perigoso'

terça-feira, 25 de outubro de 2016

felicidade

Ashraful Arefin

eram os dias um diamante
burilado a cada corrida
era feliz
desconhecia.

Autor : Pedro Teixeira Neves

domingo, 23 de outubro de 2016

estados

anna o. photography

trespassadas na laringe
esgotei as palavras,
perdia-as,
e nem me importa.

não sei viver
com esta dor impregnada na alma
a preencher-me os dias
a enrolar-me as lágrimas.

mas ainda sei  sonhar sóis,
amanhã,
sei e sinto que,
virão aquecer-me o corpo e a alma.


Autor : BeatriceMar

sábado, 22 de outubro de 2016

Dá-me a tua mão

Natália Drepina


Dá-me a tua mão,
Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
– para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

Autor : José Gomes Ferreira

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

O espírito

Trini Schultz

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
A vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

Autor : Natália Correia

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

As Facas


kylli sparre

Quatro letras nos matam quatro facas
que no corpo me gravam o teu nome.
Quatro facas amor com que me matas
sem que eu mate esta sede e esta fome.

Este amor é de guerra. (De arma branca).
Amando ataco amando contra-atacas
este amor é de sangue que não estanca.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Armado estou de amor. E desarmado.
Morro assaltando morro se me assaltas.
E em cada assalto sou assassinado.

Quatro letras amor com que me matas.
E as facas ferem mais quando me faltas.
Quatro letras nos matam quatro facas.

Autor : Manuel Alegre

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Pai



Os meus dias caíram na água
como um naufrágio de folhas secas.
Caminho lentamente para a idade
com que partiste.
Observo um poente antigo por trás
do teu nome; cega-me
o esplendor desse mistério.
Levanta-se uma revoada de pássaros
num horizonte de neblina.
Confio ser esse o tempo que nos separa

.Autor : Eduardo Bettencourt Pinto

domingo, 16 de outubro de 2016

...

Paolo Barzman

e eu sei que resisto
cansada e esperançosa

na palavra que o vento alado
traz no meu sentimento

hoje a cidade grande estava vazia
de ti e de nós

Autor : BeatriceMar

sábado, 15 de outubro de 2016

Anoitece em Inferno a Minha Casa

christian schloe
Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.

Autor : Helga Moreira
in 'Os Dias Todos Assim'

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

...

josephine cardin

Na penumbra dos ombros é que tudo começa
quando subitamente só a noite nos vê
E nos abre uma porta nos aponta uma seta

para sermos de novo quem deixámos de ser

Autor : David Mourâo-Ferreira
in OBRA POÉTICA (Ed. Presença, 1988)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Corpo Ausente

Natália Drepina
Mistério, esse, o da vida...
Aquele que morre nos ponteiros do tempo
Das almas guardadas num oceano sem fundo
Porque os corpos já não comandam
Os dias que passam, inúteis...

Guardei no bolso o sonho
Porque nos olhos já não cabia!
Era grande demais, e os olhos são pequenos...
O bolso, é fundo e escuro
Acomoda a eternidade do que é utópico.

Tomo café, ainda assim, todas as manhãs
Com os raios de sol que cabem nas palmas das minhas mãos
E vêm plantar esperança na seiva que corre em mim.

E na sombra da minha silhueta
Planto o silêncio que o vento afaga
Trémulas, as minhas mãos? Não!
Fazem parte do meu corpo ausente
Que adormeceu, há muito, nos braços da terra.

Autor : Cecília Vilas Boas
in O Eco do Silêncio(Esfera do Caos 2012)