sábado, 24 de julho de 2010

Tudo o que ficou por dizer



Tudo o que ficou por dizer
porque de repente
era a hora do combóio
ou um telefone longínquo tocava
ou um qualquer acidente aconteceu.

Tudo o que ficou por dizer
porque o pudor calou a voz
porque um orgulho surdo a interrompeu
porque as palavras talvez já nem chegassem
ou era tarde
e o cansaço aos poucos foi levando a melhor.

Tudo o que ficou por dizer
porque a dor doía em demasia
e era necessário que as palavras
fossem capazes de ser claras como o ar
porque as palavras traem
como gumes de facas que nos cortam.

Tudo o que ficou por dizer
porque a tristeza apertou tanto a garganta
que nenhum som saía
nem o olhar continha
em desespero
uma lágrima ainda assim contida.

Tudo o que ficou por dizer
porque o tempo urgente
se esvaía
e de repente já não estava
no lugar a quem havia que o dizer
quem ainda há pouco nos ouvia.

Tudo o que ficou por dizer
e tudo
o que ficou por dizer
ou tudo
sempre
por dizer.
.
Autor: Bernardo Pinto de Almeida
Foto:Komarek66

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Esta manhã encontrei o teu nome



Esta manhã encontrei o teu nome nos meus sonhos
e o teu perfume a transpirar na minha pele. E o corpo
doeu-me onde antes os teus dedos foram aves
de verão e a tua boca deixou um rasto de canções.

No abrigo da noite, soubeste ser o vento na minha
camisola; e eu despi-a para ti, a dar-te um coração
que era o resto da vida - como um peixe respira
na rede mais exausta. Nem mesmo à despedida

foram os gestos contundentes: tudo o que vem de ti
é um poema. Contudo, ao acordar, a solidão sulcara
um vale nos cobertores e o meu corpo era de novo
um trilho abandonado na paisagem. Sentei-me na cama

e repeti devagar o teu nome, o nome dos meus sonhos,
mas as sílabas caíam no fim das palavras, a dor esgota
as forças, são frios os batentes nas portas da manhã.

Autor:Maria do Rosário Pedreira
Foto:Marasm

domingo, 18 de julho de 2010

Esta noite

esta noite
senti o mar incendiar-se
nas tuas mãos

arderam os olhos
nas tuas mão inteiras
enormes

esta noite no teu peito
inventei estrelas
que não conhecia
.

Autor:Luis Rodrigues
Foto:fotoalterego http://plfoto.com/zdjecie,akt,bez-tytulu,2140002.html

sábado, 10 de julho de 2010

A mulher desconhecida



é muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
o doce amor
.
Autor:José Tolentino Mendonça
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida, Assírio & A
Foto:holethrom

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Queria.....



Queria dizer-te que já abandonei os barcos. Queria que soubesses. Queria dizer-te que agora já não existem motivos para que partas, já não te troco pelo mar e os barcos são só memória. Mas é a tua que se sobrepõe a todas as outras memórias mesmo sendo a água a primeira memória da humanidade.

Só queria que soubesses isso. Que abandonei os barcos

Agora para matar o tempo, para que saibas também, passeio pela beira-mar na praia que foi a nossa no cabo do mundo. E se um dia resolveres regressar nem a vais reconhecer…

Autor:João Marinheiro
Foto:komarek66

quinta-feira, 8 de julho de 2010

sede


Bebi um verso,
Sôfrego de cor,
No calor-do-não-estar-aqui…
Bebi-o!
Todo,
para respirar
e
perder-me no olhar,
sem dor,
por ali…
.
Autor:Almaro
Foto:Szarareneta

domingo, 4 de julho de 2010

Vagueio

Vagueio por caminhos perdidos a fim de me encontrar
Escondo sentimentos mas divulgo emoções
Escrevo palavras que me escorrem pelos olhos
Ignoro diários inacabados por ausência de coragem e
Adopto hábitos solitários que me enternecem por breves segundos mas que me abatem por longas horas.

No fundo, até a ínfima parte do meu ser esperneia para que voltemos a ser um só.
Tu e Eu, apenas.

Autor:Petra Correia

Foto:RCotton

sábado, 3 de julho de 2010

Toma-me

Toma-me
em teus braços
d’enlaços feitos.
Faz-me princesa dos teus actos,
(ou boneca de trapos)
coroa-me de boquets diademados
d’ hortenses d’algas e sargaços...

Mata a sede antiga
de te sentir a palpitar de lés-a-lés
edificado em mim, que, musa ou diva,
cederei ao desejo incontido
de ser em ti, de ti, poema, livro aberto,
mapa de um mundo secreto
e só nosso,
bonança e porto de abrigo

ou água …

simplemente água, livre e solta,
a explodir-se saliva no céu-da-boca
nos poros da alma
e nos corpos exaltados
os nossos corpos, amado, fundidos e nus
em palco divino de estrelas e de astros
afixos.

Mostra-me, se fores capaz,
a lua p’los teus olhos
os prados largos
e o sol alcantilado
nos delírios de ninfas e faunos.

Ofereço-te este mapa de marés…
.
Autor:Boneca de Trapos http://emsaltosaltos.blogspot.com/
Foto:GosiaMakova

sexta-feira, 25 de junho de 2010

onde



Onde quer que o encontres -
escrito, rasgado ou desenhado:
na areia, no papel, na casca de uma
árvore, na pele de um muro,
no ar que atavessa de repente
a tua voz, na terra apodrecida
sobe o meu corpo - é teu

para sempre, o meu nome.



Autora :Maria do Rosário Pedreira de Os Nomes de Familia em Nenhum Nome Depois, ed. Gótica Lisboa, 2004
Foto:
Komarek66

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Retrato do poeta quando jovem

José Saramago
16-11-1922
18-06-2o1o



Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.



Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.



Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.



Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.



Autor :José Saramago


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Vem

Vem.
Vem comigo
Cansados de amor
mergulhemos juntos na noite
no silêncio dos amantes

amor amor amor
repete comigo
as palavras que nos dão paz.

Autor:Luis Rodrigues

terça-feira, 15 de junho de 2010

Beijar-te


Beijar-te será desvendar
O gosto puro nos teus olhos
Em berço largo de candura.
Será entrar no anel de fogo
Que inunda, sem o saberes,
A tua carne embriagada
Pela entrega com loucura.
Será reconhecer as aves intactas
Que voam inocentes
No sorriso delicado do teu rosto.
Será incendiar-te,
Afogar-te o peito erguido
Com as chamas dos meus braços.
Será rasgar a minha fronte
Para que a tua se alague
Da nudez divinal que te habita.
Será sussurrar-te palavras com rastilhos
Até que atices a pólvora
Da desordem do meu grito sobre o teu.
Beijar-te, será coabitar-te
Até que eu morra
A cada espasmo que te mate.


Autor Nilson Barcelli http://nimbypolis.blogspot.com/
Foto:Leszek

sábado, 12 de junho de 2010

Tentei desenhar os teus olhos de mar


Tentei desenhar os teus olhos de mar,
para poder um dia saber ensinar a menina das ondas a sonhar…
Não encontrei lápis nem pincel,
só a cor andava por perto a voar…
Difícil tarefa,
esta de ensinar a contar,
cada lágrima do mar,
quando cada uma tem em seu tamanho o Universo a chorar…
Nuvem, mar ou rio, é tudo o mesmo verso…
Amar é cousa séria, de saberes antigos, mistérios que não se ensinam, porque o sentir não é ter, mas dar.
Só te sei ensinar a voar, isso é cousa simples, não é preciso inventar, basta ir com o Ver, sentir a brisa a bater
e Ser…
Só te peço que não fiques, ficar estraga tudo,
até o sonhar.
Mesmo que fiques aí a olhar,
vai,
mesmo que seja pelo mar…

Autor:Almaro
2005-09-02
Foto:Goodnight

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Sexta Poética 38

Maria Aurora Carvalho Homem

13/11/1939
11/06/2010


A palavra não chega a ser murmúrio
Mastigo-a na sombra a intervalos breves:
é um dizer silencioso
um tempo sem rosto
uma ausência presente em cada gesto.
A palavra viaja no meu corpo
prendo-a na franja dos olhos
corrompe a limpidez da distância
na precisão incolor dos dias.
É cardo, gume, alfazema e jasmim.
Persigo-a neste gesto de quem quer.
A palavra é este olhar de tudo cheio
este cheiro de noite
este acaso de nada
adágio sufocado em catedral vazia
vôo raso de pássaro vadio.
A palavra tem rosto de mulher
olhar de noiva eternamente virgem
é a pele que me veste cada dia
e que me despe à noite devagar.
Faço-a minha na ternura calada
de quem desfolha rosas no outono.
Caladas nos dizemos:
amantes confessados.

Autora: Maria Aurora Carvalho Homem

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A nudez das palavras



Da boca brotam as palavras interdita
se
dentro de mim soltam-se as amarras
liberando tudo
o que eu tinha querido guardar
ficou somente
o desejo de querer compartilhar contigo
este fogo
que me transporta ao mais profundo de ti
e
em noites de transmutação
fico mudo quando a nudez das palavras
me conduzem
a este estranho sonho
de te ter tão longe e tão perto
.
Autor:Rogério Saviniano Telo
Foto:Stefers