terça-feira, 26 de agosto de 2008


Encontrei uma lágrima,
sozinha,
perdida.
Colhi-a e sorriu-me com todas as cores de um reflexo.
Agarrei em tintas e misturei-a em forma de flor.
Não lhe dei nome,
só lhe sinto a cor que me cobriu a dor…
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Autor : @ almaro — August 29, 2005
Foto:Kátia Chausheva

domingo, 24 de agosto de 2008

Tal como antigamente


Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair
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Autor:Antonio Ramos Rosa
Foto:JP.Sousa

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

mergulho

na hora esquiva
das águas apurando
dias em ilhas alheias
ao sal me conservo
dentro dos ossos
experimentando
o nascimento de asas
translúcidas
e vôo
pássaro
o bico aponta
meu peito
e ronda meu corpo
mergulhado
em acasos
de sargaços e peixes
diáfanos
e eu
raramente em mim
concha adversa
me fecho
nessa mudez que pesca o verso
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Autor: Pavitra
Foto:Agnieska Motyka

terça-feira, 19 de agosto de 2008

mareantes na tua face de eremita


Sabemos que não há esquecimento que afogue o nosso beijo, tão distante e ansiado, que ainda não foi dado. Sabemos do livre e fácil emergir no mar dos nossos gestos, a remar até à praia do nosso contentamento. E também sabemos, que em ti, na luz do teu rosto, eu saberia ocultar-me de mim mesmo, estilhaçar grilhetas solitárias e sermos num abraço, suave como penas, dois corpos num só corpo no tempo quedo apenas. Mas espanta comigo o desalento, porque ambos sabemos que há mais ensejos que marés ou mareantes na tua face de eremita.

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Autor:NilsonBarcelli
30/agosto/2005
Foto:GaudimM

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

dos loucos



Sei dos dementes,
sei da rouquidão dos gritos,
sei do aflito rasgar-se
dos gemidos.
Amo.
É isso.
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Autor:Saramar

domingo, 17 de agosto de 2008

Elegia por antecipaçao à minha morte tranquila



Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte, quando quiseres.
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Autor :Armindo Rodrigues
Foto:_-_Eau_-_

sábado, 16 de agosto de 2008

mocho cego


as palavras não me dizem. nada. já não! desfazem-se no(s) silêncio(s). caídas. sozinhas. no vazio das letras sem sentido(s). delas. os meus, já não se desenham. nelas. desenformam-se deformadas em nuvens-de-pó, de giz colorido nas-chuvas-de-estio, em vapores-de-solidão-desabraçada, nas noites de mocho-cego. macho. enfeitiçado. as palavras não me dizem. correm sem mim, no poema que não fiz. é dia de poetas. estou surdo. invento vazios.
cinzentos.
e
as palavras. aqui.
e
eu sem mim.

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Autor: almaro @
Foto:KuSiu

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

depois do



Depois
do cheiro doce dos cavalos
e depois
do sol beijar a sombra
das nogueiras
e depois
dos corpos se encontrarem
junto ao verão
depois disso não faz falta
mais nenhum lugar na mesa
nem nos olhos
dos pardais.
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Autor: Vasco Pontes
Foto:Kwandrans

quarta-feira, 13 de agosto de 2008



....Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:...

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Autor :António Lobo Antunes
Foto:KarooI

terça-feira, 12 de agosto de 2008


um dia desenhei uma lágrima…

tinha as cores todas de uma semente…

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Autor: Almaro
Foto:Yousey

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Do Poema




O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Autor :Casimiro de Brito
Canto Adolescente, 1961
Foto:Paulo Rebelo Lorient


...Quarta-feira foi ontem e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele e nem sequer me viu. Ter-me-á visto alguma vez? Em todos os canais de televisão só passam novelas brasileiras....



Autor : António Lobo Antunes

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Soliloquio

Minhas mãos esfaceladas

pelas águas revoltas

libertam as impurezas

que num gesto infrutífero

tento desprender

para um esconderijo

distraído dessas marés

que chegam e abalam

que lambem a areia

como um réprobo

reza a sua última prece
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Autor:© Piedade Araújo Sol

17/08/2005

Foto:Paulo César

Modelo:Paulo Madeira

terça-feira, 5 de agosto de 2008

já não sei

Já não sei da ternura nos teus lábios
A carícia das tuas mãos
O amor pleno nos teus olhos
Já não sei de mim
Ou de ti que foste embora
Já não sei
Dos dias calmos quando passeávamos de mãos dadas
Pelo entardecer do rio
O adormecer do sol quente
O vento meigo
Já não sei.

Autor:joão marinheiro 2007

quinta-feira, 24 de julho de 2008

escrevo contra o medo

o quarto é branco e tem uma reprodução de Las Meninas pendurada na parede em frente à cama, por cima da cómoda. na outra parede, à direita de quem entra, o espelho onde nunca me encontro devolve-me a imagem desfocada doutro quarto, roupa espalhada pelo chão, livros, cadeiras, uma jarra com flores murchas…
não consigo dormir embora já tenha engolido uma dose dupla de soníferos. tenho o caderno onde escrevo assente numa prancheta de madeira. espera-me uma infindável noite, escrevo contra o medo.
o metal da lua nova perfura-me a memória com as suas claridades. uma aranha cinzenta, minúscula, tece argênteas teias de sombra ao canto do espelho redondo da cómoda. são quatro e meia da manhã, pelo menos aqui dentro do quarto. lá fora, é possível que ainda não seja tão tarde, ou não tenha dado hora nenhuma, ou ainda seja cedo lá fora e aqui dentro o tempo não exista.
por isso sonho com uma velhice silenciosa e melancólica, a mão esquecida sobre a cabeça de um cão. o olhar preso ao cíclico fascínio das águas e dos jardins. sonho com uma velhice onde a solidão não doa. solidão superpovoada de amigos, de silhuetas andróginas para o amor, de rostos belos como sensações de sorrisos, de mãos que aprenderam a falar.
uma ave liquefaz-se na luminosidade e escorre para os olhos, desce voando sobre a boca. a noite magoa nesta água esvoaçante. de mim me depeço, como um barco que solta as velas e zarpa ao entardecer, tacteio o caminho do horizonte ao encontro da manhã. a noite corrói, quando descubro que ainda sou capaz de amar.
que claridade explode dentro de mim?
que incertezas me devolve este navegar?
quase me esqueci de que não estou sozinho. toco ao de leve no rosto de M., o coração deixa de sangrar. olho-o dormir a meu lado, longe da minha insónia. ergo-me para o vácuo que nos envolve e chamo por mim. pouco me interessa o que possa acontecer quando acordares, vi os dragões da minha infância flutuarem no vento da alba. olho-te, e isso basta.
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Al Berto, in O Medo
Foto:JP.SOUSA