domingo, 31 de agosto de 2025

Matéria de Afecto


acho que fui pluma
na tua mão —
vontade insensata
de me quereres inteira.

Em dias cálidos,
noites arrefecidas,
tardes escurecidas.

Acho que fui intimidade:
corpo saciado
de um tempo adiado.

Autor:BeatriceM 2025-08-31

sábado, 30 de agosto de 2025

Nas cidades de onde venho


Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.

Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!

E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos

Autor : Victor Oliveira Mateus
In “Pelo deserto as minhas mãos”
Imagem : Michael Zahornacky

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

o peso dos livros


Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O céu

Oleg Oprisco


O céu
Assoam-se-me à alma,quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.

Autor :Luís Miguel Nava

domingo, 24 de agosto de 2025

Entre Linhas


não sei se é loucura
ou sanidade
esta ânsia de me fundir nos livros
que me completam.

sou parte da história,
sou a ausência da heroína,
perco-me nos enredos
onde me enleio,
me enrosco
e sonho —
sem saber ao certo
se está escrito,
se li
ou imaginei
as palavras com que teço
os acasos do meu fado.

Autor:BeatriceM 2025-08-24

sábado, 23 de agosto de 2025

O escritor

ele disse não sei por que escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas.

ele disse eu te amo.

ele disse tenho medo de que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei por que você continua escrevendo
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem é você?

Autor:José Luis Peixoto

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

As Palavras


Acordei cedo, com o cantar dos pássaros
Que sobrevoavam a minha janela insistentemente
- Já vou! Disse...
Penteei os cabelos desgrenhados do sonho na noite
Assomei-me ao parapeito e dei-lhes de beber nas minhas mãos.

Os raios de sol aqueceram o meu corpo franzino
A aragem matinal fez-me uma carícia
Toquei as cores do dia, com os meus dedos.

Fechei a janela, guardei os sonhos numa caixinha
Estavam felizes, prometeram voltar ao cair da noite...
Tomei um duche perfumado e saí, nas asas dos pássaros.


Madrugada de Cecília Vilas Boas
in “O Eco do Silêncio”
Imagem : marcin laskarzewski

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

    O poema, senhores,
    não fede
    nem cheira

Autor : Ferreira Gullar
 in 'Antologia Poética'

domingo, 17 de agosto de 2025

Sopros


É verão.
Poléns chegam-me ao corpo,
flores desabrocham,
e eu preciso colorir a fantasia —
transformar-me em flor,
talvez uma papoila do campo.

Autor:BeatriceM 2025-08-17
Imagem : Andrea Kiss



sábado, 16 de agosto de 2025

Mordo a Terra


Mordo a terra.
A terra
tem um gosto
a espanto,
tem um gosto
a vida,
tem um gosto
a suor,
tem um gosto
a estrume,
tem um gosto
a sol.

Autor : Armindo Rodrigues
Poema do livro, “Rio sem fim (XLV)”
Imagem : Nicole Burton

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Contigo sinto ‘nós’

Contigo sinto ‘nós’
e não sei o que possa querer dizer

‘Nós’ é aqui
disso tenho a certeza

Autor: Rosa Alice Branco

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Completas

Ildiko Neer

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Autor  : Manuel António Pina
in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”

domingo, 10 de agosto de 2025

Desvios

Sanna Lee

Ando encoberta
num jogo de faz de conta
que me seduz,
que me inebria —
e, em completo desvairo,
escondo-me de mim.

Autor:BeatriceM 2025-08-10

sábado, 9 de agosto de 2025

Tu choravas

Katia Chausheva

Tu choravas e eu ia apagando
com os meus beijos os rastos das tuas lágrimas
– riscos na areia mole e quente do teu rosto.
Choravas como quem se procura.
E eu descobria mundos, inventava nomes,
enquanto ia espremendo com as mãos
o meu sangue todo no teu sangue.
Não sei se o mundo existia e nós
existiamos realmente.
Sei que tudo estava suspenso,
esperando não sei que grave acontecimento,
e que milhares de insectos paravam e
zumbiam nos meus sentidos.
Só a minha boca era uma abelha inquieta
percorrendo e picando o teu corpo de beijos.
Depois só dei pela manhã,
a manhã atrevida,
entrando devagar, muito devagar e
acordando-me.
Desviei os meus olhos para ti:
ao longo do teu corpo morriam as estrelas.
A noite partira. E, lentamente,
o sol rompeu no céu da tua boca.

Autor : Albano Martins

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Vou ter saudades


Sanya Khomenko


Vou ter saudades do teu olhar,
escuro, intenso, difícil de parar.
Do jeito calado que diz sem falar,
e me fazia inteira só de te escutar.

Vou ter saudades dos beijos que davas,
da pressa nos lábios, das pausas bravas.
Do sabor que ficava depois de nós,
do silêncio quente que falava por vós.

Vou ter saudades do teu italiano,
dito tão baixo, tão puro, tão plano.
Das frases soltas, ditas devagar,
como quem ama sem se entregar.

Vou ter saudades dos brancos no cabelo,
faziam-te homem, sem qualquer apelo.
Mostravam histórias que nunca contaste,
e um certo encanto que nunca explicaste.

Vou ter saudades do que não ficou,
do toque, do riso, de tudo o que sou.
E mesmo sem teres ficado até ao fim,
levaste contigo o melhor de mim.

Autor : Raquel Gonçalves

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

O mundo todo

 

Vitaly Sokolovsky

vou buscar-te ao fim da tarde,
porque a noite só escurece contigo ao
meu lado, porque a noite aprende por ti
o caminho aberto das estrelas

vou buscar-te ao fim da tarde,
e verás como preparei a casa, como
escolhi a música, como, enfim, espalhei
os objectos mais impressionados contigo,
os que ganharam vida por se interporem
na espessura estreita que vai do meu
ao teu coração

e não mais te devolvo, correndo todos os
riscos de não amanhecer nunca
numa loucura propositada por ti

não mais te devolvo,
ocuparás o mundo debaixo e sobre mim,
e não haverá mais mundo sem que seja assim.

Autor : valter hugo mãe
 in Contabilidade

domingo, 3 de agosto de 2025

Partida


Em memória da M.S.F
.

Procuro-te pelas ruas da cidade,
uma nesga da tua figura.

Caminho com o olhar apressado
e os passos em desordem.

Quero ver um gesto, um movimento.
Respiro... com ansiedade.

E sei: nunca mais estarás —
nem em passos,nem em presença.

A tua viagem foi de bilhete só de ida.
Não há volta.

Partiste entre as paredes quentes de um verão
que não se anunciou.

Que a paz te receba
em jeito de anjo-da-guarda.

Autor:BeatriceM 2025-08-03

sábado, 2 de agosto de 2025

Nunca Envelhecerás

Ludmila Yilmaz


A tua cabeleira 
é já grisalha ou mesmo branca? 
Para mim é toda loira 
e circundada de estrelas. 
Sobre ela 
o tempo não poisou
o inverno dos anos
que se escoam maldosos
insinuando rugas, fios brancos... 

Ao teu corpo colou-se 
o vestido de seda, 
como segunda pele; 
entre os seios pequenos 
viceja perene 
um raminho de cravos... 

Pétalas esguias 
emolduram-te os dedos... 
E revoadas de aves 
traçam ao teu redor 
volutas de primavera. 

Nunca envelhecerás na minha lembrança!... 

Autor : Saúl Dias,
 in "Sangue"

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Cerimónia Funesta


O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.

Autor : Fátima Maldonado