terça-feira, 22 de julho de 2025

este livro


este livro. passa um dedo pela página, sente o papel
como se sentisses a pele do meu corpo, o meu rosto.

este livro tem palavras, esquece as palavras por
momentos. o que temos para dizer não pode ser dito.

sente o peso deste livro. o peso da minha mão sobre
a tua. damos as mãos quando seguras este livro.

não me perguntes quem sou. não me perguntes nada.
eu não sei responder a todas as perguntas do mundo.

pousa os lábios sobre a página, pousa os lábios sobre
o papel. devagar, muito devagar. vamos beijar-nos.

Autor :  José Luis Peixoto
in A casa, a Escuridão, pág 19.
Temas & Debates

domingo, 20 de julho de 2025

o mar onde te espero


o calor e a humidade
colam-se à pele morena,
é tarde, e há um desejo bruto:
ir à praia,
agora, quando está vazia.

avanço com pressa,
quase com raiva,
mergulho sem pensar
e sonho:
um dia encontro-te
sentado,
à minha espera.

Autor:BeatriceM 2025-07-19
Imagem : Natalie Karpushenko

sábado, 19 de julho de 2025

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço
.
Al Berto, Horto de Incêndio
Foto:Lady33

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Angústia


Ensaiamos os dias em trapézios
instáveis. Na superfície movediça
de construções humanas em suspensão.
Segurando na fragilidade do equilíbrio
o prumo da justiça.

Sempre que caímos, por mais que tentemos
evitar a vertigem da ordem, todos os factos
se perdem na dispersão dos elementos.

Autor : Virgínia do Carmo 
Imagem : Ravshaniya

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Cansaço do Canto


As gentes no mercado os locais na praça
os irmãos de guerra pedem-me poesia dizem
se és poeta deves ter em ti poesia.

Mas isso é tão ilógico quanto dizer de alguém
que se é médico deve ter em si humanidade
ou se bate-chapas amor pela folha-de-flandres.

Perdoai, amigos, não sou nenhum animador de rua
nenhum entretém de ocasião nenhum rigoletto –
ponderai se o vosso negócio não será antes rosas
e eu providenciarei os espinhos.

Conjurais-me por beleza. Pois passai ao largo.
Que ideia tão disparatada
que um poeta cante a paixão e por pintassilgue
levando ao chilique peitos arfantes
por cardaços torturados. Estais enganados.

A lua ela mesma pode inspirar
tanto o romântico como o assassino (esse romântico)
e uma florista merca tanto o decesso como o enlace.

Oh pelos cardos me comovo – evitai-me! – e pintassilgo sim
eu canto o cansaço do canto.

Autor : Daniel Jonas

quarta-feira, 16 de julho de 2025

No meu olhar

Kylli Sparre

No meu olhar, voam pássaros inventados
Contos lendários, de príncipes e princesas
Centelhas de ventos sobranceiros
Violetas que perfumam o meu travesseiro.

Vejo névoas que encobrem castelos
Manhãs de bruma em dias soalheiros
Ondas oceânicas, que rebentam nas estrelas
Tudo cabe ali, na fantasia do meu olhar...

Nos meus sonhos perco-me em melancolia
Ainda lembro as brisas aladas do fim da tarde
E as as magnólias do meu jardim...
Onde estão as magnólias do meu jardim?!

Autor : Cecília Vilas Boas
in o Eco do Silêncio (Esfera do Caos,2012

terça-feira, 15 de julho de 2025

Conserto a palavra

Natália Drepina
.
Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio 
Restauro-a 
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro 
Ilumino-a 

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa 
Reunida numa forma comparada à lâmpada 
A um zumbido calado momentaneamente em exame 

Ela não se come como as palavras inteiras 
Mas devora-se a si mesma e restauro-a 
A partir do vómito 
Volto devagar a colocá-la na fome 

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza 
Como um homem nadando para trás 
E sou uma energia para ela 

E ilumino-a 

Autor : Daniel Faria
 in "Homens que São como Lugares Mal Situados"

domingo, 13 de julho de 2025

Ainda Não Sei Partir


pela janela, o céu escurece
a lua impõe-se, lívida,
num horizonte que arde devagar.
penso na viagem —
sonhada, adiada, necessária —
e calo-me, como quem ainda
não sabe se parte,
ou se permanece a olhar.

Autor:BeatriceM 2025-07-12

sábado, 12 de julho de 2025

ainda te falta

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
.
Autor : Albano Martins

sexta-feira, 11 de julho de 2025

A SABEDORIA DAS MARÉS...


O mar devolve o que não lhe pertence,
e acolhe nas entre-linhas das esperas,
as correntes libertas e certas,
onde brotam as águas imparáveis do coração...

Autor : Cristina Fernandes
in, "O Momento Certo

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Uma prosa sobre os gatos


Ildiko Neer

Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidência
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas que acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam de mais à poesia,
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa do tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»,
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
e mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa
.
Autor : Manuel António Pina

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Passos sem memória

Parvana Photography

Olho a janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom-dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.

 Autora : Rosa Alice Branco 
In Soletrar o Dia 

terça-feira, 8 de julho de 2025

Pouco é um Homem

 




Pouco é um homem e, no entanto, nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo.


Autor : Armindo Rodrigues
 in 'Beleza Prometida (XC)'

domingo, 6 de julho de 2025

As areias da praia


Nas dunas,
as areias da praia
são as nossas únicas testemunhas.

E, como sempre,
escorrem por entre os meus dedos.

Autor:BeatriceM 2025-07-05

sábado, 5 de julho de 2025

Palavras minhas

Rosie Hardy

Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.

Autor : Pedro Tamen
in TÁBUA DAS MATÉRIAS – POESIA 1956-1991 (Tertúlia,

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Nesta brisa quase suave

 

Nesta brisa quase suave
de plantas já anoitecidas
quase te toco entre as regas,
e entristeço.

A tua ausência é tão real
como os vastos campos de girassóis
secos, envelhecidos, quase mortos.

Alugo a voz e a expressão
a par de todos os espaços
deste lugar que se inicia.

Tudo isto é simples:
tenho o coração desarrumado.
Vem.

Autor : Filipa Leal
Imagem : Anna Derzhanovskaya

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Quantas vezes me deixei ficar...

 


Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...

Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava

ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,

as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir

e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.


Autor : Victor Oliveira Mateus
In A Irresistível Voz de Ionatos.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Branco


 

 Interessa-me o inconcreto branquejar
da roupa no estendal (o branco, não)

mais do que o peso da água, ver
que o nada não se vê na água a evaporar

na luz do tecido em contraluz interessa-me
o vazio suspenso do vazio

quando a roupa enforma ao vento e sobe
no arame, interessa o risco que sustém a louca nave,
os voos desabitados e a pequena hora de ninguém.

Autor : Rosa Maria Martelo

terça-feira, 1 de julho de 2025

"Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora"

Bogna Altman

Eu poderia dizer que sem a tua boca todas as fontes hão-de secar agora,
a primavera agitar-se-á num desespero verde,
calar-se-á para sempre o grito azul de todas as manhãs.
,
Eu poderia dizer que sem os teus cabelos a chuva não cairá durante séculos,
o inverno recolherá as suas crinas de água
e semeará punhais por toda a terra.
,
Eu poderia dizer que sem os teus olhos nenhuma madrugada rodará o seu vestido de estrelas,
nenhum barco achará o porto,
nenhuma ave encontrará o ninho.
,
Eu poderia dizer que sem os teus seios a loucura apagará fogueiras,
a noite enforcará todas as rosas,
as abelhas terão a morte mais amarga,
as dunas recusarão as mãos do vento.
,
Eu poderia dizer que sem o teu corpo nenhum rio chegará ao mar,
os afogados cantarão o silêncio em todas as praias
e uma dor violenta impedirá o sexo dos amantes.
,
Eu poderia dizer que sem as tuas mãos não haverá uvas nem águias nem corolas,
nenhuma porta se abrirá de novo,
nenhum gesto será mais possível.
,
Oh, meu amor!,
eu poderia dizer tudo,
poderia inventar tudo. Mas não. De ti
direi apenas que não voltas. Ficarei
ainda e sempre e sempre e sempre
à tua espera.
.
Poema XX
.
Autor : Joaquim Pessoa
in " Os Olhos de Isa" (1979)

domingo, 29 de junho de 2025

Testamento


deixo-te o sentimento puro e nu
com que a noite ainda me despe
não deixes que se separe de ti
guarda-o como se eu fosse
um anjo que partiu em dia hostil
e voltou à terra
para te proteger.

Autor:BeatriceM 2025-06-28

sábado, 28 de junho de 2025

E se...

 


E se...

       E se em todos os sonhos eu te busco,   

   eu  te encontro e eu te perco

       E se em todas estradas tu me buscas, tu me encontras e

   tu me perdes

       É que em todas as estradas que eu te busco, que tu me

   encontras, que eu te perco e que tu me perdes. "


Autor - Armindo Lima de Carvalho
- In Antologia do Amor - Tomo II pág. 139
Edições Chiado Editora
Imagem : Vicent Croce

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Não há lugares seguros


Não estamos a salvo, ainda.
Nem dos desfazeres do mundo,
nem dos atrasos da paciência.
Não há lugares seguros onde guardar
equívocos. Nem âncoras que bastem
ao arrasto da solidão.

Não estamos ainda em terra. Não há
farol nem costa. E somos frágeis demais
para tanto mar. Para tanto abismo.
Para tanto.

Não estamos a salvo, ainda.
Nem das coisas inevitáveis.
Nem das coisas sérias e óbvias.

Não há lugares seguros neste mundo.

Autor : Virgínia do Carmo
Imagem : Brooke Shaden

terça-feira, 24 de junho de 2025

Sempre dançaram

 

Sempre dançaram. Mataram. Ergueram
Pedra sobre pedra o seu desejo, o seu espanto.
Tinham de mudar o curso desses rios
tinham de suar. O sonho em ressaca
varria-lhes a vida. Não paravam.

As palavras eram o mais árduo
ofício de inventar. Julgavam que sabiam
com palavras. Os céus lentamente evoluíam
havia sempre a noite e sempre o dia.
nunca suspeitaram que morriam.


Autor: Carlos Poças Falcão
arte nenhuma poesia 1987-2012

domingo, 22 de junho de 2025

Sem abrigo

 


já não procuro abrigo
durmo por aí, ao relento
de um sonho sonhado

não tenho mais as palavras
que dizias com conforto
hoje, apenas uma mortalha.

Autor:BeatriceM 2025-06-21
Imagem : TJ-Drrysdale

sábado, 21 de junho de 2025

Postal

Saul Landell

Chovem pais e filhos sobre os campos,
terrenos de árvores húmidas, outono.
Os pais tentam sempre proteger os filhos,
essa é a natureza que corre nas árvores,
essa é a lei e esse é o sentido. É outono
e não poderia ser outra estação, começou
o frio e a fome, olho a força dos campos
pela janela submersa deste último outono
e compreendo por fim a minha idade:
chovem pais e filhos de mãos dadas.
Lá longe, sou pai. Lá longe, sou filho.

Autor : José Luís Peixoto
In Gaveta de Papéis

sexta-feira, 20 de junho de 2025

AS RAÍZES DO VOO


São as cores?
Ou declarar-me assim a esta árvore?
Num sobressalto, desassossego
lento – as colmeias de ramos e de folhas,
o corpo em curvas densas,
as raízes,
e, delicadamente, o coração

Apaixonar-me e outra vez,
e agora por um tempo de nervura
acesa, o fogo – e sem palavra que chegasse
para habitar o mundo:
são as cores, dir-lhe-ia,
ou os meus olhos?

E se faltar olhar, ouvido, cheiro, mãos,
ver-te sem ver, sentir-te sem sentir:
neste musgo e por dentro
poder perder-me, fingir-me distraída
pelo puro prazer de me fingir,
sem sossego nenhum
– aprender a voar –
pelo desassossego de um dedo
preso à terra

Mas se as asas faltarem,
serão sempre as cores,
uma leve impressão de nervos, digital,
de qualquer coisa
Há-de ser isto assim:
luz para além de azul,
paz muito além do verde a respirar
– ou eu, igual ao sol,
comovendo-me em ar e
por raízes

Autor : Ana Luísa Amaral

quinta-feira, 19 de junho de 2025

O que é um romance

Um romance é aquilo que o autor quiser que seja. O Herberto Helder tem razão quando diz que está tudo misturado: não se sabe quando é que a poesia não dá origem a um romance, quando é que um ensaio não é um romance, quando é que no interior de um ensaio não aparece um poema… Não vejo por que é que essas coisas hão-de ser catalogadas. Há páginas de grandes romances que são grandes páginas de poesia. Bom, mas isto é mais um pressentimento que uma certeza, que o início de uma teoria… É uma interrogação. O meu problema é que sempre li mais prosa que poesia. Na verdade, a poesia aborrece-me mais. Não é bem isso… é no sentido de que ocupa um espaço muito menor nas minhas leituras. A poesia é assim: abro um livro, leio este poema, leio aquele, depois arrumo, um dia volto…


Al Berto, in "Entrevista à revista Ler (1989)"

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Intocável

fiz da pele uma couraça
um escudo uma armadura
um casco de tartaruga

agora ninguém me pega
se pegar não me belisca
se beliscar eu nem sinto

Autor : Líria Porto

terça-feira, 17 de junho de 2025

A pele ia imitando o céu como podia

cristophe gilbert

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo-a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.

Autor : Luís Miguel Nava

domingo, 15 de junho de 2025

O Mar

eu sei que existes
ainda
do outro lado do mar

que também é um pouco meu,
porque só é teu por inteiro
quando o dia vem

eu sei que ainda, na leveza
da tarde, depois do labor,
tu olhas o mar com o meu olhar

no outro lado
e eu, deste lado,
em horas vagas também

eu sei que existes
e tu também sabes
que ainda nos separa

o mar.

Autor:BeatriceM 2025-06-14
Imagem Lizzy

sábado, 14 de junho de 2025

Na Escuridão

 

na escuridão o poema não dói tanto
a luz machuca o poema
provoca uma dor de faca afiada
e o sangue não estanca nunca

na escuridão as palavras parecem mais calmas
mesmo na dor são felizes
como aquele cego que tocava cavaquinho na praia
compunha marchinhas de carnaval
e mesmo sem poder ver a folia
enxergava melhor do que todos nós

Autor : Júlio Saraiva

sexta-feira, 13 de junho de 2025

As vidas que nos habitam


As vidas que nos habitam
Caminho pelo lado da rebentação das ondas ―
o litoral guarda segredo dos meus passos entre
as redes de sal trazidas pelos barcos
e o labirinto das algas ainda agora oferecidas

à praia. Sinto-me à mercê das falésias a riscar
o teu nome na areia; e é como se lentamente
pronunciasse um chamamento triste a que ninguém
acode. Fez-se tarde para os lamentos das sereias:

agora as marés dobam novelos de espuma à roda
dos meus pés, as águas já não transportam
a minha voz, a perder-se sobre as dunas
que os ventos vão desbastando devagar

ao cair da noite. Tenho sempre medo que não voltes.

Autor : Maria do Rosário Pedreira

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Deixaste sombras em todo o caminho


Deixaste sombras em todo o caminho
levaste toda a luz
nas tuas mãos
e nos teus pés
era ainda tão cedo
na sombra fiquei homem
num corpo de criança.

Autor : Luís Rodrigues
https://brancasnuvensnegras.blogspot.com/
Imagem : Adrian Borda

quarta-feira, 11 de junho de 2025

6


esperei por ti em todos os lugares errados
- a quem pedir agora explicações?

viver diziam-me era assim e não havia
mistério nenhum nisso apenas
um roteiro obscuro estabelecido
entre o que tem de acontecer e aquilo
que não acontece nunca

e diziam-me ainda ninguém pode
com justiça reclamar
o que há tantos anos abandonou
num sombrio patamar de prédio suburbano

perdemo-nos então
por pensamentos palavras actos e omissões
e todas as palavras recuaram por infinitos precipícios
sem reconhecerem o som da nossa voz
nem o eco das noites em que todas
nos tinham pertencido

num sombrio patamar de prédio suburbano

Autor : Alice Vieira
Dois Corpos Tombando na Água Pág 26

terça-feira, 10 de junho de 2025

O Sol na Água Pousa

Alado, o sol na água pousa
e dele treme a água amedrontada,
que a ardente imagem lhe devolve em rosa
e em si própria um distante sonho ousa
de céu amargo, que não sonha nada.

Autor : Armindo Rodrigues
Imagem : Pinterest

domingo, 1 de junho de 2025

Memórias de Criança


Já fui criança cheia de brio,
brincava feliz, sem ter desafio.
Minhas bonecas, ao adormecer,
abriam os olhos só para me ver.

Com folhas e fitas, fazia vestidos,
criava encantos, contos perdidos.
Na escola, chamavam-me a magricela,
mas eu era livre, ágil, uma estrela!

Tinha um amigo, o João ruivinho,
sempre gentil, cheio de carinho.
Gostava de pião, jogava tão bem,
girava e dançava sem cair além!

Foi ele que um dia me ensinou
a fazer um papagaio que alto voou.
Com ramos e cola, fita e papel,
subiu pelo vento até tocar o céu!

Fui criança feliz, sonhadora,
desenhava fadas, era encantadora.
Era princesa de um reino sem chão,
feito de sonhos e imaginação!

Autor : BeatriceM
Imagem : Manka Kasha