domingo, 23 de novembro de 2025

Escureço

Escureço comigo

e sei que não verás a minha escuridão
quando digo escureço, quero dizer envelheço
e não sei se é bom ou não
escurecer sem ti,


e hoje é apenas um dia…mas, é mais um dia,
e está frio.

Autor : BeatriceMar 22-11-2015
Imagem : Ilya Kisaradov

sábado, 22 de novembro de 2025

"Não sei como dizer-te que minha voz te procura

GNP

«Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado...»

Autor : Herberto Helder

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

Seu a Seu Dono

A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do corpo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entreabertos
como a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar (pensa ela)
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.

Autor : Rosa Alice Branco
Imagem : Pinterest

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Os Tempos Não


Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
Fala-se de mais nestes tempos (inclusive cala-se).
As palavras esmagam-se entre o silêncio
que as cerca e o silêncio que transportam.
-
É pelo hálito que te conheço
no entanto o mesmo escultor modelou os teus ouvidos
e a minha voz, agora silenciosa porque nestes tempos
fala-se de mais são tempos de poucas palavras.
-
Falo contigo de mais assim me calo e porque
te pertence esta gramática assim te falta
e eis por que não temos nada a perder e por que é
cada vez mais pesada a paz dos cemitérios.

Autor : Manuel António Pina
in Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (Assírio & Alvim, 1974)
Imagem :  Alex Stoddard

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Hoje é o Dia de Todos os Deuses

Hoje é o dia de todos os deuses.
A maresia subirá breve
ao terceiro andar.

Virá como quem pede mais um pouco
desta tarde.
Deixo-me ficar enquanto vou

indecisa como quem não sabe.
Se escolho rainha se rei
só eu decido, só eu sei.

Hoje é o dia de todos os deuses.
A qualquer deles vou pedir
não só a Zeus, não só a Argos,

não só a Afrodite,
a que o amor consente de todos os modos,
à brisa pedirei

que me deixe partir
a voz em arco
e tudo fruir de outro modo

Ainda que hoje não seja o dia
direi
não tenho género ou identificação bastante

que se assemelhe
ao estar
preto no preto branco no branco.


Autor ; Helga Moreira, 
in 'Agora que Falamos de Morrer'
Imagem :Pinterest

terça-feira, 18 de novembro de 2025

com uma pedra


com uma pedra podemos fazer um universo, uma história ou um poema (as pedras servem para tudo, menos para atirar, as pedras são as letras do escultor…)“Engracei com uma pedra. Não pela cor, nem pela forma, mas por estar ali no meio do meu andar.Olhei-a, em conversa (daquelas conversas que temos com todas as coisas que nos entram no olhar e ali ficam a provocar-nos, seja pedra, rio, nuvem, quadro, flor ou coisas outras), mas ela mandou-me seguir caminho.O meu parar incomodava-a “ Sai! Sai da frente! Sai! Não ouves?” Repetiu-se em soluços simpáticos mas insistentes.Fiquei intrigado, porque não a imaginava com olhar. Pedra que é pedra, não tem frente nem costas quanto mais “olhar”.Fui. Na volta tornei a vê-la e parei-me provocador, mas não me disse nada.“Sonhei”, pensei “ lá estás tu com as tuas histórias”, disse-me. Fui com toda a intenção de ir, mas fui interrompido por um sussurro, “Espera! Fica aqui comigo! Preciso de ti!”. “Para quê? Porquê?”, “ Cansei-me de ser pedra! De manhã quando passaste por mim, estava a olhar para aquela papoila, aquela que ali está, a olhar para mim. Quero que me transformes em papoila!”, “Mas tu nunca serás uma papoila! Serás sempre uma pedra!”, “ Tu também já foste menino e agora és homem, porque razão não posso ser papoila?”Agarrei nela e esculpi-a, papoila…O sol encarregou-se de lhe dar cor…”
.
(escrito com a alma de uma pedra a 12/7/2004)

Autor:Almaro

domingo, 16 de novembro de 2025

Tristeza


não escondas a tristeza que te absorve;
deixa as lágrimas correrem livres
até não restar mais dor no peito.

é apenas uma catarse,
e — quem sabe — amanhã,
ou depois,
depois,
um sorriso renasça no teu rosto.

 Autor : BeatriceM 2025-11-16
Imagem : Artur Saribekyan

sábado, 15 de novembro de 2025

Ausência


Boyana Petkova

Fala

Ouvir-te-ei
Ainda que os segredos
As amoras me chamem

Diz-me
Que existirão lágrimas para chorar
Na velhice
Na solidão

Ainda que acordes os olhos dos deuses

Fala

Ouvir-te-ei
A coragem

Alguém de nós que já não está

Autor : Daniel Faria
in "Oxálida"

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Do muro

 

Este muro avança com a estrada,
caminha para o cume e para o vale.
Se eu parasse junto dele, dir-me-ia:
aceito e recuso o movimento,
vou e não vou por vários horizontes,
sou e não sou infindamente.

Autor : fiama hasse pais brandão
as fábulas quasi 2002
Imagem : Pinterest

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira


Um poema é sempre escrito numa língua estrangeira
com os contornos duros das consoantes
com a clara música das vogais
Por isso devemos lê-lo ao nível dos seus sons
e apreendê-lo para além do seu sentido
como se ele fosse um fluente felino verde ou com a cor do fogo
O que de vislumbre em vislumbre iremos compreendendo
será a ágil indolência de sucessivas aberturas
em que veremos as labaredas de um outro sentido
tão selvagem e tão preciosamente puro que anulará o sentido das palavras
É assim que lemos não as palavras já formadas
mas o seu nascimento vibrante que nas sílabas circula
ao nível físico do seu fluir oceânico

Autor : António Ramos Rosa
Deambulações Oblíquas. Quetzal, 2001.
Imagem :Pinterest

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Na periferia da manhã


Na periferia da manhã, levemente adiada,
improviso uma ilha.
Tão nua como páginas em branco.
E concedo-me o direito de esperar Ulisses.
A minha fronte marcada com palavras sem destino.

Autor : Graça Pires
Imagem : Tina Albrecht

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Elogio da Distância



Na fonte dos teus olhos
vivem os fios dos pescadores do lago da loucura.
Na fonte dos teus olhos
o mar cumpre a sua promessa.

Aqui, coração
que andou entre os homens, arranco
do corpo as vestes e o brilho de uma jura:

Mais negro no negro, estou mais nu.
Só quando sou falso sou fiel.
Sou tu quando sou eu.

Na fonte dos teus olhos
ando à deriva sonhando o rapto.

Um fio apanhou um fio:
separamo-nos enlaçados.

Na fonte dos teus olhos
um enforcado estrangula o baraço.

Autor : Paul Celan
in “Papoila e Memória”
Imagem : stoddard

domingo, 9 de novembro de 2025

Segredos

 

Ontem falaram-me
de segredos
meus
eram segredos que só o vento sabia
fiquei perplexa e sem feedback.

Já não posso confiar em ninguém
nem sequer no vento.

Autor : BeatriceM 29-10-2022
Imagem : Mira Nedyalkova

sábado, 8 de novembro de 2025

Parto estelar


Contados os pontos
Finitos como eu
Mas belos no findar

Abstratos anjos gasosos
As verdadeiras nuvens
E o céu estão aí?

Reparar que é Hidrogênio
Também
Tão onipresente quanto Deus
Também
Tão logo se torna Hélio
Também
Nobre como deve ser

Um rajado
Na noite e no tempo
Vindo do infernal núcleo
Esgota contigo

No passado parecias eterna
No dia não parecias
Na noite perecias passageira

Humana luz
Resiste
Exaure

Orbitando no pretume onírico
É perfeita
Por esgotar-se
E brilhar o suficiente
Para parecer imortal

Autor : André Rosa

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Fim

Não houve um fim com grito ou dor,
só o silêncio a apagar o sabor.
Foi morrendo devagar, sem razão,
como quem larga devagar a mão.

Faltou carinho, vontade, calor,
aquilo que um dia chamámos amor.
Não foi traição, nem culpa, nem erro,
foi só o tempo a fechar o desterro.

Ficámos bem, e isso é raro,
não carrego raiva, nem olhar amargo.
Tu foste parte da minha estação,
mas não eras destino — só direção.

Hoje somos dois que já foram “nós”,
e mesmo que a memória ainda traga a voz,
a vida seguiu, tranquila e capaz…
porque o que ficou entre nós,
ficou tudo em paz.

Autor :Raquel Gonçalves
Imagem : Irina Dzhul

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Dia de Aguaceiros


Dia de aguaceiros. Sei que os jardins
não são os de Academos. Mas vou pelos passeios
entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta
disposição do Logos na murta dos canteiros.

Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes:
as alamedas param e os cedros repousam
a terra tão porosa que facilmente encanta
- e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo.

Retiro-a manchada por um líquen de areia.
Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana
baixando intelecções a corpos indefesos.
E um século à volta abre guarda-chuvas negros.

Autor : Carlos Poças Falcão
Imagem :Paolo Barzman

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

a gaiola

Agora que regressei
a este quarto para ficar,
não me contes que a vida
continua lá fora,
não me tragas
a luz de outros voos.

Basta-me a sombra dos ramos
fingindo árvores nas cortinas;
tal como a ti
a águia libertada à porta
da mais indolente taberna ou
os cães recusando-se a morrer
de traição - todos esses perdões
em papel que vais guardando.

Ao centro do jardim (lembras-te?)
havia um poço
onde deitavam as laranjas
caídas ao chão
para se desfazerem
num silêncio mais doce.

Deixa-me ser também
apenas o caroço deste mundo,
que apodrece à nossa volta
e na minha carne.

Autor : Inês Dias
 UM RAIO ARDENTE E paredes frias
Imagem : Igor Burba

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Ausente

 

Stephem Carrol

Corpo suspenso
Da imaginação dolorosa

A distância
Permeando o desejo

Oceano
O impossível lençol entre nós dois

Autor ; Alberto de Lacerda
In: O Pajem Formidável dos indícios

domingo, 2 de novembro de 2025

Às vezes...


Ás vezes
Gosto de esculpir
Não em gesso
Nem em pedra
Apenas lavrar palavras
Que vou largando por aí.

Autor : BeatriceM 22-10-2022
Imagem : Brooke Shaden

sábado, 1 de novembro de 2025

Mímica




Maciej Kurkiewicz

Pode a noite doer
se as mãos tocarem a sua própria pureza
e houver um ponto negro ao centro

Quando no pulso
parece crescer uma pequena solidão
como se o espaço se afastasse e de repente
um véu cobrisse
todas as memórias futuras

Pode a noite tremer assim
para que os muros se abram ao meio

Para que a transparência dos gestos
publique essa mímica oculta
antiga intimidade

Autor : Vasco Gato
in IMO(Quasi,2003)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

o minuto certo do amor

 

Dizia-te do minuto certo. Do minuto certo do amor. Dizia-te que queria olhar para os teus olhos e ter a certeza que pensavas em mim. Que me pensavas por dentro. Que era eu a tua fantasia, o teu banco de trás. O teu desconforto de calças caídas, de pernas caídas, da rua que não estava fechada porque nenhuma rua se fecha para o amor. Na cidade do meu sono, havia palmeiras onde alguns repetiam charros e putas e atiravam pedras ao rio. Mas eu nunca gostei de clichés. Nem de quartos de hotel. Nem de camas que não conheço. Eu nunca abri as pernas no liceu. Nunca abri as pernas aos dezassete anos, de cigarro na mão. Eu nunca me comovi com o sonho de ser tua. Eu nunca quis que ficasses, entendes? Que viesses. Queria que quisesses de mim esse minuto certo, essa rua húmida de ser norte. Queria que me quisesses certa, exacta, como o minuto onde me pudesses encontrar. Eu nunca quis de ti uma continuidade. Mas um alívio, uma noção de ser gente, entendes? Eu nunca quis de ti o sonho do sono ou da viagem. Nunca te pedi o pequeno-almoço, a ternura. Nunca te disse que me abraçasses por trás, que adormecesses. Eu nunca quis que me desses casa e filhos e lógica. Que me convidasses para dançar. Queria os teus olhos a fecharem-se comigo por dentro e tu por dentro de mim.

Queria de ti um minuto. Um minuto.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

recado aos corvos

igor morski

Levai tudo:
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Deixai só a incombustível
memória das labaredas.
o brilho fácil das pratas,
o acre toque das sedas.

Autor : A.M.Pires Cabral

domingo, 26 de outubro de 2025

Curvas

 

Caminho entre precipícios
Que me levam ao fundo dos abismos
Mas o medo não me deixa
Que os fantasmas que me perseguem
Consigam desviar-me do caminho certo
Simulo que vou
Mas fico na curva
A ver … só a ver e a imaginar
Perigos que não correrei.

Autor : BeatriceM 15-10-2022
Imagem : Melissa Vincent

sábado, 25 de outubro de 2025

tenho um grito


tenho um grito
um canto
uma flor
uma noite destas
de uma vez
vou oferecer-te tudo
meu amor.

Autor : Mário Contumélias
 vida, divisão única
Imagem :Pinterest

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

rés-do-chão

 

no fundo de cada coisa
o raso
no vasto de cada coisa
o ínfimo
no descampado o íntimo na nudez
um nem atinar com ela
no reles de cada coisa
o tudo dela
vida em revoada

no raso de cada coisa
o cavo
no ínfimo de cada coisa
sua extensão
no descompassado o ritmo na embriaguez
uma espécie de rés-do-chão

em meio metro
de qualquer coisa
um deus descalço
e bom

Autor : Adriana Lisboa.
Imagem : amber hortelano

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

toda a solidão das ilhas


ainda que um último navio
viesse pousar-me nas mãos
toda a solidão
das ilhas

e na brevíssima noite
dos mortos
rompesse límpida
a última nuvem
da saudade

ainda assim

só contigo subiria
toda a neve dos dias
até se esgotar
o vermelho

essa casa
onde mora o coração

autor : gil t. sousa

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Penso em ti

Penso em ti
Olho as estrelas
Pego na lua
Vejo nuvens transparentes
Num fundo azulado
Vejo-te a ti meu amado
Meu desejo
Minha tentação
Serás sempre acarinhado
Serás sempre o meu coração
Teus olhos teu olhar
São meu mistério
A minha tristeza
A minha alegria Minha luta...
Vivo alucinada
Mas sigo a minha estrada
Olha-me amor
Dá-me vida Esperança O teu abraço..
Para que mesmo na
Escuridão….brilhe meu coração

Autor : Maria Tavares

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Ruínas

richard blunt

Por onde quer que tenha começado
pelo corpo ou pelo sentido,
ficou tudo por fazer, o feito e o não feito,
como num sono agitado interrompido.

O teu nome tinha alturas inacessíveis
e lugares mal iluminados onde
se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam
e deveria talvez ter começado por aí.

Agora é tarde, do que podia
ter sido restam ruínas;
sobre elas construirei a minha igreja
como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.

autor : manuel antónio pina

domingo, 19 de outubro de 2025

Fui ...


Fui ao aeroporto,
e sem que me presenciasses,
permaneci ao longe a observar-te,
a subir as escadas rolantes,
até te perder da minha óptica de visualização..

Deixas-te algo de ti,
levaste muito de mim.

Autor  : BeatriceM 08-10-2022

sábado, 18 de outubro de 2025

....

Não te confundo com ninguém
reconheço-te no meio da multidão
lamentável
que já não sejas meu amigo
mas compreendo que não quisesses
estar acordado
sempre num dia claro.

Autor : Luís Rodrigues
Imagem : silhouettes by paolo barzman

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Sou Viagem

Apetecia-me ser jovem
mordida por um fogo
e dizer amo-te
com olhar de rosas.
depois, devagar, descer
pelos afluentes do teu rio
como um barco demorado
no cais de embarque
sob um rumor de sol ardido.
mais nada.

Autor : Maria Isabel Fidalgo
Imagem : Ali Jardine

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Memória Descritiva

A sombra dos tectos altos
não deixa respirar. A pintura
esboroada como os ossos.
A moldura verde das portas
na solidão de ferro abandonada.
As cortinas de fumo sujo.
Serradura nas frestas da madeira.
Gonzos, chaves, uma gaveta
com bocados de uma cama.
Luzes ímpares em jornais antigos.
Ganchos, fios, fendas.
Uma almofada, restos
dum romance francês, o metal
de um candeeiro. Recantos,
esquinas, manchas irregulares,
pratos, móveis trôpegos, uma parede
onde estala a cal. Tábuas pequenas,
traves, bolor num espelho, vidrinhos,
relógios, autocolantes, fechaduras,
uma arca da qual ninguém
se aproxima, pedaços de tecido
alegre e tantas cadeiras.

autor : Pedro Mexia
In Em Memória, Gótica, 2000

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

há colares que são coleiras

há colares que são coleiras
há mulheres que são cadelas
certos homens, cães raivosos

os cães propriamente ditos
não foram para aqui chamados
embora metam o nariz em todo o lado
farejando coisas imaginárias
e, de resto, não falam, ladram
têm com certeza razão

Autor : Bénédicte Houart

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Não muita vez nos vemos, mas, se poucos


Não muita vez nos vemos, mas, se poucos
amigos há para falar
dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos
é ele o que melhor vai com a minha fome.

Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele, onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos. Tantas vezes
o suor os traz consigo da memória, que não tenho
na pele poro através
do qual eles não procurem
sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória.

Autor : Luís Miguel Nava
In poesia completa (1979-1994). 

domingo, 12 de outubro de 2025

Procuro ...

 

Procuro o racional para algumas coisas,
que não compreendo,
ou não quero perceber.

Procuro a paz no silêncio do dia,
quando o horizonte me fala,
sobre o racional de algumas coisas.

Que eu entendo,
e ouso entender,
mesmo que por vezes seja irracional.

Autor : BeatriceM 01-10-2022
Imagem : Mary Parker

sábado, 11 de outubro de 2025

VIESSES TU, POESIA...


Viesses tu, Poesia,
e o mais estava certo.

Viesses no deserto,
viesses na tristeza,
viesses com a Morte...

Que alegria mereço, ou que pomar,
se os não justificar,
Poesia,
a tua vara mágica?

Bem sei: antes de ti foi a Mulher,
foi a Flor, foi o Fruto, foi a Água...
Mas tu é que disseste e os apontaste:
- Eis a Mulher, a Água, a Flor, o Fruto.
E logo foram graça, aparição, presença,
sinal...

(Sem ti, sem ti que fora
das rosas?)

Mortas, mortas pra sempre na primeira,
morta à primeira hora.)

Ó Poesia!, viesses
na hora desolada
e regressara tudo
à graça do princípio...

Autor : Sebastião da Gama
In "Pelo Sonho é que Vamos"
Imagem : Nishe

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

APRENDO-TE

 

Aprendo-te mas não te prendo
Na aprendizagem vivenciada
Do tempo ainda breve crescendo
Das tuas mãos a cada chegada
Aprendo-te no verde do olhar
Maduro em ti, estranha surpresa
Do pouco que sei - sabendo-te
Ferida que guardo ainda ilesa
Falas do círculo subtil do meu olhar
Entre o castanho e o verde profundo
Quando planas dentro de mim sem fim
Breve ainda é o tempo deste novo mar
Que desagua na terra a cada segundo
Talvez sejas tu - o outro lado de mim

Autor : Cristina Fernandes
 in O MOMENTO CERTO (Modocromia, 2020
Imagem : Igor Burba

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Não colher as mãos

não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.

Autor : Rui Costa
In a nuvem prateada das pessoas graves

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Dias melhores



A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.

Autor : Rosa Alice Branco
In Da Alma e dos Espíritos Animais
Imagem : Marius Markowski

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Sofro de não te Ver

Sofro
de não te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
límpida, tão calma...

Sofro
de te perder,
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos...

Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das árvores de tenrinhos ramos?

Autor : Saúl Dias,
 in "Sangue (Inéditos)"

domingo, 5 de outubro de 2025

Reflexões


Abafado e quente,
o vento passa pelo rosto,
lembrando que ainda é verão.

Logo virá o outono,
trazendo o frio
e noites alongadas.

Quem me cingirá
nesse intervalo de tempo,
senão a solidão?

Ou talvez a ternura acolhedora
da melancolia,
deitada a meu lado

BeatriceM 2025-08-21
Imagem : Brooke Shaden