quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Dias melhores



A mulher espera as noites e também os dias,
esperta o lume enquanto, esperta a espera.
Há umas quantas coisas que a prendem, coisas
que arrecadou para a vida e já não servem.
Quem serve é ela e serve a Deus desfiando o rosário
pelos que já lá estão.
Por aqui vai-se indo, vai-se levando a vida
para o outro lado enquanto se esperam dias melhores,
dias mecânicos, a labuta dos músculos, a cabeça em paz
e a noite cansada, os pensamentos cansados,
o sofrimento cansado só quer estender o corpo
até de manhã. Quando mal nunca pior,
o café quente, o pão acabado de fazer
como se fosse cedo e as mãos na sua azáfama
pudessem fazer os dias gloriosos as noites luminosas
com que sonhou e já não servem. Agora só a espera
e as coisas que foi arrecadando para a morte.

Autor : Rosa Alice Branco
In Da Alma e dos Espíritos Animais
Imagem : Marius Markowski

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Sofro de não te Ver

Sofro
de não te ver,
de perder
os teus gestos
leves, lestos,
a tua fala
que o sorriso embala,
a tua alma
límpida, tão calma...

Sofro
de te perder,
durante dias que parecem meses,
durante meses que parecem anos...

Quem vem regar o meu jardim de enganos,
tratar das árvores de tenrinhos ramos?

Autor : Saúl Dias,
 in "Sangue (Inéditos)"

domingo, 5 de outubro de 2025

Reflexões


Abafado e quente,
o vento passa pelo rosto,
lembrando que ainda é verão.

Logo virá o outono,
trazendo o frio
e noites alongadas.

Quem me cingirá
nesse intervalo de tempo,
senão a solidão?

Ou talvez a ternura acolhedora
da melancolia,
deitada a meu lado

BeatriceM 2025-08-21
Imagem : Brooke Shaden

sábado, 4 de outubro de 2025

Explicaçao da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo. 
o ódio transforma-se em tempo, o amor 
transforma-se em tempo, a dor transforma-se 
em tempo. 

os assuntos que julgámos mais profundos, 
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo. 

por si só, o tempo não é nada. 
a idade de nada é nada. 
a eternidade não existe. 
no entanto, a eternidade existe. 

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos. 
os instantes do teu sorriso eram eternos. 
os instantes do teu corpo de luz eram eternos. 

foste eterna até ao fim.

Autor : José Luís Peixoto
in A Casa, A Escuridão
Imagem : Elena Dudina

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Ficou em nós

Tu ficaste com ela por medo de dor,
Eu fui o refúgio, o rastro do amor.
Prometemos nada, vivemos demais,
E agora estás longe… e eu fico nos “vais”.

Chamaste de “coisa que a gente não diz”,
Mas no fundo sabias: contigo fui raiz.
Fui toque, fui fogo, fui riso no escuro,
E tu foste o erro mais doce e mais puro.

Dissemos que era só pra guardar,
Mas há corpos que sabem quando é pra ficar.
Ficou na pele, no cheiro, na voz,
Ficou esse “nós” que vive sem nós.

Tu pensas demais, eu sinto por dois,
Mas nunca fui tua — e foste meu depois.
Na alma, no peito, nos gestos calados,
Fomos o certo nos tempos errados.

E se um dia perderes o medo de amar,
Quando já não quiseres só aproveitar,
Talvez nos cruzemos sem peso, sem dor…
E se ainda houver tempo, talvez seja amor.

Disseste que havia carinho especial,
Daqueles que ficam, sem ser normal.
Mas foste embora sem te despedir,
Com medo de tudo o que podias sentir.

Tu gostavas de mim, eu via no olhar,
Na forma que vinhas, na pressa de ficar.
Nos teus olhos cansados, vi mais do que vão,
Vi o desejo calado, a fuga da mão.

Tiravas meus cabelos loiros do colchão,
e ficavas em mim, sem pedir permissão.
Ali, o teu corpo dizia o que o medo calou,
e no fundo dos olhos, era amor que ficou.

Ela tem o teu lado, os teus dias marcados,
Mas eu fui o instante dos passos trocados.
O tempo contigo sabia parar,
Mesmo sem nome, sem lugar pra ficar.

Agora estás longe, distante e calado,
Mas o que vivemos não foi inventado.
E se fosse noutra vida, sem essa prisão,
Talvez fosses meu — de corpo e coração.

Autor : Raquel Gonçalves
Imagem : Brooke Shaden

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Canção de Leste

Ao virar da esquina
um anjo invisível espera;
uma vaga névoa, um magro espectro
dir-te-á algumas palavras do passado.

Como água de rega, o tempo
escava em ti um árduo trabalho
de dias e semanas,
de anos sem nome ou memória.

Ao virar da esquina
seguir-te-á esperando em vão
esse que não foste, esse que morreu
de tanto ser tu mesmo como és.

Nem a mais leve suspeita,
nem a mais leve sombra
te indica o que poderia ter sido
esse encontro. E sem dúvida,
ali estava a chave
da tua breve felicidade sobre a terra.

Autor: de Álvaro Mutis 
in “Sombras Brancas — Setenta e sete poemas sobre anjos caídos de outras línguas“, tradução de Jorge Sousa Braga, Língua Morta 068, 2016, p. 79

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Voo Solta

Ravshaniya

com asas abertas no vento
também o meu pensamento
se lança vivo e liberto
e plana
e paira
como uma gaivota de prata

pomba mansa
que achou aberta
a porta da sua gaiola
e à toa esvoaça
sem saber aonde pára

possui o céu
e é sua!

Autor : Maria Petronilho
Almada - Setúbal - Portugal
In :Recanto das Letras
Enviado por Maria Petronilho em 01/06/2010
Código do texto: T2293516

terça-feira, 30 de setembro de 2025

A tua asa


Roça-me também tu com tua asa – única parte
verdadeiramente palpável de ti.

Que não seja sempre a inoportuna
asa da morte, semelhante à dos morcegos,
a roçar-se por mim.

Naquelas noites de temporal desfeito
que nada alumia nem aquece,
nem sequer a memória, que costuma ser
o que temos de mais quente e luminoso –

- nessas noites desabridas,
se a tua asa me roçasse o rosto,
recebê-la-ia como um nu recebe uma manta;
como um viandante em noite de Inverno
a quem é oferecido um canto à lareira
e uma candeia
para esconjuro das trevas e do frio.

Roça-me com ela, por favor,
ao menos uma vez e numa noite dessas.

Autor: A.M.Pires Cabral
in “Resumo a poesia em 2011”, página 12

domingo, 28 de setembro de 2025

O remorso


Carregas um nó de sombras
na garganta do silêncio.

A tristeza alastra como hera,
devorando cada fresta da alma.

Nenhuma estação migra
com a força de apagar feridas.

Nenhuma prece alcança
as fendas que se abrem sem razão,
e te rasgam em silêncio.

Autor : BeatriceM 2025-09-28
Imagem :Andrea Kiss

sábado, 27 de setembro de 2025

Residência


Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mãos levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
Um homem que ama nas sombras o fulgor e as essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria, dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.

Não podes morrer contra o sonho contando as lágrimas,
a face reflectida nos espelhos da alma.

Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os templos da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.

Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras.

Autor : Eduardo Bettencourt Pinto

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

...

Soli-Art

Te procuro
nas coisas boas

em nenhuma
encontro inteiro

em cada uma
te inauguro.

Autor : Alice Ruiz

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Palavras, actos

Albin Veselk

A ironia ensina a sabotar uma frase
Como se faz a um motor de automóvel:
Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres
No verbo ou numa letra do substantivo
A frase trágica torna-se divertida,
E a divertida, trágica.
Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,
Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar
A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo
Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita
Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida
Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero
Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

Autor Gonçalo M. Tavares

domingo, 21 de setembro de 2025

Partitura


Analisa com atenção as letras
que a intimidade te verte
em notas mornas.

Descobre os segredos
na superfície dos dedos
e nessa fronteira sem limites,
compõe uma ária
que todos possam cantar

 Autor : BeatriceM 2025-09-21

sábado, 20 de setembro de 2025

Sempre

Mathieu Chatrain

sempre que uma praia se levanta
és sempre tu que me tocas
e sempre tu quem aceita o sorriso
é sempre o sol embrulhado em terra pura
e sempre pura a voz que a terra canta
porque se ouvires a água na pedra
a água que sempre nos meus lábios sabe a ti
se ouvires a água na pedra tens a lua
a manhã o cereal de espuma que não pára de crescer
nos lábios teus que a água dos meus conhece
como o sol procura o dia e sempre acha a noite
e é na noite que sempre te digo
que sempre te juro as mãos enormes
e levanto a praia que tu levantas
quando sempre acordamos
e na nossa nudez se esconde a noite
em que lábios nos lábios criámos o mar
.
Autor : © Vasco Gato

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Ainda


Ainda
Tenho flores por colher
O céu por alcançar
Caminhos por percorrer

Ainda
Tenho mágoas por curar
Noites por descobrir
Lágrimas por cristalizar

Ainda
Tenho desejo e arrepio
Sonhos a esvoaçar
E sou nascente e rio

Ainda
Tenho o tempo por iludir
O sol por tocar, o arco-íris
A chuva e o vento por abraçar.

Ainda
Não sei como suster o tempo
E tenho tantas flores
Por semear!

Autor :  Alice Queiroz

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Sem outro intuito


Sem outro intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Autor : Luís Miguel Nava
in Vulcão I

domingo, 14 de setembro de 2025

Melancolia

Igor Burba


Há um clamor
na insensatez do mundo,
atestando a tranquilidade
que os olhos pedem,
pois as bocas estão cerradas
com o medo — desesperançado
e à beira de disparar.

 Autor : BeatriceM 2025-09-14

sábado, 13 de setembro de 2025

...

 

Por que pairas?
Por que insistes?
Por que pairas se deixaste
que te prendessem terrenas
falsas tranquilidades?
Por que negaste o que eras -
nuvem íntegra, real,
sobre as mentiras do mundo?
Às vezes cantas em tudo.
Mas é tão triste e tão tarde.
Meu amor, porque vieste?
Nunca tivera sabido
como se nasce e se morre
de repente ao mesmo tempo
para sempre, ó arrastada
humana deusa frustrada
água irmã da minha sede
luz de toda a claridade
que só em ti neste mundo
para mim era verdade.

Autor : Alberto de Lacerda
Autor : Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda
in 366 poemas que falam de amor, uma antologia organizada por Vasco Graça Moura, Quetzal Editores
Imagem : Martin Stranka

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

O Tempo

Johan Messely

O tempo tem aspectos misteriosos:
Um ano passa a toda a velocidade,
E um minuto, se estamos ansiosos
Parece, às vezes, uma eternidade.

Um dia ou é veloz ou pachorrento
-depende do que está a contecer-
O tempo de estudar, pode ser lento.
O tempo de brincar, passa a correr.

E aquela terrível arrelia
Que até te fez chorar, por ser tão má,
deixa passar o tempo. Por magia,
Quando olhamos para trás, já lá não está.

Autor : Rosa Lobato Faria

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Então...

 


Então me vens e me chega e me invades
e me tomas e me pedes e me perdes
e te derramas sobre mim com teus olhos sempre fugitivos
e abres a boca para libertar novas histórias
e outra vez me completo assim, sem urgências,
e me concentro inteiro nas coisas que me contas,
e assim calado, e assim submisso, te mastigo dentro de mim
enquanto me apunhalas com lenta delicadeza
deixando claro em cada promessa que jamais será cumprida,
que nada devo esperar além dessa máscara colorida,
que me queres assim porque assim que és..."

Autor : Caio Fernando Abreu

domingo, 7 de setembro de 2025

Antes de tudo acabar




Antes de tudo acabar,
deixa-me escrever doutrinas antigas
que nunca escrevi.

Descerrar o cofre,
remexer o que lá subsiste
e que já esqueci.

Lançar fora
lembranças frias,
reacender outras, já esquecidas.

Abrir a janela,
libertar um abraço
enrolado no vento.

Deslaçar o cabelo...
e então, poderei partir
para o outro lado do caminho.

 Autor : BeatriceM 2025-09-07
Imagem : Ilya Kisaradov

sábado, 6 de setembro de 2025

Povoamento


 

No teu amor por mim, há uma rua que começa.
Nem árvores nem casas existiam nela,
apenas Tu.

E antes que tu tivesses palavras e tudo em mim fosse um coração para elas, Invento-te !

O céu azula-se sobre esta triste condição de te ter sem ter.

Recebo unicamente dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros que anunciam uma nova primavera;

Tocam sinos e aqueles pássaros levantam voo com todos os seus cuidados

Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem …

Autor : Ruy Belo
Imagem : Jonas Hafner

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Lume


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.


Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Autor:Ana Salomé

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Manhã

 

É cedo, demasiado cedo, escutas
o clamor das horas,
o breve tempo, a longa margem
que assiste ao teu desaparecer.

Bebes café e estranhas o poder
de orvalho e cansaço
que há na manhã.

Autor : Luís Quintais
In : A Noite Imóvel

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Preparar a Solidão

Perceber que já se perdeu tudo o que um dia mais se amou,
fazer ordinariamente horas extraordinárias,
ir a diário ao ginásio, esgotar o corpo,
andar frequentemente de bicicleta,
regressar a casa pelo caminho mais longo,
prestar atenção ao que acontece dentro da copa das árvores,
não ter animais de estimação, nem mesmo plantas,
ter coragem para não recolher um cão abandonado,
nas tardes de sol visitar jardins, dar milho aos pombos,
ser amante de livros, de música e de cinema,
guardar longe da vista todas as fotografias,
dançar pela casa, a vontade não precisa de par,
evitar pensar no sentido da vida,
ter um não sei quê de ave migratória,
manter a casa limpa, mudar os lençóis, fazer a cama,
ter em casa chá, chocolate e livros de poesia,
peças de fruta, álcool e cigarros nenhuns,
ter cola, tesoura, agulha, linha, pregos,
o necessário para pequenas reparações,
ter uma caixa de primeiros socorros,
cozinhar em pequenas quantidades,
investir numa chaleira,
numa botija para água quente,
num congelador,
viajar sempre para países distantes,
não ter medo da chuva nem do choro,
não ligar a televisão só para ter luz no escuro.

Autor  : Raquel Serejo Martins, 
"Exercícios de preparação para a solidão", in Página do Facebook

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Sobre esta página


Há quem não leia para além do que vai escrito.
Tudo tem de ser literal: chão rua noite e casa,
cama mesa e roupa lavada. Nem silêncio nem grito,
consoante as penas que se transporta em cada asa.

Guarda o talento para ti, não mudes de página.
Há gente capaz de se negar à própria evidência
e de te acusar de mundos e reinos criados por álgida
imaginação, de asno com excesso de inteligência.

A nada e ninguém repliques. O segredo
só a ti pertence, tão único como tu. Lês
por dentro o que escreves, sozinho na noite
qual condenado às trevas do seu degredo.

Caminha sobre a página. Mudarás não o sentido
nem o ritmo nem a música nem a voz do poema,
e sim o verbo que te levará à vista do infinito.

Autor : João de Melo
In Longos Versos Longos.
Imagem : Marie Meister

domingo, 31 de agosto de 2025

Matéria de Afecto


acho que fui pluma
na tua mão —
vontade insensata
de me quereres inteira.

Em dias cálidos,
noites arrefecidas,
tardes escurecidas.

Acho que fui intimidade:
corpo saciado
de um tempo adiado.

Autor:BeatriceM 2025-08-31

sábado, 30 de agosto de 2025

Nas cidades de onde venho


Nas cidades de onde venho
secam as árvores ao som das sirenes
e os pássaros, alucinados, buscam direcções
nas pupilas das crianças.

Nessas cidades tudo é pressa e desassossego,
enquanto os homens, imprudentes, desaprendem
a sublime auscultação da terra;
nem sequer o coração dos outros podem ler
ou o rumor inconsolável das águas
– para eles aquilo que apenas vêem!

E com um nó no peito desatado
pintam de harmonia um novo Caos

Autor : Victor Oliveira Mateus
In “Pelo deserto as minhas mãos”
Imagem : Michael Zahornacky

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

o peso dos livros


Pensava que os livros não têm peso. Quero dizer, flutuam no entendimento.
Na memória. Ou melhor: equilibram-se porque não são gente.
Não têm noites, não têm insónias. Não têm sono lá dentro.

Pensava que os livros são menos complexos do que nós. Mesmo quando
não temos linha, quando não temos palavra. Mesmo quando
não conseguimos respirar. Quando pensei nisso,
tive uma vaga noção de título.

E um hálito branco a querer ser página.

Autor : Filipa Leal

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O céu

Oleg Oprisco


O céu
Assoam-se-me à alma,quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.

Autor :Luís Miguel Nava

domingo, 24 de agosto de 2025

Entre Linhas


não sei se é loucura
ou sanidade
esta ânsia de me fundir nos livros
que me completam.

sou parte da história,
sou a ausência da heroína,
perco-me nos enredos
onde me enleio,
me enrosco
e sonho —
sem saber ao certo
se está escrito,
se li
ou imaginei
as palavras com que teço
os acasos do meu fado.

Autor:BeatriceM 2025-08-24

sábado, 23 de agosto de 2025

O escritor

ele disse não sei por que escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas.

ele disse eu te amo.

ele disse tenho medo de que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que você pode escrever.

ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei por que você continua escrevendo
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem é você?

Autor:José Luis Peixoto

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

As Palavras


Acordei cedo, com o cantar dos pássaros
Que sobrevoavam a minha janela insistentemente
- Já vou! Disse...
Penteei os cabelos desgrenhados do sonho na noite
Assomei-me ao parapeito e dei-lhes de beber nas minhas mãos.

Os raios de sol aqueceram o meu corpo franzino
A aragem matinal fez-me uma carícia
Toquei as cores do dia, com os meus dedos.

Fechei a janela, guardei os sonhos numa caixinha
Estavam felizes, prometeram voltar ao cair da noite...
Tomei um duche perfumado e saí, nas asas dos pássaros.


Madrugada de Cecília Vilas Boas
in “O Eco do Silêncio”
Imagem : marcin laskarzewski

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
   está fechado:
   "não há vagas"

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

    O poema, senhores,
    não fede
    nem cheira

Autor : Ferreira Gullar
 in 'Antologia Poética'